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CESSÃO DE CRÉDITO IMOBILIÁRIO E ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL OBJETO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA REGISTRADO - Parecer de Maria Helena Leonel Gandolfo
Senhor Presidente.
Antes de analisar a viabilidade do registro de contratos de cessão de crédito imobiliário e alienação fiduciária de bem imóvel objeto de compromisso de compra e venda, formalizados com base no parecer jurídico encaminhado pelos advogados Carlos Eduardo da Costa Pires Steiner, Michael Altit e pelo estagiário Eduardo Messias Altemani - do escritório Motta, Fernandes Rocha, Advogados – e noticiado no Boletim Eletrônico 749 instaurando a Audiência Pública 3/2003, pareceu-me oportuna uma prévia reflexão sobre a possibilidade de alienação a terceiro (simples, não fiduciária), de imóvel compromissado.
O compromisso de compra e venda, como é cediço, é um contrato bilateral que cria para ambos os contratantes obrigações e direitos. O promitente vendedor obriga-se a transmitir o imóvel, uma vez recebido o preço convencionado, e o promissário comprador obriga-se a comprá-lo mediante o pagamento do valor estipulado. Tem, portanto, o promitente vendedor, direito ao recebimento do preço e ao promissário comprador fica assegurado o direito de, uma vez cumprida sua obrigação, exigir do promitente vendedor que lhe outorgue a escritura definitiva.
Deixo de discorrer, para não me alongar, sobre os sucessivos tratamentos que a lei conferiu a esse instituto a partir de seu surgimento com o Decreto-lei 58/37. Parece-me suficiente ressaltar duas características relevantes desse contrato: a) o pagamento do preço confere ao promissário comprador direito à adjudicação compulsória do imóvel; b) uma vez registrado, atribui ao promissário comprador direito real oponível a terceiros.
Por outro lado, há dois aspectos do compromisso de compra e venda que merecem ponderação. Em primeiro lugar, o fato de ser um direito real diferente dos demais. No entender de Caio Mario da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil, Forense, 2a. ed., vol. IV, p. 380), não se trata de um direito real de gozo ou fruição (como as servidões ou o usufruto) e nem de um direito real de garantia (hipoteca ou penhor) mas de um direito real de aquisição.
Em segundo lugar, a existência do direito de seqüela vinculado ao compromisso, apontado no parecer em exame, e que pelo mesmo civilista, ao analisar os efeitos produzidos pela oponibilidade erga omnes, é assim tratado no trecho que transcrevo:
“Com o novo princípio, foi instituído para a promessa de venda o direito de seqüela, vinculado desta sorte o compromisso de venda ao próprio imóvel. Em poder de quem quer que se encontre, o imóvel acha-se gravado no direito real de promessa de venda. Em conseqüência, o promitente comprador tem o poder de exigir a escritura definitiva. Do promitente vendedor originariamente. Mas, se o imóvel tiver sido alienado a terceiro após a inscrição da promessa, o adquirente o recebe onerado, e a ele é oponível o direito de receber a escritura, independentemente de outras condições, além daquelas que constam do instrumento inscrito” (ibidem, p. 385 – grifos do original).
Não ignoro que o Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, em diversos acórdãos (apelações cíveis 285.658, 2.517-0, 2.523-0 e 3.568-0, da década de 1980, e mais recentemente, 24.753-0, de 1995, para citar alguns) decidiu pela impossibilidade da alienação a terceiro de imóvel compromissado. Tais decisões enfocam precipuamente a questão da prioridade entre um direito de propriedade e um direito real limitado, levando-se em conta não o fato irrelevante de se tratar de instrumento particular ou escritura pública, mas a data da prenotação dos títulos, e enfatizam o direito do promissário comprador ao recebimento da escritura definitiva.
Em que pesem tais decisões, sempre entendi, data venia, que não haveria obstáculo para a venda, a terceiro, de imóvel compromissado, desde que o promissário comprador, ciente da transação, soubesse a quem deveria efetuar o pagamento e quem assumiria a obrigação de lhe outorgar a escritura definitiva. E, obviamente, desde que o adquirente do imóvel compromissado tivesse ciência dos direitos e obrigações advindos da sua aquisição.
Aliás, com a lucidez e o bom senso que sempre nortearam os ensinamentos do nosso mestre Gilberto Valente da Silva, na seção “IRIB Responde” (Boletim IRIB n° 289, de junho/2001), encontramos a seguinte orientação a respeito da adjudicação de imóvel prometido à venda:
“Nada impede que os adjudicatários, ex-credores, transmitam o imóvel, desde que o comprador se mostre, por escrito, na escritura, ciente da existência do contrato particular de promessa de venda, registrado. Significa que os adjudicatários adquiriram a propriedade, com todos os direitos (em que se sub-rogaram) de receber as prestações, mas também, com todas as obrigações (nas quais também se sub-rogaram). Quem adquirir o bem também se sub-rogará nos direitos e obrigações decorrentes do compromisso, devendo manifestar-se ciente de tal sub-rogação na escritura”.
Concorde-se ou não com o raciocínio até aqui desenvolvido, a verdade é que, agora, o art. 1.418 do novo Código Civil expressa claramente que o promitente vendedor pode ceder seus direitos a terceiro, cabendo a este outorgar a escritura definitiva ao promissário comprador.
Portanto, não há, a meu ver, nada que impeça o promitente vendedor, que permanece como proprietário do imóvel, de aliená-lo a outra pessoa, que se sub-rogará nos direitos e obrigações decorrentes do compromisso registrado. Direitos que consistem no recebimento das prestações faltantes e a obrigação de outorgar ao promissário comprador a escritura definitiva.
Restava-me apenas opinar sobre o punctum saliens da questão: o mesmo aplica-se à hipótese da consulta? Isto é: achando-se registrado um compromisso de compra e venda, é possível a emissão, pelo proprietário, de uma Cédula de Crédito Imobiliário, representativa de seu crédito, e a alienação fiduciária do imóvel a terceiro?
Tomei conhecimento, porém, através do dossiê que me foi enviado pelo IRIB no dia 20 de agosto passado, da existência de consulta encaminhada em 23 de setembro de 2002 pela Brazilian Securities Cia. de Securitização, através de seus advogados, ao MM. Juiz da 1a Vara de Registros Públicos, versando o mesmo assunto com algumas indagações complementares. Foi também juntada ao mencionado dossiê, manifestação da ARISP – Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo, datada de 19 de novembro de 2002, elaborada por sua Assessoria Jurídica, bem como sentença do MM. Juiz Venício Antonio de Paula Salles, proferida no dia 27 de fevereiro do corrente ano.
Como ignorava que esse tema vinha sendo ventilado há praticamente um ano, já tendo sido solucionado pelo titular da Vara de Registros Públicos, conquanto sua decisão aguarde ratificação da E. Corregedoria-Geral da Justiça, procurei estudar, refletir e trocar idéias sobre ele, a fim de emitir meu parecer, conforme solicitado no mencionado Boletim Eletrônico 749.
Todavia, ante a leitura do dossiê, agora recebido, referente à Audiência Pública n° 3, penso cabível restringir-me tão-somente às quatro questões elencadas na manifestação da ARISP como sendo de interesse para os Registros de Imóveis. Por outro lado, entendo que o estudo e a conclusão devem levar em conta qualquer imóvel compromissado, não se limitando às incorporações e suas unidades autônomas, em construção ou concluídas, embora a consulta feita pela Brazilian Securities Cia. de Securitização refira-se particularmente ao mercado das incorporações imobiliárias. É preciso lembrar que, uma vez normatizado o procedimento registrário, deverá ser ele aplicado a qualquer hipótese. Reformulo, portanto, as questões, expondo meu entendimento ao final de cada uma delas.
1ª questão: Achando-se registrado um compromisso de compra e venda, é possível a emissão, pelo proprietário, de uma Cédula de Crédito Imobiliário representativa de seu crédito, e a alienação fiduciária do imóvel a terceiro?
Não há dúvida alguma sobre a possibilidade de emissão, pelo promitente vendedor, de uma CCI representativa do seu crédito. Qualquer pessoa – física ou jurídica – titular de um crédito imobiliário pode emitir a CCI (art. 7o e §§ da Medida Provisória 2.223/01). Entendo também, reportando-me às mesmas razões com as quais justifiquei meu ponto de vista ao tratar da alienação ordinária, ser possível a alienação fiduciária do imóvel a terceiro. Entretanto, as peculiaridades que envolvem o negócio fiduciário – tais como o fato de constituir uma transmissão temporária da propriedade, de ser constituído um patrimônio separado não atingido pelos efeitos de eventual insolvência do devedor ou do credor, e de se tratar de direito real sobre coisa própria – obrigam a uma reflexão mais cuidadosa a respeito da relação contratual preexistente entre o promitente vendedor e o promissário comprador, do procedimento de execução no caso de inadimplência deste último, bem como dos atos registrários a serem praticados nas diversas etapas do negócio jurídico em pauta.
Os pontos que podem gerar controvérsia foram apontados nas três outras questões.
2ª questão: Há necessidade da anuência do promissário comprador para essa alienação fiduciária?
Penso que não. Basta que ele seja notificado a quem deve pagar as parcelas do preço avençado e de quem irá receber, uma vez cumprida sua obrigação, a escritura definitiva do imóvel.
Pretende o consulente que, uma vez concluído o pagamento das obrigações assumidas no compromisso de compra e venda, a propriedade do bem imóvel volte para o promitente vendedor original, que será o responsável por outorgar a escritura definitiva ao promissário comprador. Já o escritório Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra, na consulta que formulou à 1ª Vara de Registros Públicos propugna que ao fim e ao cabo do cumprimento integral da obrigação de pagamento do preço, seja conferida ao condômino a competente escritura de venda e compra pelo promitente vendedor, mas podendo este ser representado pelo fiduciário.
São apenas variações em torno da forma como irá ocorrer, com a adimplência do promissário comprador, a transferência a ele do direito de propriedade sobre o imóvel objeto do contrato firmado anteriormente.
O fundamental é que o promissário comprador tenha o seu direito garantido. O parecer do Escritório Motta, Fernandes Rocha procura demonstrar, com argumentos que devem ser analisados nesta Audiência Pública, a ausência de risco, bem como a preservação dos direitos daquele na operação que propõe.
3ª questão: É possível a averbação da emissão de CCI sem que o compromisso esteja registrado?
Em que pese o entendimento da ARISP consubstanciado no parecer elaborado pelo seu douto assessor jurídico, Dr. José de Mello Junqueira, entendo ser inadmissível a averbação de CCI sem o registro do compromisso representativo do crédito a que ela se refere. A averbação, ressalvados os casos do art. 167, II, da LRP, é ato que altera um registro (art. 246), não me parecendo razoável que se proceda a esse ato sem o registro que lhe dê suporte.
4ª questão: Na eventual inadimplência do promissário comprador, aplica-se o art. 26 e seus parágrafos, da Lei 9.514/97?
Esta me parece ser a questão mais complexa e que merece análise mais cuidadosa.
Ao ser firmado o contrato de compromisso estabeleceu-se uma determinada relação contratual entre o promitente vendedor e o promissário comprador. Se, ante a inadimplência deste, aplicar-se a Lei 9.514/97, essa relação contratual estaria sendo modificada à sua revelia, uma vez que ele não concordou com a alienação fiduciária do imóvel, mas somente foi cientificado da operação.
Por outro lado, a Lei citada diz respeito à alienação fiduciária, e esta foi celebrada entre o fiduciante (proprietário e promitente vendedor do imóvel) e o fiduciário. Como então, no inadimplemento do promissário comprador que não foi parte nesse contrato, justificar-se a aplicação do art. 26 e seus parágrafos, que cuidam da mora do fiduciante?
As quatro questões acima resumem praticamente o que deveria ter sido debatido na reunião realizada no dia 1o de setembro, no Hotel Pergamon, reunião essa que, conforme noticiado pelo Boletim Eletrônico, foi convocada para dar prosseguimento à Audiência Pública III.
Todavia, após a exposição feita pelo Dr. Carlos Eduardo da Costa Pires Steiner, que representava o escritório consulente, foram acalorados os debates em torno do que dispõe o parágrafo único do art. 23 da Lei 9.514/97, assim redigido: “Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.”
O negócio jurídico proposto pelo consulente, no entender do Dr. Melhim Namem Chalhub, secundado por outros participantes, não atende a essa disposição legal, pois o proprietário-fiduciante (promitente vendedor) não tem como transmitir a posse indireta ao credor-fiduciário uma vez que, tendo firmado anteriormente o compromisso, já transferiu essa posse ao promissário comprador.
A essa objeção, o consulente apresentou diversos argumentos, entre os quais destaco: a) que a questão possessória não é fundamental para a caracterização ou definição do que seja a alienação fiduciária; b) que o vedado pela lei é o exercício da posse direta pelo próprio fiduciário, pois isso consolidaria propriedade e posse em mãos da mesma pessoa, deixando de haver a fidúcia; c) que na hipótese de imóvel locado ou gravado com usufruto, pode o proprietário aliená-lo fiduciariamente embora não detenha a posse.
Esse aspecto do negócio – desdobramento da posse – que, curiosamente, não foi enfocado, seja no parecer da ARISP, seja na sentença do MM. Juiz da 1ª Vara de Registros Públicos, tomou praticamente o tempo restante da reunião, tendo V. Sª, com acerto, postergado a decisão, já que o tema, por parecer complexo, requereria análise mais acurada.
Posso adiantar, no entanto, que aceito como válidos os argumentos do consulente no que diz respeito à questão possessória, expostos em seu segundo parecer, datado de 11 de agosto, como adendo ao primeiro, também anexado ao dossiê.
Todavia, tendo sido proposta pelo Dr. Melhim Namem Chalhub a alternativa da venda condicional (cfr. BE #828, 16/9/2003, NE) em substituição à alienação fiduciária, reservo-me para manifestação definitiva tão logo me seja enviado parecer do proponente sobre essa modalidade de alienação.
São Paulo, 8 de setembro de 2003.
Maria Helena Leonel Gandolfo
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