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Cessão de Crédito Imobiliário e Alienação Fiduciária - Pedro Klumb[i]*


Instado a apresentar manifestação a respeito do tema tratado na Audiência Pública III – Cessão de Crédito Imobiliário e Alienação Fiduciária de Bem Imóvel objeto de Compromisso de Compra e Venda registrado devo dizer, inicialmente, que a minha contribuição deverá ser considerada a partir de uma visão econômica e não jurídica do tema, seja por decorrência da minha formação profissional, seja pela condição que tenho tido de buscar nas experiências do dia a dia a visão prática do processo de securitização.

Peço, portanto, vênia aos colegas advogados e juristas. Perdoem as heresias que, com toda a certeza, cometerei ao tratar de questão tão eivada de conteúdo jurídico.

A Lei, em um regime capitalista, ao que me parece, deve servir ao mercado. Organizar as relações entre as partes de modo a conferir segurança à realização dos negócios. Proteger as partes no curso das suas relações contratuais em relação ao contratado. Estabelecer padrões de comportamento das partes na contratação de negócios.

O respeito aos contratos e a estabilidade de regras e normas têm sido pilares importantes do desenvolvimento econômico recente, especialmente em um contexto de mercados cada vez mais globalizados. Vale dizer, a estabilidade de normas e o respeito aos contratos e aos direitos adquiridos são fatores de atração de investimentos. 

É conveniente mencionar ainda a grande importância desse tema para o momento atual do mercado de securitização no Brasil. O resultado dessa Audiência Pública poderá representar a materialização imediata dos negócios de securitização de recebíveis residenciais no Brasil ou, o adiamento, por muitos anos, das reais possibilidades de desenvolvimento do mercado. 

É dizer, a única via concreta para o mercado desenvolver-se nos próximos anos passa pela possibilidade de ser negociado o estoque de compromissos de compra e venda existente atualmente no mercado, estimado em aproximadamente R$ 6 bilhões.

A alternativa contrária implicará em exigir do mercado, a originação de escrituras de compra e venda com garantia de hipoteca ou alienação fiduciária, desde já, de acordo com os parâmetros e requisitos dos mercados organizados de securitização. Não que essa seja uma premissa equivocada. Tudo, entretanto, deve vir a seu tempo. Exigir imediatamente de um mercado absolutamente imberbe que se comporte de forma madura resultará, como de resto já vem ocorrendo, em postergar por muito tempo o deslanche das operações de securitização no Brasil. 

Com efeito, ao longo dos últimos 5 anos, menos de R$ 1 bilhão foi emitido em CRI’s – Certificados de Recebíveis Imobiliários – e, assim mesmo, apenas cerca de 40% deste montante teve como lastro recebíveis originados de negócios com imóveis residenciais. 

Não é por outro motivo que têm se avolumado as tentativas de viabilizar negócios com lastro em contratos de compromisso de compra e venda, embora sabidamente esses instrumentos representem acentuada fragilidade para as operações vis a vis a ortodoxia conceitual que sustenta os negócios de securitização. 

Há que se entender, portanto, a motivação econômica que impulsiona essas tentativas de fazer circular contratos que atualmente estão estacionados nos ativos dos incorporadores, obstruindo o fluxo dos negócios e inibindo o desenvolvimento pleno do sistema de securitização. 

É evidente que os negócios de securitização envolvendo compromissos de compra e venda terão vida curta. Provavelmente só o tempo suficiente para que se originem contratos completos, enquadrados aos parâmetros requeridos para operações de securitização de alta qualidade e, ao mesmo tempo, baixo custo de transação. Os compromisso de compra e venda terão então cumprido a sua função de propiciar a educação do mercado, servindo de borrador para o desenvolvimento da boa técnica e da noção de viabilidade econômica e financeira desse tipo de negócio. 

Os Compromissos de Compra e Venda 

A modalidade contratual de compromissos de compra e venda é completamente inconveniente para os negócios de securitização. O uso do cachimbo, no entanto, fez a boca torta no mercado imobiliário. Talvez pela facilidade, talvez pela mal intencionada motivação de fazer precária a relação contratual. Certamente por motivações econômicas, algumas legítimas, como a de postergar a exigibilidade do pagamento de ITBI e Registro, outras menos legítimas como a de facilitar a informalidade visando a sonegação de impostos e contribuições. 

No meu modo particular de ver é absolutamente inconcebível admitir-se relações contratuais precárias como são as regidas pelos compromissos, após a entrega do imóvel ao promitente comprador, exceto para as situações de exceção. No Brasil, infelizmente, saúda-se a informalidade e a flexibilidade contratual como mérito, possivelmente por conta do objetivo implícito, geralmente, de ambas as partes de tirar vantagem daquelas aberturas. 

Por outro lado, não é incomum ouvirmos reclamações desses mesmos agentes quanto à dificuldade e custos elevados de transação quando se deseja desenvolver qualquer negócio com aqueles contratos tão frágeis. 

O compromisso de compra e venda, na fase de obras, representa um instrumento para captação de poupança popular por parte das sociedades incorporadoras, cujas operações não estão submetidas ao crivo do Banco central, como é o caso das instituições financeiras, tampouco são fiscalizadas pela CVM, como os gestores dos demais veículos usados para acessar o mercado de capitais. Por essa razão, o seu viés de superproteção do “poupador” desequilibra as relações contratuais. Todo poder aos promitentes compradores. Essa tem sido a máxima. No mercado e nos tribunais. Com toda a razão, na fase de obras, uma vez que o incorporador, antes de entregar o bem passa a beneficiar-se dos dinheiros dos futuros adquirentes, em condições mais vantajosas que as disponíveis no mercado formal de crédito. 

É indiscutível e irretocável, no meu entendimento, o tratamento dado aos compromissos de compra e venda, nessa fase dos negócios imobiliários, tanto pela jurisprudência, como pelas leis aplicáveis, defesa do consumidor, incorporações, etc e naturalmente pela práxis. 

Porém, é nessa e só nessa fase que se encontra justificativa para o distrato do compromisso de compra e venda. É como se o promitente comprador decidisse sacar a sua poupança, enquanto poupança, portanto, antes da materialização do negócio. Do mesmo modo os noivos, eventualmente, decidem por não consumar o compromisso prometido anteriormente. 

No pós-chaves, no entanto, não faz qualquer sentido deixar o negócio inacabado. A vigência de um contrato de compromisso, então, me parece uma completa inversão de valores. 

Ao entregar o bem imóvel a incorporadora altera fundamentalmente a sua posição, de captadora de recursos do público para o de credora de parte do preço do imóvel de sua propriedade, então vendido definitivamente. Consuma-se o ato representativo do negócio. E disso não pode ser admitido arrependimento inconseqüente, como é o caso de um distrato. 

Do mesmo modo, os casamentos podem ser desfeitos, porém não sem mácula. 

Infelizmente grassam decisões judiciais e se avoluma a jurisprudência dando tratamento a compromissos de compra e venda de imóveis prontos, entregues e, muitas vezes, ocupados por anos pelos promitentes compradores, como se estivessem ainda na fase da poupança. 

É dada ao promitente comprador a prerrogativa do arrependimento, resultando no desfazimento da compra do imóvel, como se o negócio não tivesse ocorrido entre partes teoricamente capazes, inclusive sendo exigido da incorporadora a devolução dos valores recebidos. 

Infelizmente, não apenas na ficção de George Orwell tem sido possível alterar a história retroativamente. 

A forma adequada para desfazer-se da propriedade seria transferi-la  a terceiros, de acordo com as condições de mercado vigentes. O lucro ou prejuízo com essa transação é dependente das condições de mercado, sobre o qual nem promitente vendedora nem promitente comprador tem poder de influência. 

Entretanto, diante da possibilidade real de serem distratados compromissos de compra e venda de imóveis prontos, a projeção dos fluxos de pagamentos futuros, essência da securitização, resulta substancialmente comprometida, razão pela qual é imprescindível agregar outras garantias e salvaguardas aos créditos, se o intuito for estruturar operações de securitização de boa qualidade, com lastro em recebíveis dessa natureza. 

Operações de Securitização 

A primeira segurança adicional, geralmente requerida em operações de securitização é a obrigação de retrocessão dos contratos com determinados vícios, dentre eles os riscos indesejáveis do distrato e da inadimplência. 

O pressuposto é que a inadimplência dos contratos cedidos já tenha sido suficientemente mitigada, através das demais ferramentas clássicas adotadas nas estruturas de securitização, como o excedente de créditos (overcollateral) ou emissão de séries subordinadas. 

Não há, portanto, que tratar da contratação da alienação fiduciária do imóvel para garantir a inadimplência. Nem mais nem menos do que foi contratado com os promitentes compradores poderá lhes ser exigido. 

A necessidade básica de constituir garantia real, na forma de alienação fiduciária, sobre o imóvel cujos recebíveis sejam securitizados, objetiva fundamentalmente assegurar a possibilidade de recurso final contra imóvel na hipótese de descumprimento por parte do incorporador/originador da obrigação de recomprar os compromissos de compra e venda que apresentarem desconformidade em relação aos parâmetros estabelecidos para a operação. 

Nessa circunstância, a responsabilidade pela liquidez do crédito individual já será do incorporador/originador, servindo a fidúcia tão somente para cobrir o risco de insolvência do incorporador. Isso se dá especialmente nas situações de falência ou concordata do incorporador. 

Se não contratada a alienação fiduciária do imóvel, objeto derradeiro do negócio que deu origem aos recebíveis securitizados, a interrupção do fluxo de pagamentos por parte do devedor final em decorrência de distrato, queda sem remédio eficaz, na medida em que dependerá da boa vontade e/o da condição de solvência ou ainda do humor do originador cumprir a obrigação de recomprar aqueles créditos. 

A partir do exposto se apresenta para mim de forma direta e clara a conclusão quanto aos aspectos trazidos à tela durante os debates desta A. P. 

1. Constituição de garantia de alienação fiduciária sobre o imóvel objeto de CCV, com efeitos sobre o devedor nas situações de inadimplência, inclusive com adoção do rito extrajudicial de execução da Lei 9.514/97. 

Do meu particular ponto de vista, considero inaplicável a alienação fiduciária por ato unilateral do promitente vendedor. Essa visão não decorre de qualquer avaliação jurídica ou legal sobre o tema, mas tão somente da percepção da existência de risco de contestação por parte do promitente comprador do imóvel, no momento da execução. 

Poderá sempre alegar o promitente comprador que não anuiu formalmente à novação das condições contratuais, em especial quanto ao rito de execução da inadimplência, trazendo a discussão da questão para a esfera judicial. 

A partir daí não importa mais quem tenha razão. O tempo demandado para que esse tipo de processo circule pelos meandros do judiciário é completamente incompatível com a velocidade de circulação requerida para os créditos securitizados. 

2. Constituição de garantia de alienação fiduciária sobre o imóvel objeto de CCV, com efeitos sobre o promitente vendedor nas situações da sua inadimplência contratual, em especial aquela de recomprar os créditos inadimplentes ou objeto de ação contrária e/ou distrato. 

Na minha opinião é plenamente possível adotar a garantia de alienação fiduciária como garantia adicional para essas situações, devendo ser considerada a condição especial em que a garantia será constituía. 

O fiduciário, neste caso, o é em decorrência da aquisição de créditos (recebíveis) que tenham sido originados através de compromisso de compra e venda de imóveis. Portanto, todos os direitos e obrigações atribuídos às partes pelo contrato original deverão ser mantidos e respeitados. 

É o que propõe Mota, Fernandes Rocha Advogados, em consulta que deu origem a esta audiência pública. 

No meu entender deveria ficar assegurado que, no processo de formalização da garantia de alienação sobre o imóvel prometido à venda, os direitos e obrigações dos promitentes compradores permaneçam inalterados, assim como os da promitente vendedora que os sub-rogará ao cessionário dos créditos de forma explicita. 

A forma me parece também importante nesse caso, tanto quanto o conteúdo, para tudo devendo ser dada a devida publicidade através do seu registro na matrícula do imóvel.  O instrumento de cessão explicita dos direitos e obrigações da promitente vendedora, juntamente com a cessão dos créditos, poderá ser uma procuração ou cláusulas específicas da Cédula de Crédito Imobiliário – CCI, emitida com lastro no compromisso de compra e venda. 

O promitente comprador deverá, de qualquer modo, ser notificado a respeito da cessão do seu crédito e da obrigação do cessionário de outorgar-lhe a escritura definitiva do imóvel em lugar da promitente vendedora, imediatamente após a quitação do preço contratado. 

Na hipótese da inadimplência do promitente comprador, secundada pela inadimplência da originadora/promitente vendedora/fiduciante, poderá o fiduciário adotar os procedimentos de execução e consolidação da propriedade prevista na Lei 9.514/97, porém restrito ao domínio e a posse indireta, já que a posse direta estaria dada ao promitente comprador, enquanto não desfeito o compromisso de compra e venda.     

3. Sobre a possibilidade de desdobramento da posse de imóvel prometido à venda, para efeito de constituição de garantia de alienação fiduciária a favor de terceiro, cessionário dos recebíveis originados da promessa de compra e venda 

Não me parece pacífico o entendimento de que o promitente comprador de unidade habitacional detenha a sua posse plena, impedindo, por força de conseqüência o seu desdobramento para efeito de constituição de alienação fiduciária como defendem o Dr. Melhin Namem Chalhub e Alexandre Assolini. 

Embora se verifique alguma tendência no sentido do entendimento que o promitente comprador deteria, além da posse direta do imóvel, também a indireta, restringindo-se o promitente vendedor a mero prestador de serviços de construção, não me parece que esse tipo de tese possa prosperar por muito tempo, dada a sua absoluta inconsistência com os princípios mais elementares da economia e da administração. 

No máximo, no meu modo de ver, o promitente comprador de um imóvel detém a sua posse precária, enquanto não pago o preço integral. 

Além disso, o legislador, ao imaginar a forma de operacionalizar a alienação fiduciária, conforme preceitua o Artigo 23 da Lei 9.514, adotou o desmembramento da posse em direta e indireta, não como pré-requisito para a contratação do novo instituto jurídico, mas sim porque este é o conceito vigente para o tratamento da segmentação de direitos sobre os imóveis no ordenamento jurídico brasileiro. 

Tomo emprestado, para exemplificar mais uma vez, a afirmação do Dr. Marcelo Terra sobre este tema, de que o artigo 23 da Lei 9.514 representa o esforço didático do legislador de explicar como se processa a aplicação da alienação fiduciária em garantia e não a intenção de inibir a sua contratação em determinadas condições. 

Por último, julgo relevante mais uma vez ressaltar que o veículo adotado para uma operação de securitização ou os seus acessórios não tem o condão de modificar a essência dos contratos originais adotados como lastro. Se a natureza de um contrato de compromisso de compra e venda lhe faz frágil, embora tenhamos a possibilidade de agregar algumas couraças de proteção desse lastro em relação a terceiros, persistirá a relação de fragilidade entre os contratantes originais.  

“Suum cuique tribuere” 

É a minha opinião. 

Atenciosamente,



[i]* Pedro Klumb é economista. 



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