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A função registral e a atuação do Judiciário - Breves considerações sobre a desapropriação judicial e a concessão real de uso - Kioitsi Chicuta*
1. INTRODUÇÃO
Na precisa conceituação de Mário Guimarães, o juiz "é a autoridade a quem compete, no Estado, o encargo de administrar a justiça" (cf. O Juiz e a Função Jurisdicional, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1958, 1.ª edição, pág. 33) e integra ele o órgão específico através do qual o Estado exerce a relevante e essencial função jurisdicional.
O Poder do Estado exerce-se por meio de três funções distintas e ao Poder Judiciário é atribuída preponderantemente a de julgar, daí porque a própria Constituição Federal, em seu artigo 5.º, inciso XXXV, dispõe como direito individual a apreciação pelo Judiciário de qualquer lesão ou ameaça de direito.
Quando se trata, porém, de regularização fundiária, principalmente a de imóveis urbanos, a questão extrapola os limites da função jurisdicional e passa a exercer o julgador, também, a função administrativa. Em ambas as atuações fica o juiz obrigado a observar os fundamentos da República Federativa do Brasil, principalmente a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, inciso III, da Carta Magna) e objetivos fundamentais, como: a) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; b) a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais; e c) promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Tradicionalmente, a regularização fundiária se fazia com observância da Lei 6.766/79, mas, agora, a visão não é mais tópica e sim abrangente, o que pode ser observado pela Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, que estabelece as diretrizes básicas da política urbana, na forma do artigo 182 da Constituição Federal (a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes), dispondo no parágrafo 1.º que "o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana", acrescentando no parágrafo 2.º que "a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor".
Salta claro que, em todas as cidades, principalmente aquelas de grande porte como São Paulo, inúmeras são as ocupações decorrentes de invasões ou parcelamentos clandestinos e parte das quais em próprios municipais, fazendo com que soluções sejam adotadas para inclusão desse segmento no mundo legal, inclusive com títulos inscritos no Registro de Imóveis para que haja até mesmo outorga de direitos reais aos possuidores e titulares de direitos.
Evidentemente, não se busca, nesta breve exposição, o esgotamento das vias de acertamento de situações de fato, merecendo enfoque em apenas duas vertentes: a primeira relativa à denominada desapropriação judicial, quando, em ação petitória, é possível ao juiz determinar a transferência da titularidade de domínio aos possuidores diretos, mediante indenização, e a segunda em relação às concessões de uso.
2. DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL
O parágrafo 4.º, do artigo 1.228, do Código Civil, estabelece que "o proprietário pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nele houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante", dispondo no parágrafo 5.º que "no caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores".
Ao justificar a inclusão desse dispositivo, Miguel Reale deixou claro que ele considerou a inovação como "do mais alto alcance, inspirada no sentido social do direito de propriedade, implicando não só novo conceito desta, mas também novo conceito de posse, que se poderia qualificar como sendo de posse-trabalho" (Exposição de Motivos ao Ministro da Justiça, cf. "Diário do Congresso Nacional, pág. 121).
A inspiração dessa norma encontra eco em caso prático ocorrido em São Paulo, em que os lotes de terreno foram invadidos e os invasores ali formaram favela e que, depois, foi dotada de equipamentos urbanos. O Tribunal de Justiça reconheceu direito de indenização aos proprietários que ajuizaram ação reivindicatória, deixando claro, porém, que os "lotes de terreno urbanos tragados por uma favela deixam de existir e não podem ser recuperados, fazendo, assim, desaparecer o direito de reivindicá-los. O abandono dos lotes urbanos caracteriza uso anti-social da propriedade, afasto que se apresenta do princípio constitucional da função social da propriedade. Permanece, todavia, o direito dos proprietários de pleitear indenização contra quem de direito" (cf. Apelação 212.726, da 8.ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, relator o Desembargador José Osório, em 16/12/94). A ação reivindicatória restou julgada improcedente.
Por meio da atuação jurisdicional é possível ao juiz determinar a transferência de propriedade aos ocupantes de área considerada extensa, com posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, que nela tenham, em conjunto ou separadamente, realizado obras e serviços considerados como de interesse social e econômico relevante. Os requisitos objetivos encontram-se presentes, restando à doutrina e à jurisprudência, à míngua de maiores detalhes, interpretar o que significam "extensa área", "considerável número de pessoas", realização de obras e serviços de "interesse social e econômico relevantes".
O que preocupa, porém, ao estudioso do direito, é a ausência de formas específicas para regularização dessa mesma ocupação, eis que há sempre o suposto de que um grupo "considerável" de famílias que ocupa propriedade de terceiro. É evidente que o juiz, em sua função jurisdicional, não terá preocupação imediata com o acertamento individual da ocupação de cada família para fins de registro do parcelamento do solo urbano, mas apenas de atribuição de título de propriedade, após indenização, aos possuidores das parcelas ocupadas.
Ainda que munido de memorial descritivo, especificando a porção individualizada de cada possuidor (e sua respectiva família), o Registro de Imóveis poderá recusar o registro do parcelamento, eis que não ouvidos os órgãos responsáveis e até mesmo o Ministério Público, que ostenta a condição jurídica de Curador dos Registros Públicos ou mesmo de fiscal da ordem urbanística. Nesse aspecto, não há como obrigar a intervenção de pessoas que sequer são partes no processo de conhecimento (a Municipalidade, o Estado, por exemplo) e os possuidores sequer ostentam legitimidade para postularem aprovação de parcelamento perante os órgãos públicos quando sequer têm certeza de que a decisão lhes será favorável.
A sentença deverá outorgar título de propriedade aos possuidores como se fossem condôminos, com especificação da fração ideal de cada qual, para que, após o registro, postulem a regularização do parcelamento. Trata-se de problema que merece maior reflexão, pois aqui há suposto de situação de fato diversa daquela abrigada pela usucapião constitucional e a indenização fixada deve ser suportada por aqueles que irão se beneficiar com a aquisição do direito de propriedade. Não se vê como se possa transferir ao Estado tal responsabilidade.
3. CONCESSÃO REAL DE USO
Os artigos 15 a 20 do Estatuto da Cidade restaram vetados pelo Presidente da República, quando submetido o projeto à sanção, destacando ele que o projeto contrariava "o interesse público sobretudo por não ressalvarem do direito à concessão de uso os imóveis públicos afetados ao uso comum do povo, como praças e ruas, assim como áreas urbanas de interesse da defesa nacional, de preservação ambiental ou destinadas a obras públicas. Seria mais do que razoável, em caso de ocupação dessas áreas, possibilitar a satisfação do direito à moradia em outro local, como prevê o art. 17 em relação à ocupação de áreas de risco". Além disso, destacou o Chefe do Executivo que o uso da expressão "edificação urbana" permitiria regularização de cortiços em imóveis públicos, faltando, também, a fixação de "uma data-limite para a aquisição do direito à concessão de uso especial, o que torna permanente um instrumento só justificável pela necessidade imperiosa de solucionar o imenso passivo de ocupações irregulares gerados em décadas de urbanização desordenada".
Em substituição aos artigos vetados, o Presidente da República editou a Medida Provisória 2.220, estabelecendo como data limite o dia 30 de junho de 2001, atribuindo àquele que possuir como seu, por cinco anos, ininterruptamente, e sem oposição, desde que não seja proprietário ou concessionário de outro imóvel urbano ou rural, o direito à concessão de uso especial para fins de moradia no imóvel público situado em área urbana e com área de até 250m2 (art. 1.º). O dispositivo é semelhante àquele referente à usucapião constitucional ou especial, com a ressalva de que os imóveis públicos não podem ser usucapidos (art. 183, § 2.º, da Constituição Federal).
A concessão de uso especial para fins de moradia, consoante anota Regis Fernandes de Oliveira, "é a única forma de garantir a posse e a permanência daqueles que estariam em condições de adquirir a propriedade desses bens, caso não fossem públicos" (cf. "Comentários ao Estatuto da Cidade", Ed. Revista dos Tribunais, 2002, pág. 63).
O primeiro aspecto diz respeito à data limite e que restou consignada como sendo 30/06/2001. Prevalece ela também para os Estados e os Municípios. A Constituição Federal, em seu artigo 30, inciso I, estabelece que compete aos Municípios "legislar sobre assuntos de interesse local", acrescentando no inciso VIII que compete a ele "promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle de uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano". A competência para legislar sobre direito urbanístico é concorrente (art. 24, inciso I, da Constituição Federal). Não se trata de regulamentar direito de propriedade, mas concessão de uso especial e pode o Município, assim como o Estado, estabelecer outras hipóteses de incidência e prazos diversos, prevalecendo aquele federal em caso de omissão. Nesse sentido também é o escólio de Regis Fernandes de Oliveira (ob. cit., pág. 63).
A concessão nada mais é do que contrato e Maria Sylvia Zanella Di Pietro diz que se trata de "contrato administrativo pelo qual a Administração faculta ao particular a utilização privativa de bem público, para que a exerça conforme a sua destinação" (citação feita por Régis Fernandes de Oliveira, ob. cit., págs. 64/65). O que era faculdade, porém, passa a ser direito do possuidor e a Administração não pode recusar o contrato.
Outra questão interessante é a necessidade ou não de desafetação. Alguns autores de nomeada sustentam que não há necessidade de desafetação da área. Celso Antonio Bandeira de Mello esclarece que "afetação é a preposição de um bem a um dado destino categorial de uso comum ou especial, assim como desafetação é sua retirada do referido destino" (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 4. ed., p. 392). No caso em análise, o bem não está afetado a qualquer uso, ou seja, integra a categoria dos bens dominicais, que, no entender do mesmo jurista, "são os próprios do Estado como objeto de direito real, não aplicados nem ao uso comum, nem ao uso especial, tais os terrenos ou terras em geral, sobre os quais tem senhoria, à moda de qualquer proprietário, ou que, do mesmo modo, lhe assistam em conta de direito pessoal" (ob. cit., p. 391). Como se vê, se os bens estão afetados ao uso comum do povo ou a uso especial, estão livres para qualquer tipo de ocupação ou destino, podendo o Estado deles dispor livremente. Logo, desnecessário falar-se em desafetação, uma vez que não estão eles afetados (cf. Régis Fernandes de Oliveira, ob. cit., pág. 66).
Matéria interessante diz respeito a um dos óbices colocados no veto presidencial, ou seja, a obtenção do direito em caso de ocupação de imóvel em bem de uso comum do povo. O artigo 5.º da Medida Provisória 2.220 estabelece que "é facultado ao Poder Público assegurar o exercício do direito de que tratam os arts. 1.º e 2.º em outro local na hipótese de ocupação de imóvel: I - de uso comum do povo; II - destinado a projeto de urbanização; III - de interesse de defesa nacional, de preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais; IV - reservado à construção de represas e obras congêneres; ou V - situado em via de comunicação". A doutrina invoca exemplo da família que mora debaixo de um viaduto e que preenche os requisitos legais. Ela obterá direito à concessão de uso em outro local.
Ao lado desses preceitos, a Medida Provisória estipulou possibilidade de autorização, quando o imóvel não se destina a moradia (art. 9.º).
Há, como se vê, tentativa de trazer essa camada desfavorecida da população ao mundo legalizado, buscando outorgar-lhe títulos de direito real, inclusive dispondo no art. 7.º que "o direito de concessão de uso especial para fins de moradia é transferível por ato inter vivos ou causa mortis". O direito de concessão de uso especial para fins de moradia pode ser reconhecido por ato administrativo ou por decisão judicial e tem publicidade, de caráter declaratório, com o registro no Registro Predial (art. 166, inciso I, n.º 37, da Lei 6.015, de 31/12/1973, com a redação dada pela Medida Provisória 2.220).
O Judiciário, por certo, quando instado, dará sua resposta, mas existem algumas questões que merecerão devida atenção. Na medida em que um número considerável de pessoas ocupa imóvel público e a Administração lhes outorga a concessão de uso especial, fica ela obrigada a atender aos requisitos necessários a todo e qualquer parcelamento? A urbanização é o controle do crescimento das cidades e a urbanificação é o que José Afonso da Silva denomina de "processo deliberado de correção da urbanização, consistente na renovação urbana, que é a reurbanização, ou na criação artificial de núcleos urbanos, como as cidades novas da Grã Bretanha e Brasília. O termo urbanificação foi cunhado por Gaston Bardet, para designar a aplicação dos princípios do urbanismo, advertindo que a urbanização é o mal, a urbanificação é o remédio" (cf. "Direito Urbanístico Brasileiro", Ed. Malheiros, São Paulo, 2.ª edição, 1995, pág. 21).
As próprias diretrizes gerais da política urbana compelem o intérprete a exigir que a preocupação de dar amparo a um número limitado de pessoas deve encontrar eco no interesse comum de todos os munícipes, como, por exemplo: a) direito a "cidades sustentáveis"; b) planejamento do desenvolvimento das cidades, com correção das distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; c) ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a utilização inadequada dos imóveis urbanos, a proximidades de usos incompatíveis ou inconvenientes, o parcelamento do solo inadequado em relação à infra-estrutura urbana.
O ideal seria que todos os órgãos públicos fossem ouvidos, mas a sistemática imposta pela lei é semelhante àquela da usucapião especial, com a única diferença de que ela recai em imóvel público urbano. Em assim sendo, cuidando-se de outorga, não de título de propriedade, mas de direito de concessão especial de uso, em reconhecimento a direito já constituído, é possível a recepção do título administrativo ou judicial pelo Registro de Imóveis sem que exija previamente a mesma tramitação dos pedidos de registro de parcelamento. Deve, a princípio, existir sempre matrícula do imóvel aberta em nome do Poder Público e a existência de planta arquivada para controle da disponibilidade.
Enquanto faculdade, era exigível da Administração prévia análise de todos esses elementos. Na medida em que passou à condição jurídica de direito do possuidor, desde que os requisitos sejam atendidos, é obrigação do Poder Público de outorgar o respectivo título, sob pena do interessado socorrer-se do Poder Judiciário.
Finalmente, há o artigo 48 do Estatuto da Cidade que assim dispõe: "nos casos de programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidos por órgãos ou entidades da Administração Pública, com atuação específica nessa área, os contratos de concessão de direito real de uso de imóveis públicos: I - terão, para todos os fins de direito, caráter de escritura pública, não se aplicando o disposto no inciso II do art. 134 do Código Civil; II - constituirão título de aceitação obrigatória em garantia de contratos de financiamentos habitacionais".
Tais concessões de direito real de uso estão dispensadas de licitação pelo art. 17, I, f, da Lei 8.666, de 21/06/93 (cf. Toshio Mukai, in "O Estatuto da Cidade", Ed. Saraiva, São Paulo, 2.001, pág. 54).
4. CONCLUSÃO
A regularização fundiária, como se vê, não se encerra em ato isolado do Executivo, aprovando o parcelamento e verificando sua observância às regras vigentes. É preciso que o ato se materialize juridicamente com a criação jurídica das frações destacadas e, para tanto, passa necessariamente pelo Registro de Imóveis.
Nesse aspecto, a qualificação nem sempre se encerra no Registro Predial, socorrendo-se os interessados do Poder Judiciário, quer na sua atuação anômala (administrativa), quer na sua função jurisdicional. Em relação a sua atuação administrativa, através do Juiz Corregedor-Permanente ou da Corregedoria-Geral da Justiça, múltiplas têm sido sua atuação, principalmente frente às situações de fato e de direito em confronto com a Lei 6.766, de 1.979. Agora, porém, com a edição da Constituição Federal, em seguida da Lei 10.257, de 2.001, do novo Código Civil e da Medida Provisória 2.220, de 2.001, outros segmentos restaram criados ou reavivados, com a participação mais intensa do Poder Judiciário.
Sua atuação, porém, não deve se pautar pela eqüidistância, mas integrada no contexto maior previsto na Constituição Federal e no novo conceito introduzido pelo Direito Urbanístico, consciente da necessidade de transformação das cidades em locais adequados e suficientemente estruturados para dar aos seus moradores e freqüentadores o que o Estatuto denomina de cidades sustentáveis, ou seja, "o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações" (art. 2.º, inciso I). Assim procedendo estar-se-á dando vida ao artigo 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil, ou seja, "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".
* Kioitsi Chicuta é Juiz do Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo
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