BE96

Compartilhe:


BOLETIM DE DOMINGO


Neste domingo preparamos três artigos sobre temas que poderiam ser enfeixados sob a rubrica SEGURANÇA JURÍDICA. O primeiro deles, trata de projeto de lei apresentado à Câmara Federal que confunde as causas subjacentes à verdadeira mixórdia que é a aquisição de bens imóveis por escritura particular. Fruto de desconhecimento, embora pleno de boas intenções, o projeto não chega a identificar a origem de tantos problemas enfrentados pelos consumidores na aquisição de sua casa própria. Portanto, não poderia alcançar uma boa solução para os problemas enfocados.
O segundo, respondendo a provocação do estudioso John Constantine, trata do desmonte do Estado Brasileiro, pela desvalorização dos registros públicos de segurança jurídica. A semana passada foi plena de confusões e equívocos - como o editorial do Jornal da Tarde (15/6) repercutindo as atabalhoadas propostas da Associação Juízes para a Democracia, na pessoa de seu representante vitalício Urbano Ruiz. O magistrado propõe o desmonte do sistema notarial e registral brasileiro e sua imediata passagem a órgão privados como o SERASA e SPC, no caso do protesto. Fruto de ignorância acerca da importância dos mecanismos preventivos de conflitos, o incontinente palreador não contribuiu com a sociedade com propostas consistentes.
Finalmente, damos início à publicação do importante texto de Fernando P. Méndez González, "a função econômica da publicidade registral". D. Fernando é registrador na Catalunha, Presidente do Conselho Diretivo do Centro de Investigação e desenvolvimento do Direito Registral Imobiliário e Mercantil da Universidade de Barcelona. Traduzido ao português, desejamos que o texto contribua para colocar a discussão da importância do registro imobiliário em bom rumo sistemático.
 


HIPOTECA - O OCASO DE UM GRANDE INSTITUTO


A hipoteca serviu ao longo de muito tempo como eficiente instrumento de garantia. Foi e ainda é considerada como a mais clássica e tradicional das garantias reais do direito brasileiro.
Ultimamente, contudo, em face do colapso institucional dos mecanismos judiciais, o instituto vem experimentando um progressivo esvaziamento de sua importância. Todos os comentaristas apontam o calcanhar de aquiles da hipoteca: a execução judicial, que demanda um custoso processo, de incerto resultado e de morosidade garantida.
Além disso, o credor hipotecário se vê diante de grandes embaraços no confronto de seu crédito em face daqueles privilegiados, como o são os fiscais e trabalhistas. Enfim, vivemos uma crise da hipoteca, o que tem levado o mercado a criar novos mecanismos de defesa do capital e do investimento aplicado.
Se, por um lado, a busca de soluções aponta para saídas inteligentes e criativas - e a edição da Lei 9514/97, que recuperou para o direito brasileiro a alienação fiduciária,  é um bom exemplo - por outro, verificamos a profusão de projetos de leis que não apresentam o mesmo grau de acerto.
Por proposta do Deputado Federal Nelson Micheletti (PT/PR) foi apresentado o projeto de lei 3580, de 1997, que à guisa de proteger o consumidor de bens imóveis em loteamentos e incorporações imobiliárias, acaba por ferir de morte o instituto da hipoteca. E desnecessariamente.
A ignorância das causas de tantos problemas enfrentados pelos adquirentes está na raiz dessas propostas desarrazoadas. O fundamento para o projeto foi o desenlace do "caso Encol", que acabou por acarretar insuperáveis prejuízos para os adquirentes.
Mas é preciso compreender que os problemas existiram porque os adquirentes foram incautos. Além disso, como o próprio deputado Nelso Micheletti reconhece, o cidadão muitas vezes não reúne as "condições mínimas de se cercar dos cuidados necessários" e por essa razão, os adquiretnes, "pela inexperiência e pela complexidade que envolve o negócio, tornam-se vítimas".
Mas é justamente a combinação da imprudência do adquirente, aliada à sua ignorância, que concentra as condições ideais para a fraude. Potencializando ainda mais esses problemas, existe a contratação privada (o malfadados "contratos de gaveta"), redigidos por quem não é especialista, nem se submete ao controle e fiscalização públicos. Não se compreende como os contratos particulares ainda são defendidos tão apaixonadamente por aqueles que se intitulam defensores dos interesses sociais. Afinal, quem, em sã consciência, poderia sustentar que se sancionasse a imposição unilateral de cláusulas contratuais aos adquirentes, que ficam sem a chance de uma defesa prévia e eficaz?
Mas é justamente isso que atualmente ocorre com os contratos particulares. Redigidos por incorporadores ou loteadores, que impõem as cláusulas contratuais que atendam unica e tão-somente aos seus interesses econômicos e financeiros, pouco resta ao adquirente: é "pegar ou largar"...
Em relação ao contrato particular é preciso reconhecer: (a) que geralmente é mais caro que a escritura pública, pois não sofre qualquer tipo de controle de custos; (b) é o que apresenta maiores chances de conter cláusulas e condições abusivas, já que não se submete à qualificação notarial e nem se sujeita à fiscalização pública; (c) são os que apresentam maior potencialidade de litígios, abarrotando o Judiciário; (d) são redigidos muitas vezes de maneira pouco inteligível para os adquirentes.
Finalmente, o Sr. deputado poderia ser informado que os problemas sofridos pelos adquirentes da ENCOL se devem singelamente à falta de registro de seus contratos. O registro robusteceria o adquirente face à "engenharia financeira desenvolvida pelo  empreendedor e instituições bancárias".
Seria tão mais singelo que o projeto de lei do Sr. deputado pudesse, pura e simplesmente, contemplar o instrumento público notarial como requisito formal indispensável para aquisição de bens imóveis oriundos de loteamentos e incorporações. É mais barato. É mais seguro. E o que melhor atende aos interesses do consumidor. (Sérgio Jacomino)
 



Projeto de Lei 3.580 - A, de 1997


Art. 1.º   -- Fica alterado o inciso III do artigo 43, da Lei n.º 4.591, de 16 de dezembro de 1964, que passa a ter a seguinte redação:

"Art. 43 - ....................................................................................
I - ......................................................................................

III - em caso de falência do incorporador, pessoa física ou  jurídica, e não ser possível à maioria prosseguir na construção das  edificações, e no caso de execução de garantia hipotecária sobre o  imóvel objeto do contrato, os subscritores, contratantes ou candidatos  à aquisição de unidade serão credores privilegiados pelas quantias  que houverem pago ao incorporador, inclusive sobre a garantia  hipotecária, respondendo subsidiariamente os bens pessoais deste;

IV - .............................................................................."

Art. 2.º - Observado o que dispõe o artigo 30 da Lei n.º 6.766,  de 19 de dezembro de 1979, em caso de falência do loteador, pessoa  física ou jurídica, e no caso de execução de garantia hipotecária sobre  o imóvel loteado objeto do contrato, os compradores, promitentes  compradores, cessionários e promitentes cessionários serão credores  privilegiados pelas quantias que houverem pago ao loteador, inclusive  sobre a garantia hipotecária, respondendo subsidiariamente os bens pessoais do loteador.

Art. 3.º - Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação. 

Art. 4.º - Revogam-se as disposições em contrário.

JUSTIFICAÇÃO

O presente Projeto de Lei tem por objetivo assegurar aos  consumidores de imóveis habitacionais, sejam incorporações ou lotes  urbanos, garantias suficientes contra a possibilidade de falências dos  empreendedores, por um lado, e contra execuções de garantias  hipotecárias oriundas de empréstimos ou dívidas outras, as quais, não  raro, se resguardam na garantia real, em detrimento daqueles. 
A recente crise da ENCOL revela a fragilidade em que se  encontram os cidadãos que, de boa-fé e empregando a poupança  construída ao longo de muitos anos de trabalho e sacrifício, se  encontram diante da engenharia financeira desenvolvida pelo  empreendedor e instituições bancárias.
Poderíamos dizer que a omissão da lei "legaliza o estelionato". A pretexto de levantar fundos, sejam para capital de giro,  sejam para enfrentar dificuldades financeiras da empresa, para afastar  a possibilidade de má-fé, os empreendedores constituem  empréstimos, oferecendo como garantia hipotecária imóveis, os quais  já se encontravam comprometidos com contratos de promessa de  compra e venda, muitos deles inclusive já tendo os compradores  realizado todo o pagamento. Nesta condição, sendo o crédito  garantido por hipoteca privilegiado frente aos demais créditos, nos  quais se incluem os provenientes da promessa de compra e venda,  estão resguardados os interesses das instituições financeiras e  desamparados os interesses das partes mais frágeis na relação de  consumo.
O presente Projeto, pois, ao contrário do que se possa em  um primeiro momento depreender, não penaliza as instituições  financeiras ou mesmo os empreendedores. Apenas transfere para a  relação entre estes dois agentes a responsabilidade de ajustar os  contratos com maior cuidado. Não havendo risco para a instituição  financeira, já que tem seu crédito garantido com a hipoteca,  privilegiada ante os demais credores, o mesmo não tem que se  preocupar com a saúde financeira do seu devedor nem, por outro lado,  em exigir medidas ou garantias adicionais, inclusive no que se refere  ao aspecto administrativo e de gestão para assegurar que o  empreendimento seja viável, como ocorre em muitos outros setores da economia.
Esta situação, como no caso da ENCOL, acaba por criar as  condições para que uma empresa, já em vias de falência, prolongue a   sua sobrevida, envolvendo um sem-número de cidadãos que, sem as  condições mínimas de se cercar dos cuidados necessários (quantas  vezes um cidadão adquire a casa própria?) pela inexperiência e pela complexidade que envolve o negócio, tornam-se vítimas.
Por outro lado, não há que se imaginar a possibilidade de  diminuição dos investimentos na construção civil, em face das  medidas propostas neste Projeto de Lei, ou seja, pela diminuição da  importância da garantia hipotecária diante de outros credores. Se o  empreendimento a ser financiado é viável, outros mecanismos  assecuratórios ao financiador poderão ser adotados, tais como fiança  bancária, seguro, condicionamento do pagamento das prestações  oriundas do contrato de promessa de compra e venda ao contrato de  financiamento, dentre outros.
Não podemos ignorar que as atividades capitalistas que envolvem ganhos de capital incorrem, por natureza, em certa margem  de risco. Entretanto, a aquisição da casa própria, via de regra, satisfaz  as necessidades sociais, e como tal deve ter a proteção do Estado.
Esta lógica permeou e fundamenta as relações de consumo,  reconhecida e institucionalizada pelo Código de Defesa do  Consumidor, e como tal propomos que se estenda com eficiência às   aquisições que se destinam à casa própria.
Sala das Sessões, 03 de setembro de 1997. (Nelson Micheletti - PT/PR; Diário da Câmara dos Deputados, janeiro/99)
 

 



REGISTROS DE SEGURANÇA JURÍDICA

John Constantine propõe à discussão interessante problema relacionado com os cadastros do SERASA e SPC. Propõe o autor que a inclusão do nome do consumidor em cadastros restritivos deve estar precedida de previsão contratual em razão da natureza desses cadastros não ser meramente privada, mas sim de ordem pública. Sustenta que "como não há previsão legal e a questão é de ordem pública, face à publicidade do cadastro e à restrição da liberdade civil e do poder de contratar que se opera no patrimônio jurídico do consumidor, [fica] bem claro que é imperioso existir ao menos uma previsão contratual para tanto".
Na verdade, ao se referir de passagem a cadastros "públicos" do SERASA e do SPC e de efeitos publicitários decorrentes da "inscrição" nesses róis, vêm-nos à mente a questão do controle público de atividades que se relacionam com a restrição civil e do poder de contratar do consumidor. Trata-se de uma "eficácia" restritiva do crédito do consumidor em decorrência desses registros.
O tema é riquíssimo. Comporta várias abordagens. É necessário, justamente, desvelar a coarctação sincrônica dos registros públicos mercantis de segurança jurídica "pari passu" com a valorização dos cadastros privados como os do SERASA e SPC. Ou seja, na medida em que há uma progressiva desvalia de mecanismos institucionais de publicidade oficial organizada, com todas as garantias de controle público sobre os dados cognoscíveis, vicejam empresas privadas, com escassa fiscalização e controle públicos, provendo a sociedade com informações cadastrais que são, muito embora, reconhecidamente necessárias.
Aí está. Tratando-se justamente de uma necessidade social -- que se relaciona com a imprescendibilidade de prover as relações de segurança jurídica estática e dinâmica -- o comércio jurídico já não pode prescindir modernamente de registros públicos de segurança jurídica, como o são, principalmente na Europa continental, os registros públicos mercantis, os registros públicos de bens imóveis, registros públicos de cláusulas de adesão, notários etc. Em sociedades desenvolvidas, há um grande investimento em prevenção de conflitos. Busca-se  a colimação de certeza e segurança das relações jurídicas a um custo tolerável das transações econômicas envolvidas com o trafego de bens e direitos.
Uma interrogante seria justamente a de se avaliar em que medida os interesses dos consumidores não seriam melhor tutelados com o fortalecimento dessas instituições. Pois que os registros públicos perderam historicamente sua importância no Brasil e hoje experimentamos os efeitos perversos da "privatização" desses serviços de proteção ao crédito. (sj)
 

 



A FUNÇÃO ECONÔMICA DA PUBLICIDADE REGISTRAL (Fernando P. Méndez González - registrador - Espanha. Trad. Sérgio Jacomino)

1. Introdução
O presente estudo tem por finalidade a realização de um esboço sobre a função econômica do  sistema registral (qualquer sistema registral), bem assim uma exposição dos pressupostos necessários para que tal função possa ser desempenhada do modo mais eficiente possível. Faremos algumas referências históricas, bem como considerações específicas em relação a países em fase de transição a uma economia de mercado.

Algumas destas idéias foram expostas em trabalhos anteriores como "La función calificadora: una aproximación al análisis económico del Derecho"  e "La primera inscripción en los Registros jurídicos", trabalho inédito que constitui a contribuição espanhola ao XI Congresso Internacional de Direito Registral.

A presente intervenção é, em grande medida, uma adaptação de algumas das idéias que ali se contêm orientadas ao objetivo a mim encomendado.

2. Função econômica. Pressupostos.

A função econômica dos sistemas registrais pode ser contemplada a partir de diferentes aspectos e desde óticas muito distintas. Se ativermo-nos à origem histórica da maior parte dos sistemas registrais, poderíamos afirmar que a razão inicial de sua implantação foi, originariamente, possibilitar que a riqueza imóvel de um indivíduo, de uma família e, por extensão, de uma nação, pudesse servir de garantia ao crédito, a grande alavanca de toda a economia moderna; inicialmente, ao crédito agrícola, posteriormente ao crédito destinado à aquisição da própria moradia e, finalmente, a todo tipo de crédito.

Sirva como o exemplo a Exposição de Motivos da primeira Lei Hipotecária espanhola propriamente dita, a de 1861: "Nuestras leys hipotecarias están condenadas por la ciencia y por la razón, porque ni garantizan suficientemente la propriedad, ni ejercen saludable influencia en la propriedad pública, ni asientan sobre sólidas bases el crédito territorial, ni dan actividad a la circulación de la riqueza, ni moderan el interés del dinero, ni facilitan sua adquisición a los dueños de la propriedad inmueble, ni aseguran debidamente a los que sobre esta garantía prestan sua capitales.
En esta situación la reforma es urgente e indispensable para la creación de Bancos de crédito territorial, para dar certidumbre al domínio y a lods demás derechos en la cosa, para poner límites a la mala fe, y para libertar al proprietario del yugo de usureros despiadados".

Dificilmente, poder-se-ia expressar melhor e mais eloqüentemente as funções essenciais de um sistema imobiliário registral e, mais especificamente, de um Registro Imobiliário (Legal Cadastre).

A finalidade essencial é, pois, assentar sobre sólidas bases o crédito territorial, para que possam desenvolver-se Bancos territoriais, moderando-se os juros, para o que é necessário conferir certeza de domínio e direitos reais sobre a coisa. Insistindo nesta idéia, continuava rezando a Exposição de Motivos: "La condición más esencial de todo sistema hipotecario (equivalente a "registral" na terminologia da época), cualquiera que sean las bases en que descanse, es la fijeza, es la seguridad de la propriedad: si ésta  no se registra ... desaparecen todas las garatías que puede tener el acreedor hipotecario".

Como seguia assinalando a Exposição de Motivos, desde COLBERT todas as nações que abordaram esta questão intentaram resolver um duplo problema: (a) adquirir sem o temor de perder o adquirido (b) instituir hipoteca sobre bens de raiz com a segurança de que a garantia não será ineficaz pois, "el peligro que incesantemente corren los acrreedores suelen compensarlo com intereses exorbitantes".

Realmente, muito pouco poderia ser acrescentado a esta magistral exposição acerca da finalidade primária, ao menos em um sentido diacrônico, de um Registro Imobiliário: que a propriedade imobiliária possa servir de sólida garantia jurídica, assim como de seu pressuposto inexcusável, a segurança jurídica da propriedade.

Analizaremos cada um desses aspectos separadamente, começando pelo segundo.

2.1 Juridicamente, quando se pode considerar "seguro" um property right imobiliário?
            Quando se dão duas condições:

1) quanto todos sabem que ninguém pode discutir judicialmente com êxito a titularidade do proprietário;

2) quando o proprietário, no momento de realizar a aquisição, conhece todos os ônus que pesam sobre o imóvel, de tal modo que: ou poderiam se opor, eventualmente, a seu direito (ex. hipoteca, que no caso de inadimplemento do crédito garantido pode acarretar uma alienação forçada a favor de pessoa distinta, cuja aquisição se oporá ao comprador do bem hipotecado) ou poderia ser diminuído o valor do bem adquirido (ex. servidão de passagem). O conhecimento desses fatos é essencial por duas razões:

a) para decidir se realiza (ou não) a aquisição (i.e., se destina a essa finalidade uma quantidade limitada de recurso, normalmente pecuniária, suscetível de usos alternativos;

b)  para poder calcular o "justo preço" da aquisição e, em conseqüência, evitar o desperdício de recursos, limitados por definição.

2.2 Como se pode conseguir que um property right imobiliário seja "seguro" em um sentido jurídico? O problema e a necessidade de regras institucionais

Para abordar esta questão, partiremos de um exemplo simples: suponhamos que A adquirisse de B um bem imóvel através de um contrato, v.g. compra e venda. O primeiro e indispensável requisito para que A se torne proprietário é que B o seja. Mas, como pode saber A que B é o verdadeiro proprietário e se o bem está gravado com os ônus que B lhe manifesta?

Resolver esta questão é da maior importância, pois se não se encontra uma regra institucional a este problema que propõe a economia de mercado, o hipotético comprador enfrentará muitas dificuldades em saber se o vendedor é, realmente, o único proprietário legítimo e, no caso de realizar-se uma operação de intercâmbio, o adquirente correria o risco de que pudessem surgir outras pessoas que reivindicassem o direito adquirido. Em tal situação, as pessoas teriam que dedicar muito tempo e despender muitos esforços a fim de informarem-se sobre o estatuto jurídico dos bens que poderiam ser adquiridos e a investigar os possíveis ônus que gravassem o bem e que o transmitente, eventualmente,  por um comportamento oportunista, poderia ocultar.

Pensemos que um dos problemas principais que se apresentava na Espanha, assim como em outros países, anteriormente a 1861, é o denominado "crimen stellionatus", isto é, a ocultação ao comprador, pelo vendedor, de ônus que pesavam sobre o imóvel. As incertezas inerentes a dita situação converter-se-iam em uma fonte de custos pessoais  que o comprador haveria de levar em conta. Se a soma de todos esses custos é demasiado elevado em relação às futuras utilidades que a operação de compra e venda poderia produzir, dita operação não se celebraria e os recursos permaneceriam "infrautilizados", o que acarretaria que o mecanismo que faz com que os recursos sejam dirigidos a atividades úteis à sociedade ficaria bloqueado e a economia e a sociedade seriam menos eficazes. Ademais, há que se levar em conta - desejo sublinhar a importância deste aspecto da questão - que em semelhante situação, tampouco o prestamista consideraria a propriedade assim adquirida como uma garantia suficientemente sólida  para seus investimentos, razão pela qual não se disporia a financiar, ou então - como já dizia a Exposição de Motivos da Lei Hipotecária referida - compensaria tal incerteza com juros exorbitantes. Em suma: se produziria menos e a sociedade seria menos eficiente.

Uma situação semelhante está longe de ser pura ficção. Pode-se encontrá-las freqüentemente em muitas sociedades do terceiro mundo, especialmente na África.

Para alguns autores  que se detiveram sobre o assunto, as dificuldades que as sociedades tradicionais parecem encontrar para integrar o conceito europeu de propriedade e adaptar às suas necessidades as regras dinâmicas da economia de mercado, não se devem ao fato de que a própria noção de propriedade seja incompatível, por definição, com seus sistemas culturais - como sustentaram a seu tempo os teóricos do socialismo africano. Deve-se, simplesmente, ao caráter rudimentar de seus mecanismos jurídicos, impotentes para enfrentar eficazmente os complexos problemas que se apresentam no desenvolvimento de uma economia baseada no intercâmbio. Para que a moderna economia de mercado chegasse a atingir seu atual estado de desenvolvimento foi necessário que, com anterioridade, se chegasse a acumular uma experiência jurídica e cultural muito importante. É precisamente esta experiência a que falta aos países que esbarram em dificuldades em seu caminho rumo a uma economia de mercado.

O supra referido põe de manifesto a extrema importância de gerar regras institucionais que permitam solucionar satisfatoriamente a questão proposta.

(continua no próximo Boletim de Domingo)



Últimos boletins



Ver todas as edições