BE399
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Seminário O Estatuto da Cidade - Parte II
Veja as palestras do 2º dia de discussões sobre a Lei 10.257/01
O segundo dia do Seminário Estatuto da Cidade (1º/11/01), realizado no Maksoud Plaza Hotel, em São Paulo-SP, pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil em parceria com o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo e pelo Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo - SecoviSP foi dedicado à discussão do conceito de ordem urbanística e da usucapião coletiva. Aqui você acompanha trechos dos trabalhos apresentados, que serão publicados integralmente na Revista do Direito Imobiliário.
Palestras: 1º/11/01
4º Painel - Conceito de Ordem Urbanística - Coordenador: Gilberto Valente da Silva - Advogado e Assessor Jurídico do IRIB
Palestra 1 - 4º painel
A ORDEM URBANÍSTICA
Victor Carvalho Pinto - Assessor Jurídico da Secretaria Especial de desenvolvimento Urbano da Presidência da República
Introdução
O Estatuto da Cidade incluiu entre as hipóteses de ação civil pública a defesa da "ordem urbanística". Na verdade, a redação anterior da lei já admitia a proposição de ações civis públicas em matéria urbanística, através de inciso relativo a "outros interesses difusos". Apesar disto, a explicitação da matéria urbanística é importante, pois a coloca em pé de igualdade com as demais matérias explicitadas, quais sejam: o meio ambiente, o consumidor e o patrimônio histórico, artístico e paisagístico. Esta simples menção certamente estimulará em muito o estudo do direito urbanístico, notadamente entre os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário. Além disto, poderá induzir as associações civis envolvidas com temas urbanos a se utilizarem com mais freqüência do Poder Judiciário, seja diretamente, seja em parceria com o Ministério Público.
Tal atuação da sociedade civil e do Ministério Público apresentam grande importância, por um motivo muito simples. Os principais beneficiários das normas urbanísticas são os moradores da cidade, considerados conjuntamente. Entretanto, devido a sua natural dispersão, eles tendem a ser a parte mais fraca no mundo político. Muito mais ativos são os proprietários, empreiteiros, loteadores e incorporadores, segmentos cujos negócios podem ser diretamente afetados pelas normas urbanísticas. Assim sendo, a ação civil pública em defesa dos interesses difusos da sociedade é a principal esperança de aplicação prática do direito urbanístico, impedindo que ele venha a ser desvirtuado por autoridades políticas comprometidas com interesses particularistas.
Introduzido o termo no direito positivo, cabe agora refletir mais detidamente sobre seu significado. Que é exatamente a "ordem urbanística"? Como toda questão jurídica, também esta tem na origem um problema prático, qual seja: como deve se dar a atuação do Poder Judiciário no campo da política urbana?
Objetivos da Política Urbana
A resposta a este pergunta envolve uma compreensão dos princípios e institutos de direito urbanístico. Este ramo do direito regula a atuação urbanística do poder público, que foi denominada constitucionalmente como "Política Urbana". A atuação do Estado sobre as cidades é muito intensa, excedendo em muito a intervenção geralmente verificada em outros setores da economia.
Embora a maior parte dos imóveis urbanos seja de propriedade privada, esta propriedade é completamente conformada pelas normas urbanísticas. Estas são veiculadas por planos e projetos urbanísticos, que determinam os usos permitidos e os índices urbanísticos obrigatórios para cada terreno. Através destes usos e índices, o poder público define com grande precisão o tipo de construção que poderá ser feita em cada parte da cidade.
Além da regulação do mercado imobiliário privado, o Estado também atua diretamente sobre as cidades, seja realizando obras públicas, seja prestando serviços públicos. Em certo sentido, os imóveis privados não podem sobreviver se não estiverem cercados de imóveis públicos. O lote privado só pode existir se tiver acesso ao sistema viário, que é de propriedade pública. Além disso, a edificação urbana precisa ser conectada a redes de infra-estrutura, através das quais são fornecidos serviços públicos como abastecimento de água, coleta de esgotos e fornecimento de energia elétrica.
A política urbana tem por objetivo coordenar todas estas formas de transformação do ambiente construído, visando aumentar o bem-estar dos habitantes da cidade e promover o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (art. 182).
O Caráter Normativo da Palavra "Ordem"
É claro que as cidades sempre apresentam alguma ordem em sua configuração territorial. Esta ordem pode ser de difícil apreensão, diante do aparente caos em que estão imersas muitas cidades. Entretanto, à medida em que se conhece o funcionamento do mercado imobiliário e do sistema político, é possível perceber e compreender os padrões recorrentes de desenvolvimento urbano. Dentre estes padrões, poder-se-ia citar a expansão periférica de baixa densidade, o adensamento excessivo das áreas centrais, a ociosidade de terrenos urbanizados no interior das cidades, a ocupação de áreas de risco pela população de baixa renda, etc. Neste caso, estamos utilizando a palavra "ordem" em sentido descritivo, ou seja, procurando entender os processos reais que governam a cidade como ela é.
Distinção entre "Urbano" e "Urbanístico"
Quando se pensa em uma ordem urbanística a ser defendida pelo Poder Judiciário, o que se procura é um conceito normativo de ordem. Aqui intervém o elemento valorativo, que é próprio de qualquer reflexão jurídica. É importante notar que a própria palavra "urbanística" já traz consigo uma conotação de intencionalidade, ao contrário da palavra "urbano", que tem conotação descritiva. "Urbano" é tudo o que ocorre no interior das cidades, independente de ser produto da ação consciente de algum agente ou não. Já "urbanístico" é apenas aquilo que diz respeito a uma ação consciente sobre a cidade. O congestionamento de tráfego é urbano, por ocorrer na cidade, mas não urbanístico, pois não foi criado voluntariamente por ninguém. O metrô, por outro lado, é urbanístico, por ter sido criado intencionalmente pelo poder público, e também é urbano, por estar na cidade.
Ordem Urbana e Desordem Urbanística
É importante notar que a distinção entre urbano e urbanístico não traz consigo um valor axiológico. É verdade que o urbanístico procura em geral resolver problemas urbanos, mas também é verdade que muitas vezes as atuações urbanísticas podem agravar os problemas urbanos, uma vez que toda ação provoca numerosos efeitos não intencionais, alguns dos quais imprevisíveis. De outro lado, nem tudo no urbano é problema. A ordem criada pela atuação espontânea dos agentes econômicos consegue em alguma medida atender às necessidades humanas. Se não fosse assim, não haveria migrações para as cidades e estas já teriam desaparecido da face da terra. Por mais insatisfatória que seja a ordem urbana, é preciso ter muito cuidado ao tentar substituí-la por uma ordem urbanística, pois os resultados nem sempre coincidem com as intenções. Uma intervenção urbanística pode não apenas fracassar quanto aos objetivos pretendidos, mas também romper a ordem urbana, criando, aí sim, um caos urbano prejudicial ao bem-estar dos habitantes da cidade. Um exemplo seria a remoção de favelas para conjuntos habitacionais na periferia, política praticada nas décadas de 1960 e 1970, que afastou os "beneficiários" de seus empregos e dos serviços públicos, criou bairros residenciais segregados, favoreceu a especulação imobiliária e expandiu excessivamente a mancha urbana.
Massenzi, Life in the slum, 1996.
Embora toda ação estatal no campo da política urbana seja urbanística, nem sempre ela estará produzindo uma ordem, em sentido normativo. O direito urbanístico não protege qualquer atuação urbanística, mas apenas aquelas que estão a serviço de uma ordem urbanística, ou seja, que estão efetivamente contribuindo para o objetivo supremo da política urbana, que é o bem-estar dos habitantes da cidade.
Fundamento Constitucional da Ordem Urbanística
A Constituição consagra em diversos dispositivos esta exigência de racionalidade e de coerência nas ações urbanísticas. Ao definir a competência urbanística municipal, ela deixa muito claro que o "controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano", se faz para "promover adequado ordenamento territorial" (art. 30, VIII). No mesmo sentido, a função social da propriedade urbana é cumprida pelo atendimento às "exigências fundamentais de ordenação da cidade" (art. 182, § 1o). Em ambos os casos, trata-se de produzir uma ordem de caráter normativo, não descritivo, à qual é atribuído um valor axiológico positivo.
Diretrizes de Política Urbana
Como distinguir uma situação em que há ordenação de outra em que esta não ocorre? Os critérios mais importantes foram positivados pelo Estatuto da Cidade no art. 2o, que tratou das diretrizes gerais da política urbana. Estas que eram apenas orientações extra-jurídicas aprendidas nas escolas de urbanismo, passam agora a integrar o ordenamento positivo, podendo sua violação ser contida pelo Poder Judiciário. As diretrizes não podem ser exigidas como regras absolutas, mas como objetivos que devem, em princípio, ser perseguidos. Muitas diretrizes são limitadas por outras diretrizes, ou seja, não é possível cumprir todas elas integralmente ao mesmo tempo. O poder público goza de ampla discricionariedade para fazer a ponderação dos objetivos da política urbana, buscando um compromisso entre as diversas diretrizes. O que não se admite é o sacrifício absoluto de uma diretriz ou uma não aplicação que não esteja fundamentada em outra diretriz. Dentro do âmbito definido pelas diretrizes, o poder público goza de "liberdade de planejamento", ou seja, há uma infinidade de soluções urbanísticas legítimas, cuja escolha é assunto eminentemente político. A violação injustificada de uma ou mais diretrizes já passa a ser um problema jurídico, reclamando a atuação do Poder Judiciário.
O Estatuto da Cidade muitas vezes já inclui em um mesmo inciso duas diretrizes que precisam ser compatibilizadas. Exemplificando. O "direito a cidades sustentáveis" (art. 2o, I) envolve dois aspectos: o direito à cidade, ou seja, "à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer" e a exigência de que tudo isto seja sustentável, vale dizer, "para as presentes e futuras gerações". Não se pode, portanto, para garantir direitos sociais à população de baixa renda, comprometer áreas de proteção ambiental, tais como os mananciais de água potável da cidade. Daí porque se exige que a "regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas pela população de baixa renda" leve em consideração as "normas ambientais" (art. 2o, XIV).
Dentre as diretrizes positivadas, merecem destaque aquelas que dizem respeito mais diretamente ao ordenamento territorial. A ordenação e controle do uso do solo tem por finalidade evitar a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes, o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana, a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização, a deterioração das áreas urbanizadas e a poluição e degradação ambiental (art. 2o, VI). Normas urbanísticas que permitam ou favoreçam a proximidade entre usos incompatíveis, o congestionamento da infra-estrutura, a especulação imobiliária, a deterioração dos centros ou que comprometam a sustentabilidade ambiental devem ser consideradas inconstitucionais, pois estarão violando os objetivos da política urbana de pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e do bem-estar de seus habitantes, nos termos em que foram detalhados pela legislação ordinária.
Muitas vezes, entretanto, a legislação urbanística contribui para elitizar o mercado imobiliário, mediante exigências excessivas. Lotes mínimos grandes e coeficientes de aproveitamento baixos são a receita, por exemplo, para a produção de mansões. Se este padrão for generalizado para toda a zona urbana e de expansão urbana, a população de média e baixa renda ficará excluída do mercado, mesmo que tenha poder aquisitivo para adquirir lotes menores ou apartamentos. Daí a importância da diretriz de "simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais" (art. 2o, XV).
Ao lado destas diretrizes propriamente urbanísticas, há outras que atuam indiretamente sobre o urbanismo e que contribuem para eliminar as causas da "desordem" urbanística. De fato, a principal razão para que o controle do uso do solo não esteja servindo aos objetivos recém citados deve-se ao fato de que os investimentos públicos e as normas urbanísticas afetam os cidadãos não apenas enquanto moradores, mas também enquanto proprietários. Se para os moradores convém sempre que as densidades sejam proporcionais à infra-estrutura, o mesmo não se pode dizer dos proprietários. Em muitas circunstâncias, estes têm interesse em manter ociosos seus terrenos ou em utilizá-los excessivamente, visando maximizar a utilização da infra-estrutura colocada pelo poder público.
Neste sentido, o Estatuto consagra a diretriz da "justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização" (art. 2o, IX), formulada originalmente no direito urbanístico europeu. Seu significado é o de que os proprietários devem ser tratados com neutralidade pelo urbanismo, não ganhando nem perdendo economicamente com as ações urbanísticas do poder público. Em decorrência, tem-se a diretriz da "recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos" (art. 2o, XI), que é operacionalizada pelos instrumentos da contribuição de melhoria, da outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso e da operação urbana consorciada, assim como pelas regras sobre o valor da indenização de imóveis desapropriados (arts. 4o, VI, b; 28, 29, 32 e 8o, § 2o, I). Também os ônus tem que ser justamente distribuídos. Daí porque se permite a transferência do direito de construir àqueles proprietários que tenham seu potencial construtivo reduzido para proteção do patrimônio histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural (art. 35, II). Na medida em que os proprietários souberem que a valorização ou desvalorização imobiliária causada por uma obra ou norma urbanística será sempre ressarcida, deixarão de atuar sobre o sistema político para obter benefícios. Com isto, tenderão a prevalecer os interesses dos moradores, ou seja dos consumidores da cidade, que são exatamente aqueles a serem refletidos por uma legítima ordem urbanística.
(...)
Palestra 2 - 4º painel
O VALOR ORDEM URBANÍSTICA E SUA TUTELA JUDICIAL
Rodolfo de Camargo Mancuso - Professor de Direito da USP
A qualificação jurídica do valor ordem urbanística.
O art. 53 do chamado Estatuto da Cidade (lei nº 10.257/2.001) veio acrescer um inciso (III) ao art. 1º da lei da ação civil pública (nº 7347/85), fazendo com que o (já dilatado) objeto daquela ação passe a abranger a defesa do valor ordem urbanística. Significa dizer que a ação civil pública prevista na lei 7347/85 para "responsabilidade por danos morais e patrimoniais" (caput do art. 1º) causados a diversos interesses metaindividuais - meio ambiente, consumidor, patrimônio natural e cultural, infração à ordem econômica e à economia popular e bem assim qualquer outro interesse difuso ou coletivo (incisos daquele art. 1º) -, pode agora também ser ajuizada sob color de lesão a mais um interesse metaindividual juspositivado, a saber, a citada ordem urbanística.
Dado que nesse rol já constam alguns valores típicos ou nominados, sendo que o inciso V (agora renumerado) traz uma cláusula de extensão, disponibilizando a ação para "qualquer outro interesse difuso ou coletivo" (fórmula de resto perfilhada ao final do inciso III do art. 129 da CF), põe-se, preliminarmente, a questão de saber: ( i ) se a lei nº 10.257/2.001 veio dispor ex novo, isto é, de modo a deflagrar, a partir de sua vigência, a judicialização de conflitos envolvendo a ordem urbanística, ou, (ii ) ou se o acesso daquele interesse à Justiça já antes era possível, por conta de rubricas antes juspositivadas, como meio ambiente; bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; ou mesmo em face da citada cláusula de extensão - "qualquer outro interesse difuso ou coletivo".
Esse questionamento pressupõe uma perquirição sobre duas possibilidades: ou bem certos valores esparsos pela sociedade como um todo, num dado momento ganham suficiente concreção e densidade quanto à sua relevância social, passando, pour cause, a merecer a devida tutela judicial; ou bem essa judiciabilidade remanesce virtual, contida, no aguardo da vontade política do Estado, a quem cabe o poder-dever de identificar e normatizar condutas, ocorrências, interesses e valores, assim propiciando sua apreciação judicial quando lesados ou ameaçados, no que se costuma chamar a garantia da ubiqüidade da justiça (CF, art. 5º, XXXV).
Este último enfoque, mais pragmático, acomoda-se à concepção tradicional da condição da ação dita possibilidade jurídica do pedido (CPC, art. 295, par. único, III), entendida como a necessária previsão em abstrato, no ordenamento, da pretensão deduzida em Juízo, significando, em breves palavras, que o que não está juspositivado não é judicializável. Todavia, entendendo-se que a instrumentalidade do processo tem dentre seus escopos a facilitação do acesso à Justiça hoje a impossibilidade jurídica do pedido há de se entender restrita a casos extremos, diríamos quase teratológicos, quando desde logo esteja evidente que o pedido - assim como seu fundamento - discrepam do ordenamento positivo, mostrando-se com este incompatíveis, de sorte a tornar inútil a instauração do processo, como por exemplo quando se pretenda a penhora de bem público, ou a cobrança de dívida oriunda de jogo.
Nos demais casos, impende não barrar desde logo a prestação jurisdicional, para não correr o risco de baralhar o direito de ação (que é abstrato) com o mérito da pretensão (saber se ela é ou não fundada). Como dizem Cintra, Grinover & Dinamarco: "Constitui tendência contemporânea, inerente aos movimentos pelo acesso à justiça, a redução dos casos de impossibilidade jurídica do pedido (tendência à universalização da jurisdição). Assim, p.ex., constituindo dogma a incensurabilidade judiciária dos atos administrativos pelo mérito, a jurisprudência caminha no sentido de ampliar a extensão do que considera aspectos de legalidade desses atos, com a conseqüência de que os tribunais os examinam" . Cândido Rangel Dinamarco chega mesmo a avançar nesse ponto: "O máximo que se consegue obter é um grau muito elevado de probabilidade, seja quanto ao conteúdo das normas, seja quanto aos fatos, seja quanto à subsunção destes nas categorias adequadas. No processo de conhecimento, ao julgar, o juiz há de contentar-se com a probabilidade, renunciando à certeza, porque o contrário inviabilizaria os julgamentos".
Sob esse enfoque, digamos, holístico ou ao menos teleológico da relação processual, como instrumento de acesso à Justiça, parece inegável que o controle judicial sobre vários tópicos componentes da ordem urbanística já se mostrava viável ainda antes que o Estatuto da Cidade viesse a inserir tal rubrica, expressis verbis, dentre os interesses metaindividuais arrolados nominalmente no art. 1º da lei 7347/85, visto tratar-se - a ordem urbanística - de um valor notoriamente relevante, de sorte a tornar judicializáveis por definição as afrontas contra ele perpetradas. Aliás, a percepção de que somente os conflitos deflagrados entre direitos subjetivos possam aceder à apreciação judicial, está praticamente superada, hoje se disponibilizando a via jurisdicional também para os conflitos relevando de outras posições jurídicas, tais os interesses legítimos e os direitos reflexamente protegidos.
Ao propósito, escreve José Carlos Barbosa Moreira: "desde que se esteja persuadido - e o consenso, a tal respeito, vai-se tornando universal - da necessidade de assegurar aos titulares proteção jurisdicional eficaz, não importará, tanto, basicamente, saber a que título se lhes há de dispensar tal proteção. Afinal de contas, inexiste princípio a priori segundo o qual toda situação jurídica subjetiva que se candidate à tutela estatal por meio do processo deva obrigatoriamente exibir carta de cidadania entre os direitos, no sentido rigoroso da palavra".
Aliás, o urbanismo, por sua própria natureza, mostra-se um campo fértil para os embates entre massas de interesses, por exemplo, nas operações urbanas consorciadas (arts. 32 a 34 do Estatuto da Cidade), onde o interesse dos empreendedores imobiliários em conseguir o melhor potencial adicional de construção, pagando a menor contrapartida, possivelmente seja objeto de resistência pela Administração Pública. Dessa intensa litigiosidade, própria do embate entre interesses metaindividuais, já falamos em outra sede, lembrando que "a ordenação do solo urbano contraria interesses dos especuladores imobiliários..." , razão pela qual houvemos por bem inserir aquele quesito em nosso conceito de interesse difuso.
Em trabalho vindo a lume em 1999, José Carlos de Freitas retomaria o mote, explicando que "enquanto estes (os especuladores imobiliários) buscam retirar o máximo de aproveitamento econômico dos imóveis, utilizando o maior potencial construtivo do solo de qualificação urbana, de outro lado as posturas urbanísticas incidem para limitar, por exemplo, a altura das edificações, seus recuos e os usos permitidos, visando garantir as condições de estética, segurança, salubridade e conforto para os citadinos (direito de propriedade versus direito coletivo a uma cidade planejada). Ilustram essa conflituosidade, também, as situações em que o mesmo espaço urbano é disputado, de um lado, por grevistas em passeata ao longo de uma via de grande circulação, e, de outro, os motoristas e passageiros de transporte coletivo, que desejam circular em condições livres e desimpedidas (direito de reunião e de manifestação versus direito de locomoção)".
Seguindo na perquirição sobre a qualificação jurídica do valor ordem urbanística, verifica-se que na técnica legislativa, quando o legislador identifica e denomina certos valores - mas não pretende (ou não é possível/conveniente) excluir outros congêneres - costuma valer-se das chamadas cláusulas genéricas, de extensão, ou de encerramento, as quais podem tomar diversa formulação, mais analítica, ou mais sintética. Exemplo do primeiro caso é o par. 2º do art. 5º da CF, dizendo que o elenco dos direitos e garantias constitucionais (incisos I a LXXVII desse artigo) "não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte"; exemplo do segundo caso é a dicção do inciso III do art. 129 da CF, disponibilizando ação civil pública para tutela do "patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos". Aproveitando a deixa, o legislador ordinário, ao ensejo da promulgação do Código de Defesa do Consumidor (1990), tratou de inserir no art. 1º da lei da ação civil pública (7347/85) um inciso (V, na nova numeração) com a cláusula "qualquer outro interesse difuso ou coletivo", ao tempo em que estendeu ao contexto da lei 7347/85 a parte processual do CDC (cf. art. 117 da lei 8078/90).
Assim, quando um texto se utiliza dessas fórmulas abertas, é lícito supor que a mens legis é de cunho abrangente, assim autorizando exegese elástica, de sorte a permitir a inserção dos demais itens periféricos aos valores-núcleo, nominadamente identificados pelo legislador. No ponto, Hugo Nigro Mazzilli: "Inexiste taxatividade de objeto para a defesa judicial de interesses transindividuais. Por isso, além das hipóteses já expressamente previstas em diversas leis (defesa do meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, crianças e adolescentes, pessoas portadoras de deficiência, investidores lesados no mercado de valores mobiliários, ordem econômica, economia popular) - quaisquer outros interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos podem em tese ser defendidos em juízo por meio da tutela coletiva, tanto pelo Ministério Público como pelos demais co-legitimados do art. 5º da LACP e art. 82 do CDC".
Pelas razões que vamos expondo, parece sustentável que antes da lei 10.257/2.001, tópicos subsumidos no valor ordem urbanística já comportavam tutela jurisdicional, como por exemplo o valor estética urbana, enquadrável na rubrica "bens e direitos de valor (...) estético", ( inciso IV, renumerado, do art. 1º da lei 7347/85), e isso mesmo já houvéramos sustentado em estudo específico sobre o flagelo da pichação urbana, conduta que ao depois, em boa hora, viria tipificada no bojo da lei dos crimes ambientais (nº 9.605/98, art. 65). Ainda, caberia lembrar hipótese também por nós antes estudada - o problema das lombadas nas vias públicas - observando José Carlos de Freitas que "a colocação indiscriminada de lombadas (redutores de velocidade transversais) sobre o pavimento das ruas prejudica o fluxo do tráfego, causa congestionamentos, constitui fator de risco aos ocupantes dos veículos, acarreta gastos extras para o automobilista (freios, pneus, sistemas de direção/suspensão e combustível) e prejudica a estética da via pública. Os equipamentos urbanos, além de seu conteúdo utilitário, cumprem função de embelezamento plástico da cidade, razão por que também compõem o patrimônio público como bens e valores estéticos, turísticos e paisagísticos".
De resto, o inciso IV (ora renumerado) do art. 1º da lei 7347/85, ao contemplar os valores artísticos, estéticos, históricos, turísticos e paisagísticos, não deixa dúvida de que os danos infligidos a tais valores por certo que afrontam a ordem urbanística, como pode dar-se, por exemplo, se um sítio arqueológico é depredado ou se é demolida a fachada de um imóvel de particular beleza. A primeira conclusão, portanto, é que o valor ordem urbanística, decodificável em múltiplos aspectos, é socialmente relevante de per si, e, como tal, já beneficiava da devida tutela judicial, particularmente no plano da jurisdição coletiva, independentemente, pois, de expressa juspositivação, agora concretizada pelo art. 53 do Estatuto da Cidade. Com isso não se deslustra, minimamente, o brilho da iniciativa do legislador ao adotar tal alvitre, senão que, ao contrário, desse modo imprimiu-se maior visibilidade normativa ao interesse em causa, o que por certo virá contribuir para ampliar os horizontes de sua área de proteção.
Eis assim, delineado ex vi legis como um interesse metaindividual o valor ordem urbanística, o que o credencia à tutela judicial pelos vários instrumentos que hoje dão acesso à jurisdição coletiva, com destaque para a ação civil pública. Definido esse registro, impende saber quem está credenciado a portar aquele interesse em Juízo, tendo presente que a legitimação que o constituinte reconheceu ao Ministério Público no campo dos interesses difusos e coletivos "não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei" (part. 2º do art. 129), diretriz assimilada pelo legislador ordinário, que para tal cunhou a legitimação concorrente-disjuntiva, disciplinada no art. 5º , incisos e parágrafos da lei 7347/85.
(...)
5º Painel - Usucapião Coletiva e Habitação Popular - Coordenador: Sidney Sanches - Ministro do Supremo tribunal Federal
O Coordenador do COHURB Dr. José Carlos de Freitas chamou para a mesa os palestrantes do quinto painel. A seguir, fez um agradecimento especial ao Irib pela renovação do convênio com o Ministério Público e chamou o Ministro Sidney Sanches do Supremo Tribunal Federal para presidir os trabalhos:
Eu gostaria de externar o meu agradecimento ao Instituto de Registro Imobiliário do Brasil pelo convênio que vem sendo mantido com o Ministério Público, e que recentemente foi renovado. Esse convênio proporciona, por exemplo, eventos como este graças à sensibilidade do seu presidente Dr. Lincoln Bueno Alves, que está deixando a presidência do Instituto, mas que será substituído, ao que tudo indica, pelo Sérgio Jacomino, que entre todos os predicados também é corintiano como eu... ninguém é perfeito!
Mas eu quero externar este agradecimento ao IRIB e em especial a um convênio que tende a se espalhar por outros estados da federação. Eu tenho notícias de que o Espírito Santo também está em vias de finalizar um convênio nos mesmos moldes daquele que foi firmado entre os registradores imobiliários e o Ministério Público de São Paulo. Eu só quero parabenizar o presidente do Irib, Dr. Lincoln, pela iniciativa.
Quero agradecer a presença aqui de um ilustre e brilhante magistrado, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, que nos honra com a sua presença e dizer que ele prontamente acolheu nosso pedido para presidir este painel gravado por um interesse social muito grande. Eu quero agradecer ao Ministro Sidney Sanches e pedir à sua excelência que venha à mesa dos nossos trabalhos neste nosso último painel.
Passo, então, a presidência dos trabalhos ao Dr. Sidney Sanches e peço que o Sr. se sinta à vontade nesta casa, em evento do Ministério Público, do Secovi e do Irib: à vontade inclusive para se manifestar, se assim desejar.
Ministro Sidney Sanches:
Senhoras e senhores, em primeiro lugar quero fazer um agradecimento ao Dr. José Carlos de Freitas, promotor de justiça, Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo, ao Irib e ao Secovi pelo convite que me formularam para participar deste evento e presidir um dos seus painéis.
Falarão: Dr. Paulo José Villela Lomar, Dr. Francisco Eduardo Loureiro, Dra. Ermínia Maricato, Dr. Ricardo Nahat e Dr. Marcelo Terra.
(A seguir, o Ministro Sidney Sanches passou a palavra a cada um dos paletrantes.)
Palestra 1 - 5º painel
O QUE FAZER COM A CIDADE ILEGAL?
Erminia Maricato - Profa Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP - Coordenadora do Curso de Pós Graduação da FAU/USP
INTRODUÇÃO
Na década de 40, com 31% da população urbana no Brasil, as cidades eram vistas como o lado moderno e avançado de um país predominantemente agrário e atrasado. Entre 1940 a 1980 o PIB brasileiro cresceu a 7% ao ano, aumento excepcional sob qualquer ponto de vista, acompanhado de urbanização e industrialização do país. Esse processo parecia representar um caminho para a independência de séculos de dominação da produção agrário-exportadora e de mando coronelista.
No início do século XXI, 82% da população do país é urbana. A imagem das cidades, especialmente das metrópoles, contrasta com aquela de sessenta anos antes: violência, enchentes, poluição do ar, poluição das águas, favelas, desmoronamentos, infância abandonada, entre outros. Em nove metrópoles brasileiras moram 50 milhões de pessoas, mais do que a população da maior parte dos países da Europa ou da América Latina. Em 50 anos, a população urbana brasileira cresceu em mais de 100 milhões de indivíduos. Hoje, a sociedade apenas começa a perceber que o avassalador processo de urbanização foi acompanhado de modernização no modo de vida, no ambiente construído, nas comunicações, mas também reproduziu seu lado arcaico. A modernização, assim como a cidadania e os direitos, aconteceu apenas para alguns.
Mônica Santana, Pôr do sol na favela operária, óleo sobre tela, 2000
Alimentar a noção da cidade dual ou fraturada poderia facilitar a compreensão da segregação e da exclusão, mas conduz a uma falácia: a de que o atual modelo de desenvolvimento poderia ser estendido a todos. Há uma relação biunívoca entre o moderno e o arcaico no Brasil. Os aparelhos eletroeletrônicos chegam às favelas antes da unidade sanitária completa (e evidentemente antes da moradia digna). A relação de favor e o clientelismo continuam a mediar as relações sociais, como ocorre há séculos. A aplicação da lei ainda se subordina às relações de poder.
A questão fundiária urbana é um nó não desatado, como sempre no campo ao longo dos séculos. Eliminado nos Estados Unidos no século XVIII, o latifúndio atravessou impassível no Brasil até o início do século XXI. A aplicação da função social da propriedade encontra obstáculos de várias origens: judiciário, correlação de forças locais, precariedade dos cadastros ou dos registros de propriedades.
Durante os anos 80 e 90, sob novas relações internacionais, a desigualdade se aprofunda. O desemprego cresce, as políticas sociais recuam, a população de rua aumenta, assim como a quantidade de crianças abandonadas. O Censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE mostra (embora de forma bastante subdimensionada) aumento exponencial no número de favelas. Levantamentos científicos comprovam o que nossos olhos constatam diariamente. Talvez a maior novidade seja a explosão de um novo tipo de violência: a chamada violência urbana. Alguns indicadores sociais continuam a evoluir positivamente desde os anos 40, como a queda da mortalidade infantil e o aumento da esperança de vida ao nascer. Mas, nos anos 90, o aumento no número de homicídios passa a influir até mesmo a expectativa de vida dos homens em nível nacional, em especial dos jovens, pretos e pardos (Maricato, 1996).
A segregação territorial estabelece a relação entre violência e habitat, onde regiões inteiras são ocupadas ilegalmente. A ilegalidade urbanística convive com a ilegalidade na resolução de conflitos: não há lei, não há julgamentos formais, não há Estado. À dificuldade de acesso aos serviços de infra-estrutura urbana - transporte precário, saneamento deficiente, drenagem inexistente, difícil acesso aos serviços de saúde, educação, cultura e creches, maior exposição à ocorrência de enchentes e desabamentos - somam-se menores oportunidade de emprego, maior exposição à violência (marginal ou policial), difícil acesso à justiça oficial, difícil acesso ao lazer, discriminação racial. A exclusão é um todo: social, econômica, ambiental, jurídica e cultural.
No meio urbano, o investimento público orientado pelos lobbies bem organizados alimenta a relação legislação/ mercado imobiliário restrito/ exclusão social. A população pobre vai se instalar nas áreas desprezadas pelo mercado imobiliário, nas áreas ambientalmente frágeis cuja ocupação é vetada pela legislação, e nas áreas públicas encostas dos morros, beira dos córregos, áreas de mangue, áreas de proteção aos mananciais. A invasão de terras é uma regra na cidade, e não uma exceção. Mas a invasão não é ditada pelo desapego à lei ou por lideranças que querem afrontá-la, mas pela falta de alternativas.
O UNIVERSO URBANO ILEGAL
Somando a população moradora de favelas com a população moradora de loteamentos ilegais, teremos aproximadamente metade de todos os habitantes de São Paulo e do Rio de Janeiro (Castro e Silva, 1997; Andrade, 1998). Em termos de legislação urbanística (parcelamento do solo, zoneamento, meio ambiente para citar as principais) e à legislação edilícia (código de obras), estamos diante de uma "situação na qual a regra se torna mais exceção do que regra e a exceção mais regra do que exceção".
Essa gigantesca ilegalidade não é percebida nem pelas instituições brasileiras, nem pela mídia e nem pela própria universidade. Nas maiores cidades brasileiras - São Paulo/SP, Rio de Janeiro/RJ e Belo Horizonte/MG - mais de um quinto dos habitantes mora em favelas. Em Salvador e Fortaleza, essa cifra chega a um terço, e em Recife a 40% da população. Mesmo a mitificada Curitiba tem um anel de invasões praticamente cercando todo o município, que agride fortemente as áreas de proteção dos mananciais.
Mônica Santana, sem título, 1999
O loteamento ilegal e a favela são as alternativas mais comuns de moradia da maior parte da população urbana de renda baixa e média baixa. Foi a "solução" dada no Brasil ao desenvolvimento urbano para grande parte dos moradores das grandes cidades. O que define a favela é a completa ilegalidade da relação do morador com a terra: são áreas invadidas. Já nos loteamentos ilegais, também chamados de loteamentos clandestinos, o contrato de compra e venda garante algum direito ao morador. Muitas são as variantes que o loteamento ilegal pode assumir.
Em geral, a ilegalidade pode estar na burla às normas urbanísticas: diretrizes de ocupação do solo, dimensão dos lotes, arruamento, áreas públicas e institucionais, que devem ser doadas para o poder público, estão entre as mais comuns. Entretanto, há casos em que a ilegalidade está na documentação de propriedade, na ausência da aprovação do projeto pela prefeitura ou no descompasso entre o projeto aprovado e sua implantação. A irregularidade na implantação do loteamento impede seu registro pelo cartório de registro de imóveis, conseqüentemente prejudicando os compradores.
Como destacado anteriormente, essa ilegalidade não é resultado de uma atitude de confronto com a legislação, mas resultado da falta de opções para habitação. Até a década de 80, as favelas não constituíam uma forma importante de moradia na cidade de São Paulo: no início dos anos 70, menos de 1% da população paulistana morava em favelas. Essa situação evoluiu de tal modo que em meados dos anos 90 a cidade apresentava aproximadamente 20% de sua população morando em favelas. Já as cidades do Rio de Janeiro e do Recife tiveram, desde o começo do século XX, proporção expressiva de moradores de favelas, como mostra a literatura, incluindo um dos clássicos estudos da sociedade brasileira, "Sobrados e Mocambos" de Gilberto Freyre.
Além das favelas e loteamentos ilegais, o cortiço é a outra forma predominante de moradia popular. No começo do século XX, esta a forma principal de moradia dos trabalhadores urbanos. Os grandes planos (que previram uma legislação urbanística modernizante) e obras de reformas urbanas de áreas centrais das principais cidades brasileiras combateram, nesse período, a falta de saneamento e simultaneamente expulsaram essas populações de áreas urbanas centrais. O cortiço é quantitativamente importante em cidades que apresentam bairros desvalorizados pelo mercado imobiliário e se constitui outra ilegalidade (a lei do inquilinato dificilmente é aplicada), mas não será discutido aqui.
A partir dos anos 40, os loteamentos ilegais tornaram-se a forma predominante de moradia dos trabalhadores em São Paulo. Enquanto os investimentos em moradia de aluguel (como os cortiços) foram desestimulados pelas medidas de congelamento dos aluguéis, os parcelamentos de solo na periferia urbana combinaram-se com os transportes sobre rodas. A implantação do transporte público rodoviário (ônibus) viabilizou a expansão periférica de baixa densidade propiciada por loteamentos populares, e a periferia da cidade se expandiu.
AUSÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA INCLUIR E LEGALIZAR MORADIAS IRREGULARES
Determinada pelo processo da chamada reprodução da força de trabalho, a evolução das favelas acompanhou o processo de urbanização da sociedade brasileira. Na sociedade escravocrata, a moradia do trabalhador e os demais itens de sua subsistência eram providos pelo patrão. A emergência do trabalho livre dá origem ao problema da habitação, pois o patrão está livre dessa incumbência. A partir da abolição, caberia ao trabalhador pagar por sua moradia. Essa mudança deveria ter implicado em assalariamento e formação do mercado urbano de moradias, como ocorreu nos países capitalistas centrais, não sem muito conflito.
A moradia legal não é apenas uma questão de rendas baixas, como muitos crêem. Há uma correspondência entre salário e preço graças a medidas amplas que deveriam ser tomadas em busca de soluções para habitação. De fato, três condições garantiram a realização do direito generalizado à moradia nos Estados Unidos, Canadá e em países da Europa:
- Subordinação da propriedade privada ao capital produtivo (combate aos ganhos rentistas decorrentes da propriedade fundiária e imobiliária).
- Regulação do financiamento com subsídios destinados a inserir camadas da população no mercado, ou atendimento pela promoção pública.
- Expansão da infra-estrutura e equipamentos urbanos via controle sobre o desenvolvimento urbano e o uso e a ocupação do solo.
Ao contrário de tais países, nos países periféricos e semiperiféricos (como o Brasil) a industrialização se deu com salários deprimidos. A grande parte dos trabalhadores não se integrou ao mercado de trabalho formal, e a moradia não é também obtida via mercado formal. Freqüentemente, falta poder aquisitivo ao trabalhador empregado na indústria fordista (a moderna indústria automobilística) para comprar sua moradia no mercado legal privado. Até mesmo trabalhadores regularmente empregados de classe média/média baixa tem dificuldade para entrar no mercado imobiliário residencial. Bancários, professores secundários, policiais civis e militares e outros funcionários públicos não ganham o suficiente para contrair um financiamento que, num mercado como São Paulo, em geral exige mais de 10 salários mínimos de renda familiar. Essa renda mínima exclui 60% das famílias da região metropolitana, e para elas restam as políticas públicas ou a informalidade.
O fato do mercado legal não atingir as camadas de renda média inviabiliza as políticas públicas voltadas para as faixas de renda menor - cinco salários mínimos para baixo- onde se concentra o déficit habitacional brasileiro. As políticas públicas de moradia dificilmente conseguem fugir do destino de atender as faixas de renda média e média baixa, como se viu com o Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e seu organismo executor central, o Banco Nacional de Habitação (BNH) em seus 22 anos de existência, de 1964 a 1986. O mesmo acontece com o Plano de Arrendamento Residencial (PAR) em todo o Brasil no início do século XXI. A incompatibilidade entre projeções e realidade objetiva salta aos olhos: o discurso de prioridade para baixa renda evidencia a irracionalidade de um sistema incapaz de atender sequer as necessidades de moradia das camadas de renda mais acima.
Ausência de uma política pública que abranja a ampliação do mercado legal privado é a essência das ocupações ilegais e da produção da cidade informal. Em outras palavras, é preciso baratear o produto, prevendo a participação de agentes lucrativos e não-lucrativos e a promoção pública subsidiada para as famílias cujas rendas estejam abaixo dos 5 salários mínimos. Enquanto o mercado privado e os governos não apresentarem alternativas habitacionais, as favelas e os loteamentos ilegais continuarão a se reproduzir. A ilegalidade urbana e as alternativas de moradia legal são questões de política urbana - função social da propriedade e investimento voltado para a ampliação e democratização da infra-estrutura - e de regulação do financiamento imobiliário. Juntamente com transportes públicos e saneamento urbano, a habitação deve ser tema prioritário do urbanismo brasileiro. Mas, como em outras áreas de conhecimento no Brasil, o urbanismo continua a se guiar por modismos provenientes do exterior, cujos problemas partem de realidades bastante diferentes da nossa (Maricato, 2000).
O QUE FAZER COM A CIDADE ILEGAL?
Simplesmente afirmar que é preciso produzir moradias para a população há muitas décadas privada de opções senão as formas ilegais não ajuda a dar solução para a habitação popular. A cidade se formou sem que leis fossem consideradas, sem acesso a recursos financeiros e técnicos (engenharia, arquitetura, urbanismo, paisagismo, saneamento básico). A solução mais lógica e racional seria remover todos os moradores de favelas e áreas ambientalmente frágeis para novas localizações, mas os números mostram que isso é impossível.
Na bacia do Guarapiranga, manancial de água que serve um terço da população do município de São Paulo, moram mais de 600 mil pessoas. Na bacia Billings, outro manancial localizado também na região sul do município, moram mais de 750 mil pessoas. Aproximadamente 2 milhões de pessoas moram nas favel
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