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ISS sobre emolumentos notariais e registrais - Equívocos e injuridicidades da incidência - Álvaro Melo Filho*


Este trabalho, longe de ser um estudo profundo, tem apenas o animus de suscitar o debate e estimular a reflexão, sobretudo daqueles que serão diretamente afetados pela recém publicada Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2.003. Este novel diploma legal exterioriza a indisfarçável e progressiva voracidade fiscal, ao revogar e substituir toda a legislação de ISS, de competência dos Municípios, ampliando exageradamente as hipóteses de incidência, pois a Lista de Serviços saltou de 108 para 230 itens, a par de fixar, no seu art. 8º, II, que será de 5% a alíquota máxima (que na prática será a mínima).  

Um item específico chama a atenção na Lista de Serviços da LC nº 116/03 ao instituir e tornar cogente o ISS sobre os emolumentos (art. 236, § 2º da CF) auferidos pelos atos praticados por ofícios notariais e registrais:  

21 – Serviços de registros públicos, cartorários e notariais.  

        21.01 – Serviços de registros públicos, cartorários e notariais.

Preliminarmente, à evidência, o legislador infraconstitucional demonstra que fez tabula rasa da Carta Política do país ao utilizar a ultrapassada e defasada terminologia serviços cartorários, pois o caput do art. 236 da Lei das Leis refere-se tão apenas a serviços notariais e registrais, autorizando o intérprete a inferir que a “exumada” expressão “cartorários” pretendeu, sub-repticiamente, restabelecer o significado pejorativo que esta palavra passou a ter no linguajar comum e diário. Demais disso, parece que o legislador ignora o fato de que os “cartórios” não mais se transmitem hereditariamente, e que, muitos dos serviços são executados sem qualquer despesa para os seus usuários.  

É imperioso destacar que o Supremo Tribunal Federal já construiu remansosa, iterativa e pacífica jurisprudência no sentido de que os emolumentos  (art. 236, § 2º da CF e Lei Federal nº  10.169, de 29.12.2000) têm a natureza tributária de taxa. Com efeito, na ADI 1378 MC/ES, cujo Relator foi o Min. Celso de Mello (DJ de 30.05.97, p. 23175) está expresso de forma clara e induvidosa que:  

“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que as custas judiciais e os emolumentos concernentes aos serviços notariais e registrais possuem natureza tributária, qualificando-se como taxas remuneratórias de serviços públicos, sujeitando-se, em conseqüência, quer no que concerne a sua instituição e majoração, quer no que se refere a sua exigibilidade, ao regime jurídico-constitucional pertinente a essa especial modalidade de tributo vinculado, notadamente aos princípios fundamentais que proclamam, dentre outras, as garantias especiais (a) da reserva de competência impositiva, (b) da legalidade, (c) da isonomia e (d) da anterioridade”. (grifou-se).  

Se, por absurdo, fossem consideradas insuficientes tão relevante e fundamentadas razões jurídicas promanadas do acatado e eminente Ministro, basta conferir no RE 116208 (in RTJ 132/867), na ADI 948 (in RTJ 172/778) e na ADI 2040 (in RTJ 173/75) que são alguns  dos decisórios, todos com semelhante interpretação, reforçando a posição uníssona e coerente da Corte Suprema. E, para dissipar, de vez, quaisquer dúvidas sobre a natureza tributária dos emolumentos, atente-se para o art. 5º da Lei nº 10.169/00 ao dispor que “o valor dos emolumentos poderá sofrer reajuste, publicando-se as respectivas tabelas, até o último dia do ano, observado o princípio da anterioridade”.   

Nesse contexto, se os emolumentos, sem tergiversações de seu sentido e alcance, têm a natureza jurídica de taxa, dessume-se que esta tipologia tributária não pode transfundir-se como base de cálculo para a exigibilidade do ISS, outra espécie do gênero tributo. Vale dizer, está-se diante de um tributo (ISS - imposto) incidindo sobre outro tributo (Emolumentos - taxa), o que, nos planos fático e jurídico, vulnera e macula ditames e princípios constitucionais e tributários.  

Na esteira deste raciocínio, não se pode deslembrar que “a atividade notarial e registral, ainda que executada no âmbito de serventias extrajudiciais não oficializadas, constitui, em decorrência de sua própria natureza, função revestida de estatalidade, sujeitando-se, por isso mesmo, a um regime jurídico de direito público” (ADI 1378 já referida). Vale dizer, as atividades notariais e registrais destinadas “a garantir a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos” (Lei nº 8.935/94, art. 1º), efetivadas “em caráter privado por delegação do Poder Público” (CF, art. 236), no dizer do insigne Min. Celso de Mello no acórdão já aludido, “não descaracteriza a natureza essencialmente estatal dessas atividades de índole administrativa”, donde se deduz que se trata de “serviços públicos”, até porque “dotados de fé pública”, na dicção do art. 3º da Lei nº 8.935/94.  

E se as atividades notariais e registras quadram-se como serviços públicos do Estado, o óbice ou vedação de tributação exsurge, de modo transparente, no art. 150, VI, “a” da Carta Magna, verbis:  

“Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:  

VI – instituir impostos sobre:   

Patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros.”  

Aduza-se, por oportuno, que, na própria legislação tributária os emolumentos (taxas) incidem sobre o chamado serviço público específico previsto no  art. 79, inciso II do Código Tributário Nacional quando assim define: "Consideram-se específicos os serviços públicos quando passam a ser destacados em unidades autônomas de intervenção, de utilidade ou de necessidade públicas". Isto significa dizer, que, na concepção do próprio CTN,  tão apenas a espécie TAXA pode ser exigida como contrapartida da prestação de serviços públicos, sendo, desse modo, incogitável a instituição de qualquer IMPOSTO sobre serviços públicos, como decorrência da proibição expressa e direta esculpida no art. 150, VI, da Lei das Leis.      

No plano doutrinário WALTER CENEVIVA afirma, categoricamente, que "notários e registradores são profissionais do direito, mas praticantes de serviço do interesse público" e ainda mais que "o serviço notarial e de registros atribui garantia às pessoas naturais ou jurídicas... a garantia referida é, ainda, própria do serviço público. Gera responsabilidades para o Estado e para os titulares dos respectivos serviços..." (In "Lei dos Notários e dos Registradores Comentada", ed. Saraiva, 1996, 1ª ed., pág. 24).  

Na esfera jurisprudencial, O STF já definiu, no voto condutor do Min. Djaci Falcão que “entre nós, não se pode negar o caráter de serviço público dos ofícios de justiça e de notas” aduzindo, a seguir “quer no foro judicial, seja no chamado foro extrajudicial, desempenham uma função eminentemente pública”(Rp 891, RTJ 68/295).  

À luz dos postulados constitucionais tributários, assim como da legislação, doutrina e jurisprudência aplicáveis à hipótese aqui analisada, verifica-se, com clareza solar, que a exigibilidade de ISS, de competência dos Municípios, sobre atividades notariais e registrais delegadas pelo Poder Público, e, caracterizadas como típicos serviços públicos, tornam-na de absoluta e manifesta injuridicidade e inconstitucionalidade, porque fruto da volúpia fiscal, causa maior e determinante de sua equivocada inclusão na Lista de Serviços anexa à LC nº 116/03.  

Cumpre anotar, de outra parte, que a referida Lei Complementar nº 116/03, no § 3º do art. 1º prescreve literalmente que:  

“Art. 1º - ....................  

§ 3º - O imposto de que trata esta Lei Complementar incide ainda sobre os serviços prestados mediante a utilização de bens e serviços públicos explorados economicamente mediante autorização, permissão ou concessão, com o pagamento de tarifa, preço ou pedágio pelo usuário final do serviço.” (grifou-se)  

Nesse diapasão, extrai-se do texto transcrito que a cobrança do ISS pode ocorrer nas hipóteses de autorização, permissão ou concessão, o que não é o caso dos serviços notariais de registrais que são exercidos por “delegação do Poder Público”.  

É cediço que o legislador, especialmente o constituinte, não faz uso de sinonímia. Por isso, não há como se confundir “delegação” (art. 236, CF) com “concessões, permissões e autorizações”, igualmente constantes do Texto Constitucional (art. 21, XI e 223, caput), tornando patente que se trata de hipóteses absolutamente distintas e inconfundíveis. Ou seja, a Constituição Federal prevê expressamente os quatro institutos e não um, e, por imperativo lógico-interpretativo, conclui-se que há diferenças entre eles, sob pena de olvidar-se a lição de Carlos Maximiliano de que “não se presumem, na lei, palavras inúteis”. Outrossim, não se pode condenar à inutilidade categorias jurídicas com identidade conceitual já consagradas e sedimentadas na legislação, doutrina e jurisprudência pátria, e, por isso mesmo, acolhidas e esculpidas na Lei Maior, sendo defesa ou vedada qualquer alteração conceitual por normas de inferior hierarquia ou interpretação imprópria e distorcida. 

 Recorde-se que concessão é o instituto mediante o qual o Estado atribui a terceiro o exercício de um serviço público (nunca sua titularidade, que é intransferível), que será prestado em nome próprio, por conta e risco do concessionário, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob a garantia contratual de um equilíbrio econômico e financeiro, cobrado geralmente por meio de tarifas e com prazo determinado de duração. A concessão de obra pública é o mais comum exemplo desta tipologia.  

Já o instituto da permissão pode ser definido como a atribuição de um serviço público, a título precário, mediante licitação e através do chamado contrato de adesão, feita pelo Poder Público à pessoa física ou jurídica que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e seu risco. Um exemplo sempre repontado é o de facultar a instalação de bancas de jornal ou de tabacarias em logradouro público.  

A autorização é o ato unilateral pelo qual a Administração, discricionariamente, faculta o exercício de atividade material, tendo, como regra, caráter precário, de que são exemplos o porte de arma ou a autorização para exploração de jazida mineral.  

A delegação, para os fins a que se propõe este trabalho, é o ato que envolve, do ângulo do poder delegante, forma de representação do poder estatal ao credenciar seu delegado, e, sob o prisma do delegado (notários e registradores), é vinculada ao cargo público atribuído ao seu exercente, em caráter permanente, criado por lei, com denominação própria, dependente de aprovação em concurso público e submetido à fiscalização pelo Poder Judiciário. Nesse passo, traz-se à colação exemplos deduzidos, com maestria, por Hely Lopes Meirelles para quem  os serventuários de ofícios não estatizados, os leiloeiros, os tradutores e intérpretes públicos, as demais pessoas que recebem delegação para a prática de alguma atividade estatal ou serviço de interesse coletivo.  

É importante registrar que o festejado mestre Celso Antônio Bandeira de Mello, no seu “Curso de Direito Administrativo”, Ed. Malheiros, S. Paulo, 9ª ed, p. 450, ressalta que delegação “como bem se vê na linguagem constitucional, quadra melhor para designar a investidura no desempenho de atividade jurídica – e não atividade material (caso da concessão). De fato, o art. 236 da Lei Maior serve-se da voz delegação para atividades eminentemente jurídicas, as notariais e de registro, ao passo que no art. 21, XI e XII, refere-se a concessões para serviços materiais como os telefônicos, telegráficos, de radiodifusão...”. Por isso, pode-se asseverar que a delegação envolve atividades não econômicas, enquanto a concessão, a permissão e a autorização albergam atividades econômicas.  

Seria verdadeiramente absurda, porque expressiva de delirante autoritarismo e desprezo pela Constituição, a exigibilidade de ISS sobre os serviços notariais e registrais, pois, como adverte Ferrara (in “Interpretação e Aplicação das Leis”, 1937, S. Paulo, Saraiva & Cia. Editores, p. 28), “o intérprete deve apurar o conteúdo da vontade que alcançou a expressão em forma constitucional e não já as volições alhures manifestadas ou que não chegaram a sair do campo intencional. Pois que a lei não é o que o legislador quis exprimir, mas tão-somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei”. E não é outra a lição de Rui Barbosa, que se ajusta como uma luva à hipótese sub examine, ao averbar que “em presença de um texto claro, preciso, inequívoco, não há que estar argumentando como se nos achássemos ante um enunciado incompleto ou indistinto, do qual houvéssemos de extrair por ilações ou deduções a ilação mais plausível. (Parecer in Revista do Supremo Tribunal, vol. 9, p. 305). (...) Aqui não há controvérsias de interpretação. Interpretação cessat in claris. A Constituição modelou a expressão da sua vontade em termos inequívocos”.  

Impende deixar claro, ainda, que os emolumentos não se confundem com “tarifa, preço ou pedágio” (§ 3º do art. 1º da LC nº 116/03), até porque sua fixação ou quantificação resulta de lei, de cada unidade federativa, no exercício de competência concorrente, para atendimento das peculiaridades locais; ou seja, não é tarifa, nem preço, nem pedágio, dado que, nestas hipóteses, é o valor cobrado pela prestação de serviços públicos por empresas públicas, sociedades de economia mista, empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos. Os ofícios notariais e registrais não são empresa pública ou privada e nem sociedade de economia mista, mas titularizados por pessoas físicas responsáveis por aqueles serviços, inviabilizando, também por esta ótica, sua inclusão na lista definidora do ISS anexa à LC nº 116/03.  

Diante das observações feitas, deflui-se e conclui-se, sem o mais mínimo malabarismo exegético contorcionista, sobretudo quando a mens legis não dá azo a interpretação diversa, que delegação e emolumentos são expressões alheias e inexistentes no § 3º do art. 1º da LC nº 116/03; conseqüentemente, refogem à órbita de incidência do ISS, sendo, assim, insustentável a mantença do item 21.01 da nova Lista de Serviços anexa àquele diploma legal, por afrontar postulados e normas constitucionais, malferir a legislação infra-legal aplicável, ofender a doutrina e atropelar a jurisprudência sobre a matéria aqui examinada.  

Enfim, como preleciona Konrad Hesse, “todos os interesses momentâneos – ainda quando realizados – não logram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado respeito à Constituição”, especialmente quando, o apontado item 21.01, da tão realçada Lista de Serviços da LC nº 116/03, classifica-se como hipótese tributária abusiva, visivelmente írrita, insubsistente, nula e desvestida de qualquer validade e consistência jurídicas, e, portanto, insusceptível de produzir quaisquer efeitos jurídicos. 

* Álvaro Melo Filho é Professor de Direito Registral Imobiliário – Graduação e Pós-graduação da UFC.  Mestre e  Livre-Docente em Direito . Advogado. Autor de 35 livros jurídicos.
 



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