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A união estável e seus reflexos notariais e registrais - Valestan Milhomem da Costa*
A Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, que regulou o § 3º do art. 226 da Constituição Federal, no que concerne à conversão da união estável em casamento, estabelece em seu art. 5º que “os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.”
O parágrafo primeiro esclarece, porém, que a presunção do caput não se aplica àqueles bens adquiridos com produtos de bens havidos anteriormente ao início da união.
Trata-se de louvável inovação jurídica que visa a corrigir os abusos e as incertezas envolvendo o patrimônio das pessoas que, embora vivendo como entidade familiar, não estão protegidas pelo casamento e a resultante segurança patrimonial que este normalmente encampa.
Não obstante a nobreza do instituto, o legislador não disciplinou o modo pelo qual seria dada publicidade, através do fólio imobiliário, da aquisição desse direito condominial de propriedade dos conviventes, dificultando a identificação dos verdadeiros proprietários dos imóveis, principalmente nos casos em que apenas um dos conviventes figurar como proprietário no registro de imóveis, pois nenhuma previsão expressa foi feita quanto à possibilidade do registro do contrato de constituição de sociedade conjugal (Livro 3 – Registro Auxiliar, com base no art. 177 c/c 178, VII da Lei 6.015/73) e/ou averbação da existência da união estável na matrícula (Livro 2 – art. 167, II, item 5) do imóvel respectivo, com o fito de prevenir os direitos de propriedade daquele convivente que não figurar no título aquisitivo levado a registro.
Essa lacuna se torna relevante, na medida em que, no direito pátrio, a aquisição da propriedade só ocorre com o registro do título constitutivo ou transmissivo da propriedade no ofício imobiliário. Essa já era a regra ao tempo da edição daquela lei (art. 530 do Código Civil de 1916) e ainda é a regra traçada no art. 1.227 do novo Código Civil, onde lemos que “os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código.” Ou seja: só é dono aquele que figurar como tal no Cartório de Registro de Imóveis.
Apesar de o Código Civil vigente ter atribuído à união estável, na questão patrimonial, o mesmo tratamento dado aos casados sob o regime da comunhão parcial de bens, se não houver contrato dispondo em sentido diverso (art. 1.725), a realidade dos casados e dos conviventes não é a mesma, pelos seguintes motivos:
1) sendo o adquirente casado, obrigatoriamente far-se-á menção na escritura ao nome do cônjuge, ao regime de bens adotado e demais formalidades de praxe, e quando a escritura tiver ingresso no fólio imobiliário, essas informações, concernentes ao nome e qualificação dos cônjuges, regime de bens, etc., constarão do registro na matrícula do imóvel.
2) de outro lado, se o adquirente vive em união estável, mas declara ser solteiro, desquitado, separado, divorciado ou viúvo, nenhuma menção se faz na escritura ao nome do companheiro, e, quando a escritura adentrar no ofício imobiliário, o registro da propriedade será feito apenas em nome de um dos conviventes, sem nenhuma menção ao nome do outro ou à existência da união estável.
Qual a conseqüência lógica?
Quando solicitada uma certidão da matrícula daqueles imóveis, todos saberão que, no primeiro caso, o imóvel pertence a um casal, não obstante ter comparecido na escritura apenas um deles, uma vez que o nome do outro consta no fólio registral; no segundo, entenderão que pertence a uma única pessoa, já que não consta o nome de outra. Ou seja: perante terceiros, o proprietário é sempre aquele que consta na matrícula como tal.
Isso ocorre em razão dos princípios emanantes aos Registros Públicos, mormente ao registro imobiliário, dentre eles o da continuidade e o da publicidade, sob pena de, se desconsiderados, tornar temerárias as relações contratuais.
Pelo princípio da continuidade temos que somente será viável o registro de título contendo informações perfeitamente coincidentes que aquelas constantes da respectiva matrícula sobre as pessoas e bem nela mencionados.
O princípio da publicidade, a seu turno, visa a proteção dos interesses de terceiros, dando a estes a segurança de que as informações constantes dos registros públicos correspondem à realidade presente quanto às pessoas interessadas e ao bem a que se refere, sendo, portanto, no dizer de Nicolau Balbino Filho, “a alma dos registros públicos. É a oportunidade que o legislador quer dar ao povo de conhecer tudo o que lhe interessa a respeito de determinados atos. Deixa-o a par de todo o movimento de pessoas e bens.” (Registro de Imóveis, 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999).
Sendo assim, como conciliar esses princípios com o direito presumido de propriedade dos conviventes sobre bens imóveis, a que se refere o art. 5º da Lei 9.278/96, nos casos em que estes forem adquiridos por apenas um deles, após o início da união estável e em razão do esforço comum, se não se mencionar a existência dessa união estável na matrícula dos imóveis respectivos?
Por exemplo: como saber se o alienante que figura na matrícula de um imóvel como não sendo casado vive ou não em união estável? Terá o tabelião ou o adquirente que indagar isso caso a caso? Estarão estes obrigados a isso? E se o convivente que figura como proprietário no registro de imóveis vender sem o comparecimento do outro? Dependerá o companheiro prejudicado sempre da tutela judicial para assegurar o seu direito criado em lei? Seria caso de nulidade? De anulação? Se não figura na matrícula, qual a natureza jurídica do direito desse convivente, real ou pessoal? Ou, ainda, se não figura na matrícula, como seria qualificado na escritura, como vendedor ou como anuente? Se como vendedor, como ficaria o princípio da continuidade no registro de imóveis, já que não figura na matrícula? Se é co-proprietário, como dizer que é simples anuente? Afinal, se é condômino, porque não figura como tal na matrícula?
Tabeliães atentos
O silêncio da lei em regular de forma clara essa inovação em nosso sistema jurídico, tem levado atentos tabeliães, bem como terceiros interessados em adquirir um imóvel, quando o alienante é solteiro, ou separado, ou desquitado, ou viúvo ou divorciado, a adotar paliativos com vistas a proteger o adquirente de futura contestação quanto a eventual existência de união estável, inserindo nas escrituras declarações que visam a demonstrar a boa-fé do adquirente, tais como “que o alienante não vive em união estável”, ou “que vive em união estável mas que o bem foi adquirido com produto de outros bens havidos antes da união estável”, ou, ainda, “que apesar de viver em união estável, o imóvel é de propriedade exclusiva do alienante em razão de acordo firmado entre os conviventes”, hipótese em que deve ficar arquivada no Cartório uma cópia do contrato de sociedade conjugal. Todos esses cuidados são tomados exclusivamente para que o adquirente tenha a certeza de que o alienante é o único dono do bem transacionado.
Ora, para que servem os princípios da continuidade e da publicidade se não se puder ter a certeza de que o que consta no Registro de Imóveis é a realidade? Além do mais, embora esses cuidados possam servir à proteção dos interesses dos adquirentes, não servem para a proteção dos interesses do convivente ausente do registro imobiliário.
Isso tudo poderia ser evitado se o legislador houvesse autorizado objetivamente o registro (lato sensu), no Registro de Imóveis, repositório dos dados imobiliários e de sua titularidade, da existência da união estável, a exemplo de outros diplomas, como a Lei nº 9.785/99 e a Lei nº 10.267/01, em razão do princípio da legalidade que circunscreve os registros públicos.
Como resolver o impasse?
É possível averbar no Registro de Imóveis a existência da união estável? Em sendo possível, o que deve instruir o pedido de averbação?
Comentando a Lei dos Registros Públicos, Walter Ceneviva (167:1999) esclarece que “a enumeração constante do n. I do art. 167 é exemplificativa, na medida em que não esgota todos os registros possíveis”, e daí conclui (168:1999): “a) nada obsta a que registros outros, além dos alinhados, possam ser feitos; b) todavia, nenhum assentamento alheio à regra geral do art. 172 deve ter inserção imobiliária.”
Ora, se a enumeração do n. I do art. 167 é exemplificativa, também o é a enumeração do n. II do mesmo artigo, até porque o art. 172 contempla registro e averbação, ao dizer:
“Art. 172. No registro de Imóveis serão feitos, nos termos desta lei, o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, “inter vivos” ou “mortis causa”, quer para sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, que para sua disponibilidade.” (grifamos)
O item 5, inciso II da Lei Registrária, por sua vez, refere-se a averbação “da alteração do nome por casamento ou por desquite, ou, ainda, de outras circunstâncias que, de qualquer modo, tenham influência no registro ou nas pessoas nele interessadas.” (grifamos).
É inegável que a existência da união estável, nos termos da lei, constitui para os conviventes direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, mas que, para sua validade em relação a terceiros, deverá constar do fólio imobiliário, e, sendo essa uma ‘circunstância que tem influência no registro ou nas pessoas nele interessadas’, se manifestará no Registro de Imóveis mediante ato de averbação.
Contudo, embora não seja necessário haver contrato escrito para a constituição da união estável em si, é evidente que a averbação no Registro de Imóveis não poderá ser realizada sem um ato prévio (escritura pública ou escrito particular) que a configure, haja vista referir-se o art. 172 da lei registrária a registro e averbação de ATO (constitutivo ou declaratório), e não de FATO, que, aliás, por si só, não significa que a situação patrimonial dos conviventes seja aquela regulada em lei, pois os conviventes podem ajustar de modo diferente.
Além disso, o legislador não definiu o momento em que os conviventes ajustariam acerca da participação de cada um no acervo imobiliário adquirido, se antes ou após a constituição da união estável, podendo esse ajuste, pelo visto, ser realizado a qualquer tempo, sempre por escrito.
Portanto, é o ATO de constituição da sociedade conjugal (repita-se: escritura pública ou escrito particular, este com o devido reconhecimento das firmas dos signitários) que dará ao registrador condições de verificar os exatos contornos dos direitos ajustados pelos convenientes, imprimindo maior clareza aos fatos e circunstâncias constantes de seus registros, sobretudo quanto a se aquele bem constitui ou não patrimônio comum dos conviventes. Será essa clareza que dará SEGURANÇA aos negócios jurídicos.
Do mesmo modo, ainda que prescindível, não parece objetável, dentro dos parâmetros do art. 172 da Lei Registrária, que se proceda ao registro do contrato de constituição de sociedade conjugal no livro 3, Registro Auxiliar, servindo de base tanto para a definição da relação patrimonial dos conviventes, numa futura conversão da união estável em casamento, nos termos da lei, como para nortear os bens comuns ao casal na hipótese de sucessão (1.790 do NCC).
Não obstante a exegese do art. 172 c/c 167, II, 5, da Lei Registrária ser permissiva à averbação e ao registro de atos concernentes à união estável, melhor seria se a matéria fosse regulada expressamente nas Consolidações/Provimentos dos Tribunais de Justiça competentes, pacificando-se os procedimentos junto aos Cartórios de Registro de Imóveis e elidindo-se os paliativos na seara Notarial, alcançando-se de forma segura os objetivos da lei no que tange à união estável.
Naturalmente, a possibilidade de se averbar a união estável na matrícula dos imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, não esgota todos os problemas, pois, mesmo assim, é possível que uns e outros deixem de tomar essa providência, o que tem acontecido, par de vezes, até mesmo com aqueles que são legalmente casados.
Porém, ao se tornar viável essa providência, ter-se-á, ao menos, (1) a diminuição dos casos de incerteza e temeridade a que atualmente estão sujeitos os negócios imobiliários envolvendo alienante que vive em união estável, evitando-se que aquisições aparentemente perfeitas venham a ser questionadas por falta de informações exatas na matrícula do imóvel, e (2) dar-se-á aos adquirentes a certeza de terem adquirido um imóvel, e não uma eventual demanda jurídica. Ou seja: será possível alcançar, ao menos em parte, a paz social, o objetivo último da lei.
* Valestan Milhomem da Costa é Oficial Substituto do 1º Serviço Notarial e Registral Cabo Frio – RJ.
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