BE423
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O direito a moradia sob ameaça - Melhim Namem Chalhub
Na falta de uma política habitacional, a sociedade vai resolvendo o problema da habitação por seus próprios meios. Em certos casos, o Estado não precisa ajudar. Com efeito, não havendo oferta de crédito, a solução adotada pela classe média é a aquisição de imóvel em construção, com financiamento direto do incorporador. Essa modalidade de negócio, entretanto, pode expor os adquirentes a risco, em caso de atraso ou paralisação da obra e, principalmente, em caso de falência da incorporadora, pois neste caso eles terão de disputar seus direitos com os demais credores, no Juízo da Falência, e poderão perder suas economias. O caso Encol é emblemático.
Para proteger os adquirentes, é preciso que a lei estabeleça tratamento jurídico-patrimonial destacado ao acervo de cada incorporação, determinando a segregação de cada incorporação, a partir do seu orçamento próprio, como forma de assegurar que os recursos aportados para determinada incorporação não sejam embaralhados com recursos aportados para outras obras. Em conseqüência, a lei deve assegurar todas as condições jurídicas para que, em caso de falência da incorporadora, os adquirentes passem a administrar diretamente a incorporação, prosseguindo a obra e pagando os credores com recursos do orçamento do empreendimento.
É preciso garantir aos adquirentes que, em caso de falência, as quantias que aportaram à obra terão tratamento discriminado, e isso só será alcançado se os recursos aportados para determinada obra não forem confundidos com os destinados a outras obras. Para esse fim é preciso segregar cada incorporação e dar tratamento especial para os credores que participam da construção, sobretudo os adquirentes. Essa segregação dá condição a que, em caso de falência da incorporadora, os adquirentes prossigam a obra com recursos do orçamento da incorporação, independente do processo judicial. Os direitos dos demais credores da obra são integralmente respeitados.
Essa iniciativa é do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), sobre proposta de nossa lavra que veio a ser adotada pelos projetos de lei, da Câmara, de números 2109/99, 3445/2000 e 3742/2000.
De acordo com essa proposição, cada incorporação constitui um ''patrimônio de afetação'', e isso significa que esse acervo - terreno, construções, receita das prestações, obrigações trabalhistas, previdenciárias etc - fica segregado, com orçamento próprio, e não se comunica com os demais direitos e obrigações da incorporadora. O patrimônio de afetação responde pelas dívidas e obrigações vinculadas à respectiva incorporação, e só por essas, evitando que o orçamento de cada obra sofra inchaço pela sobrecarga de compromissos pessoais do incorporador ou por seus prejuízos em outros negócios. Assim, caso ocorra a falência do incorporador, e estando destacadas as receitas e as despesas relativas a cada obra, cada grupo de adquirentes poderá prosseguir sua obra com segurança, na certeza de que seu desembolso será limitado ao preço contratado para aquisição das unidades. Do ponto de vista dos demais credores vinculados à obra, esse mecanismo também é benéfico, pois a afetação lhes assegura o recebimento de seus créditos diretamente dos adquirentes, sem a delonga e os obstáculos do processo falimentar. Para os trabalhadores o benefício é maior ainda, pois, além de receberem seus salários eventualmente atrasados, terão garantia de emprego, com a continuação da obra. Já as dívidas pessoais do incorporador, obviamente, serão pagas por ele mesmo ou pelo síndico da massa falida. A afetação se aplica automaticamente a todas as incorporações, sem exceção, porque é instrumento que visa a proteger a economia popular.
O Poder Executivo, valendo-se dessa estrutura básica, editou a Medida Provisória nº 2.221/01, acrescentando os artigos 30-A a 30-G à Lei nº 4.591/64, mas enxertou alguns dispositivos e ''virou o jogo'' em favor do Estado arrecadador e do empresário, a saber: a) aumenta a desigualdade entre os mais fortes - o Estado arrecadador e o empresário - e os mais fracos - os adquirentes; b) impõe condição inconstitucional (art. 5º, LIV), ao impedir que os adquirentes prossigam a obra caso não paguem os débitos atrasados do incorporador falido; c) suprime a segurança jurídica do contrato, ao permitir a cobrança, contra o adquirente, de valor superior ao preço contratado para a aquisição; d) possibilita o confisco de bens dos adquirentes, ao obrigá-los a pagar o imposto de renda e a contribuição social sobre o lucro da empresa incorporadora.
Com efeito, o que está em questão é a segurança dos adquirentes, vale dizer, a proteção da economia popular, e para efetivá-la a lei deve prever a incidência automática da afetação sobre todas as incorporações, sem exceção e independente de qualquer providência do incorporador. Contrariando esse interesse social, o art. 30-A, na sua parte inicial, inverteu o sentido dessa garantia, ao torná-la uma opção do incorporador, em detrimento da garantia do adquirente.
Outra grave distorção da MP 2221/01 é a transferência de renda dos adquirentes para o Estado e para os demais credores da massa falida. Essa política de Robin Hood às avessas está no art. 30-D, seus parágrafos e incisos, que obrigam os adquirentes a assumir dívidas pessoais do incorporador e de outras obras, elevando o preço de aquisição da unidade acima do valor contratado. Esse aumento de preço é absolutamente injurídico, pois o contrato de incorporação é, por natureza, comutativo, e isso significa que a obrigação do incorporador (construir e entregar um apartamento) e a obrigação do adquirente (pagar o preço contratado) têm valores equivalentes, não podendo ser exigido do adquirente nem mais nem menos do que o valor contratado. O aumento dos encargos dos adquirentes, sem que lhes seja dada qualquer contrapartida, viola os princípios da eqüidade e do equilíbrio do contrato, consagrados pelo Código de Defesa do Consumidor (arts. 4º, III, 7º, 39, IV e V, 51, 1º, II e IV, e 4º). Mas ainda que não fosse essa aberração, o Código Tributário Nacional impede esse aumento de carga tributária, ao estabelecer que uma pessoa só pode ser responsabilizada pelo pagamento de determinado imposto se houver ''relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador'' (art. 121, parágrafo único, inciso I); quer dizer: os adquirentes de apartamentos, assim como os adquirentes de barcos ou os compradores de geladeiras, jamais poderão ser responsáveis pelo imposto de renda da empresa vendedora, seja ela a incorporadora ou o estaleiro ou a fábrica de geladeira.
A MP 2221/01 vai mais além. O art. 2º do art. 30-C impede os adquirentes de dar andamento na obra caso esses não paguem os débitos atrasados do incorporador. Esse direito já era consagrado pela Lei 4.591/64 (art. 43, III), e sua supressão contraria a própria finalidade da MP, que é liberar a obra para os adquirentes, e não bloqueá-la. Acima de tudo, a proibição é inconstitucional, pois os adquirentes são titulares de direitos sobre a obra e, pelo art. 5º, LIV, da Constituição, ninguém pode ser afastado da administração dos seus direitos sem o devido processo legal.
Como se vê, é preciso extirpar os enxertos da MP 2221/01 para restaurar os direitos do cidadão, sobretudo para resgatar o sistema de proteção da economia popular.
Para isso, o Estado não precisa ajudar. Basta não atrapalhar.
Melhim Namem Chalhub é advogado
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