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Quilombos
Ulysses da Silva*


É noite sem lua e alguns vultos esgueiram-se em direção ao centro do pátio. Amarrado no tronco, cabeça pendida sobre o peito, José mal percebe a presença de alguém, com uma faca, cortando a corda que o prende. Cambaleando, ajudado por dois companheiros, afasta-se e some na escuridão, rumo ao mato.

Pagou caro pelo seu atrevimento de socorrer Inácia, que era chicoteada sem dó pelo capataz da fazenda. Há algum tempo vinha tramando a fuga. Conversou com vários outros escravos e a idéia de formar uma pequena comunidade, isolada, bem longe, fora do alcance dos coronéis e seus cães, cresceu em sua cabeça.

O amanhecer revelou as suas costas, em carne viva, marcadas pelas vergastadas sofridas no dia anterior, mas era preciso caminhar mais, porque logo os cães, acostumados a essa faina, levados pelo feitor e seus comparsas, descobririam o seu rastro e o de seus companheiros. Se conseguissem descer pelo rio por um tempo, poderiam despistá-los. Com dificuldade, foi o que fizeram.

O pequeno grupo caminhou por mais três dias e três noites, comendo frutos silvestres e raízes, até chegar ao lugar por eles imaginado. Era uma pequena praia deserta. O local foi escolhido porque tinha a má fama de ser a morada do demônio. Lá vários escravos fugidos foram mortos sem piedade. Seus corpos, depois de arrastados até a fazenda, permaneceram expostos aos olhos dos sobreviventes por muitos dias. A matança servira de lição e nenhum negro fugido procuraria mais aquele lugar, imaginavam os coronéis. Ledo engano.

Liderando seus companheiros, José, contando com a proteção dos espíritos dos compatriotas mortos, decidiu que aquele local seria bom para assentar acampamento. Por segurança, ergueram suas palhoças ainda no mato, um pouco afastadas da praia.  Com muito sacrifício, a comunidade foi crescendo. Com o tempo apareceram alguns brancos, pescadores, que se instalaram nas proximidades. Ressabiados, mantinham distância, mas, devagar, foram chegando. Com eles, os negros aprenderam a pescar e aproveitar pequenos moluscos. Pescavam e caçavam juntos e, não demorou, para que a primeira união entre um branco e uma negra acontecesse por lá. Outras seguiram-se. A notícia da libertação dos escravos foi festejada, trazendo, com ela, muitos outros negros. Também outros brancos foram atraídos e o acampamento inicial virou aldeia. As roças de milho e feijão, antes mantidas apenas para a subsistência do grupo, agora se ampliavam, e o excesso da produção era comercializado. O primeiro mascate foi visto, de porta em porta, oferecendo roupas e objetos de uso pessoal. Um turco instalou a primeira loja, bem ao lado da quitanda e da pequena casa de secos e molhados. Seguiram-se outras. Pequena igreja foi erguida. Veio o primeiro protético, depois um médico recém formado, e assim a aldeia virou uma vila. Ninguém tinha título de propriedade.

Certo dia, apareceu um senhor, identificando-se como representante de uma associação, dizendo que os negros tinham direito à área ocupada pela vila. As terras a eles pertenciam por decreto do governo. Alguém indagou se os brancos também teriam direito às terras. Diante da resposta negativa, surgiram as primeiras divergências entre brancos e negros, que até então viviam em perfeita harmonia, e o caso foi parar na Justiça.   

Aí está um relato fictício, mas que retrata a existência de situações semelhantes, em face da edição do Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o previsto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Com tal objetivo, dispõe o seu artigo primeiro que deverão observar o estabelecido em seus termos os procedimentos administrativos para a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.

O artigo segundo esclarece que se consideram remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Dispõe o parágrafo primeiro que a caracterização dos citados remanescentes será atestada mediante autodefinição da própria comunidade, aduzindo o parágrafo segundo que são terras ocupadas  por eles as utilizadas para garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.

De acordo com o parágrafo terceiro,  para a medição e demarcação das aludidas terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos próprios remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para instrução procedimental.

Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do INCRA, nos termos do artigo terceiro, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras em apreço, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, com os quais poderão ser estabelecidos convênios.

Relativamente aos procedimentos administrativos, dispõe o artigo sétimo que o INCRA, após concluir os trabalhos de campo, publicará editais duas vezes consecutivas no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localiza a área sob estudo, contendo informações sobre o imóvel ocupado, circunscrição judiciária ou administrativa de situação, limites, confrontações e dimensão constantes do memorial descritivo, títulos, registros e matrículas eventualmente incidentes sobre as terras suscetíveis de reconhecimento e demarcação, cujos ocupantes e confinantes serão notificados.

O artigo oitavo prescreve que, após os trabalhos de identificação e delimitação, o INCRA remeterá o relatório técnico aos seguintes órgãos e entidades, para, no prazo comum de trinta dias, opinar sobre as matérias de suas respectivas competências:

I – Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional – IPHAN;

II – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA;

III – Secretaria do Patrimônio da União, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão;

IV – Fundação Nacional do Índio – FUNAI;

V – Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional;

VI – Fundação Cultural Palmares.

Acrescenta o parágrafo único, que expirado o prazo e não havendo manifestação dos órgãos e entidades mencionados, dar-se-á como tácita a concordância com o conteúdo do relatório técnico.

Estabelece, por sua vez, o artigo nono, que todos os interessados, entre os quais se incluem ocupantes e confinantes, terão o prazo de noventa dias, após a publicação dos editais e realizadas as notificações a que se referem os parágrafos primeiro e segundo do artigo sétimo, para oferecer contestações ao relatório, juntando as provas pertinentes, aduzindo o parágrafo único que, não havendo impugnações ou sendo elas rejeitadas, o INCRA concluirá o trabalho de titulação da área ocupada.

O artigo 17 dispõe que a titulação prevista será reconhecida e registrada mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades referidas, representadas por suas associações legalmente constituídas, com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade.

Concluídos o trabalho de campo e os procedimentos a que se refere o artigo sétimo, e uma vez apresentado, ao registro imobiliário competente, documento hábil, fornecido pelo INCRA ou  Ministério do Desenvolvimento Agrário, contendo todos os elementos necessários,  o registrador realizará a matrícula da área demarcada e reconhecida e efetuará o registro do título de propriedade concedido em nome da comunidade agraciada, representada por sua associação. Concomitantemente, o registrador fará constar da matrícula, por meio de averbação, a imposição das cláusulas de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade.

Interessante observar que, ao contrário do que acontece na usucapião coletiva (Lei 10.257, de 2001, art. 10) ou na concessão do direito especial de uso (Medida Provisória 2.220, de 2001 e Lei 11.481, de 2007), o legislador, neste caso, preferiu não atribuir parte ideal, no todo, a cada membro da comunidade reconhecida, que, assim, terá, apenas, o direito de usufruir, em conjunto com seus familiares, os frutos produzidos pelo esforço comum da coletividade.

Por último, o artigo 22 deixa claro que a expedição do título e o registro cadastral a ser procedido pelo INCRA far-se-ão sem ônus de qualquer espécie, independentemente do tamanho da área.

Feita essa rápida exposição das partes principais do decreto sob análise, reconhecemos ser digna de apoio a iniciativa do governo de compensar os aludidos remanescentes pela opressão sofrida e justa a atribuição a eles das terras nas quais se localizaram seus ascendentes.

Apesar, contudo, do acerto dessa medida governamental, não há como negar a existência nela de alguns pontos criticáveis relacionados com os procedimentos administrativos, tornando-a merecedora de reparos no Congresso Nacional. São três os pontos mais criticados:

1.º -  o artigo segundo estabelece, no caput, que os remanescentes das comunidades dos quilombos serão considerados segundo critérios de auto-atribuição;

2.º - afirma o parágrafo primeiro que a caracterização dos citados remanescentes será atestada mediante autodefinição da própria comunidade;

3.º -  determina o parágrafo terceiro que, para a medição e demarcação das aludidas terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos próprios remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para instrução procedimental.

Como se vê, os membros remanescentes da comunidade em apreço estão autorizados a considerar, sob forte influência de associações de classe, a sua própria condição de constituintes do grupo, com poderes para atestarem, eles mesmos, as características formadoras da comunidade, o que significa a inclusão ou exclusão de pessoas por critérios subjetivos. 

Quanto à localização, definição da extensão das terras ocupadas e sua demarcação, é certo que ocupantes e confinantes serão notificados e, se não estiverem de acordo com os limites atribuídos pela própria comunidade, poderão apresentar contestação. Também é correto que os órgãos ou entidades relacionadas no artigo sétimo serão ouvidos.

A despeito, entretanto, de tais circunstâncias, é de se ponderar que os critérios sacramentados pelo decreto em apreço destoam, em parte, dos procedimentos regulares exigidos  em processos de demarcação, apuração de área, retificação de divisas ou, mesmo, de usucapião  objetivando imóvel situado em terras privadas, nos quais a propriedade ou a posse  somente é reconhecida após cuidadoso exame dos títulos e documentos apresentados, além de ouvidas testemunhas, quando necessário.

Não há, evidentemente, como apagar a terrível nódoa da escravidão em nossa história, por ação de nossos ancestrais europeus. Também não pode ser ignorado que o impulso em nossa agricultura, no reinado de Dom João VI, foi obtido à custa de tortura e sofrimento. Esse reconhecimento revela, embora tardia, a compreensão de que, independentemente de cor e raça, somos todos humanos.

Pondere-se, todavia, que, antes da chegada ao Brasil do primeiro navio negreiro, os nossos indígenas já tinham sofrido os efeitos da conquista do território pelas armas desses mesmos europeus. E eles, os nativos desta imensa terra, divididos em várias tribos, aqui já se encontravam há milhares de anos. No Estado do Piauí, mais precisamente na Serra da Capivara, arqueólogos encontraram fortes evidências da presença do homem há mais de 12 mil anos. Não obstante, nossos ancestrais europeus impuseram as suas leis, das quais é exemplo explícito a de número 601, de 18 de setembro de 1.850, complementada pelo Regulamento 1.318, de 30 de janeiro de 1.854, legalizando, em causa própria, a posse das terras particulares, e, até hoje, nem todas as áreas ocupadas pelos índios encontram-se demarcadas e livres da invasão de brancos.

Assim sendo, se, por um lado, é justa a iniciativa governamental analisada, por outro, até com mais razão, merecem a aplicação dos referidos critérios de auto-atribuição e autodefinição os remanescentes das comunidades nativas, no processo de demarcação de suas terras, algumas áreas das quais ainda não se encontram definitivamente legalizadas.           

*Ulysses da Silva
é registrador imobiliário aposentado e membro do Conselho Jurídico Permanente do Irib.



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