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A publicidade registrária como meio de concreção da boa-fé objetiva
Antonio Reynaldo Filho*


1. Introdução

Como ensina o saudoso professor Miguel Reale, vivenciamos a terceira fase do Direito Moderno, a qual, segundo seu escólio, se caracteriza, em especial, pela passagem da Jurisprudência de Interesses para a Jurisprudência de Valores. Sobre o atual estádio de evolução do Direito assim se pronuncia o filósofo:

O certo é que, em nossos dias, prevalece cada vez mais o emprego, tanto na legislação (modelos jurídicos prescritivos) como na doutrina (modelos jurídicos hermenêuticos), de modelos normativos abertos, tornando-se cada vez mais inconsistente a antiga distinção formalista entre “normas jurídicas imperativas” e “normas jurídicas programáticas” como se a vigência e a eficácia destas ficassem confiadas ao critério do intérprete, ou valessem apenas como diretivas genéricas, sem incidência direta no plano da jurisdição.

Ao contrário do pregado pelo naturalismo jurídico, que julgava possível subordinar a realidade social a regras jurídicas cientificamente formuladas e de antemão previstas, reconhecendo que todo sistema normativo é inevitavelmente lacunoso, de tal modo que é necessário:

a) no plano legislativo, dar preferência a modelos jurídicos abertos, não receando recorrer a valores como os de equidade e boa-fé, os quais servirão de elementos mediadores da desejada concreção jurídica, incompatível com o mero dedutivismo a partir das disposições legais;

b) no plano jurisdicional, conferir maior autonomia e poder criador aos juízes para que a adaptação das normas aos fatos concretos não redunde em simples e perigosa operação mecânica, mas constitua uma atividade predominantemente axiológica;

c) no plano da hermenêutica, conceber o ato interpretativo como um todo estrutural, na qual as diversas formas de exegese (gramatical, lógico-sistemática, teleológica, histórica-evolutiva, analógica etc.) se componham em função da natureza da espécie normativa analisada in concreto consoante diretrizes que Emilio Betti soube fixar, mais do que qualquer outro jurisconsulto, influindo sabidamente na teoria hermenêutica de Gadamer;

d) no plano das fontes do direito, reconhecer que a sua natureza retrospectiva deve ser completada pela visão prospectiva dos modelos jurídicos, cuja aplicação na Ciência Jurídica ainda encontra descabida resistência apesar de ser um dos instrumentos epistemológicos mais empregados das pesquisas científicas contemporâneas;

e) no plano normativo, completar os estudo de Hans Kelsen sobre os tipos de norma jurídica, como fizeram Norberto Bobbio e Hebert Hart, e eu mesmo, por sinal que distinguindo entre norma de conduta e norma de organização, a qual ao contrário do que erroneamente se entendeu, corresponde a norma fixadora das esferas de competência de qualquer instituição, inclusive o Estado;

f) no plano da linguagem, superar o parnasianismo expressional, tão ao gosto dos que reduzem os Códigos a textos de gramática – lembrem-se, no Brasil, as polêmicas travadas sobre a redação do Código Civil, antes de se determinar o conteúdo de seus preceitos! –, dando preferência a enunciados operacionais de caráter experiencial;

g) no plano dogmático-jurídico, enriquecer o sentido dos enunciados normativos graças às contribuições elucidativas das diversas modalidades da Lógica Jurídica de nossos dias.

Diante desse contexto, procuraremos, nas linhas que seguem, demonstrar a interface entre dois importantes institutos do direito privado, a boa-fé objetiva e o registro de imóveis.

2. Das cláusulas gerais

O Código Civil pátrio de 2002,  cujo supervisor da comissão de juristas encarregada da elaboração do projeto foi o professor Miguel Reale, se encontra pautado pelas diretrizes acima elencadas, ou seja, a preferência a modelos jurídicos abertos e a remissão a valores como os da equidade e da boa-fé.

Um dos expedientes técnicos, de que se vale o legislador, para que esses “modelos jurídicos abertos” se incorporem ao sistema normativo, é o das cláusulas gerais. 

Acerca da metodologia utilizada na elaboração do vigente diploma civil, obtempera Nelson Nery Júnior:

Em pleno século XXI não seria mais admissível legislar-se por normas que definissem precisamente certos pressupostos e indicassem também de forma precisa suas conseqüências formando-se uma espécie de sistema fechado. A técnica legislativa moderna se faz por meio de conceitos legais indeterminados e cláusulas gerais que dão mobilidade ao sistema, flexibilizando a rigidez dos institutos jurídicos e dos regramentos do direito positivo. Como um Código pela sua magnitude, não pode fundar-se apenas em cláusulas gerais, o método casuístico também foi bastante utilizado, notadamente no direito das obrigações, de modo que podemos afirmar que o CC/2002 seguiu técnica legislativa mista, com base nos métodos da casuística, dos conceitos legais indeterminados e das cláusulas gerais.

Consubstanciam-se, em síntese, as cláusulas gerais, em técnica legislativa destinada a dar mais flexibilidade, mais mobilidade ao sistema, imprescindível, hodiernamente, diante do dinamismo das relações sociais. Para tanto, se vale o legislador de norma cujo texto é composto por expressões dotadas de proposital vagueza semântica. Não são expressões cujo significado se revela numa simples consulta aos léxicos. A busca do seu significado remete o aplicador do direito a uma "investigação valorativa".

A professora Judith Martins Costa, observa que: 

A cláusula geral constitui uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente aberta, fluida ou vaga, caracterizando-se pela ampla extensão de seu campo semântico. Essa disposição é conferida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que à vista dos casos concretos, crie completamente ou desenvolva normas jurídicas.

Nelson Nery assinala que:

O juiz exerce papel de suma importância no exercício dos poderes que derivam das cláusulas gerais, porque ele instrumentaliza, preenchendo com valores, o que se encontra abstratamente contido nas referidas cláusulas gerais.

Deve o juiz, na "investigação valorativa" que a aplicação da cláusula geral exige, se valer de parâmetros, de paradigmas extraídos do contexto social "geral". Observa Judith Martins Costa:

A sua concretização exige que o juiz seja reenviado a modelos de comportamentos e pautas de valoração que não estão descritos nem na própria cláusula geral nem, por vezes, no próprio ordenamento jurídico, podendo ainda o juiz ser direcionado pela cláusula geral a formar normas de decisão, vinculadas à concretização de um valor, de uma diretiva ou de um padrão social, assim reconhecido como arquétipo exemplar da experiência social concreta.

3. Da boa-fé objetiva como cláusula geral

Estabelecida uma noção básica acerca do gênero "cláusula geral", passaremos a abordar uma de suas principais espécies: a boa-fé objetiva. Com efeito, há no nosso Estatuto Civil, três cláusulas gerais, envolvendo a boa-fé objetiva: a) no artigo 113 – com função interpretativa; b) no artigo 422 – com função de criação de deveres e condutas; e, c) no artigo 187 – com função de limitação de direitos subjetivos.

Conforme classificação preconizada por Judith Martins Costa, as cláusulas gerais podem ser do tipo restritivo, do tipo regulativo e do tipo extensivo. De tipo restritivo são aquelas  que delimitam o âmbito de permissões advindas de uma regra ou princípio. Regulativas são aquelas que regulam hipóteses fáticas não casuisticamente previstas em lei. E as extensivas, ampliam determinada regulação jurídica mediante a expressa possibilidade de serem introduzidos na regulação em causa, princípios e regras próprios de outros textos normativos. 

Nelson Rosenvald bem sintetiza o tema:

As três cláusulas gerais de boa-fé transitam por essas vias. Quando o magistrado seleciona certos fatos ou condutas socialmente aceitáveis, para confrontá-las com um determinado padrão de boa-fé, encontrará conseqüências jurídicas múltiplas e a priori, indeterminadas. Ao complementar a fattiespecie e criar o direito justo, poderá censurar determinada conduta como abusiva, sancionando um negócio jurídico de forma restritiva (resolução ou invalidação), com ênfase no artigo 187 do CC; poderá ainda o juiz ampliar a relação obrigacional potencializando a confiança recíproca mediante a inserção de deveres de proteção, informação e cooperação, por intermédio da regulação propiciada pelo art. 422 do CC e por fim e fundamental, a boa-fé convida ao ingresso no Código Civil os princípios e direitos fundamentais da Constituição Federal, por meio dos artigos já citados e do essencial art. 113 do CC. Em sentido figurado, a boa-fé se assemelha a uma janela que se abre para deveres de conduta, modelo de comportamento e uma gama de valores que radicam imediatamente no princípio da solidariedade e mediatamente no princípio da dignidade da pessoa humana.

4. Do princípio constitucional da solidariedade como fundamento da boa-fé objetiva

A Constituição federal de 1988, mais um produto da terceira fase do direito moderno, consagrou o Estado democrático de direito, estabelecendo dentre os objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), bem como concretizou a convocação à fraternidade com a meta de erradicação da pobreza e marginalização, além da redução de desigualdades sociais e regionais.

Imperioso citar mais uma vez Nelson Rosenvald:

O direito de solidariedade se desvincula, então, de uma mera referência a valores éticos transcendentes, adquirindo fundamentação e a legitimidade política nas relações sociais concretas, na qual se articula uma convivência entre o individual e o coletivo, a procura do bem comum. 

Mais à frente assevera o mesmo autor:

Neste atual contexto de alteridade e reciprocidade nas relações humanas, impõe-se necessária readequação do direito subjetivo. Tradicionalmente vinculado ao ideário liberal, refletia um poder atribuído ao indivíduo para a satisfação de seu interesse próprio. Em uma sociedade solidária, todo e qualquer direito subjetivo é funcionalizado para o atendimento de objetivos maiores do ordenamento. O sistema apenas legitima a satisfação de interesses particulares à medida que o seu exercício seja preenchido por uma valoração socialmente útil.

No que pertine a correlação entre o princípio constitucional ora abordado e a boa-fé objetiva o mesmo Nelson Rosenvald, consigna:

A conexão entre a boa-fé e o princípio da solidariedade pode responder ao questionamento doutrinário sobre as insuficiências na elaboração do Código Civil. Antonio Junqueira de Azevedo, assevera que o Código Civil (até então projeto) não levou em consideração códigos recentes como o 'uniform comercial code' que é expresso ao proibir o afastamento da boa-fé por cláusula contratual. Ou seja, haveria dúvida em saber se a boa-fé é ou não cogente no direito pátrio.

A nosso ver, não há a menor necessidade de um dispositivo expresso que revele a cogência da boa-fé. A cláusula geral é um imperativo ético que se relaciona ao substrato de uma sociedade solidária. Uma cláusula impeditiva da boa-fé transgride os fundamentos do Estado Democrático (art. 1º) e os objetivos fundamentais da República (art. 3º). Cremos que o conceitualismo – a necessidade de tudo descrever – é apenas uma forma estéril de fechar o mundo real aos valores que não brotam de palavras, mas da dinâmica da vida em relação.

5. Do conteúdo da boa-fé objetiva

Até aqui vimos que a aplicação da cláusula geral da boa-fé objetiva se opera mediante a remissão, o reenvio do juiz a uma "investigação valorativa" extraída do contexto social.  Daí se infere que o conteúdo da boa-fé objetiva não se encontra descrito numa norma, num manual, num glossário. Ele exsurgirá à luz do caso concreto, competindo ao juiz perquirir, com supedâneo nos valores que emergem do ambiente social – no qual se insere o ordenamento jurídico – se o fato, se a causa de pedir próxima, a ele submetida, se subsume a boa-fé objetiva.

Cláudio Luiz Bueno de Godoy afirma que “a boa-fé objetiva significa um  Standard, uma padrão de comportamento reto, leal, veraz, de colaboração mesmo, que se espera dos contratantes

Judith Martins Costa, ao distinguir a boa-fé subjetiva da objetiva, afirma com relação a esta última que:

(...) estão subjacentes as idéias e ideais que animaram a boa-fé germânica: a boa-fé como regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e principalmente, na consideração com o alter, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado. Aí se insere a consideração para com as expectativas legitimamente geradas, pela própria conduta, nos demais membros da comunidade, especialmente no outro pólo da relação obrigacional. E conclui: A boa-fé objetiva qualifica, pois, uma norma de comportamento leal.   

Jorge Alberto Quadros de Carvalho Silva, ao tratar da boa-fé objetiva, consigna que:

(...) a boa-fé como padrão de conduta serve para coordenar o comportamento das partes que no contrato, devem observar os deveres anexos de lealdade, cooperação e informação, não mais podendo invocar a boa-fé subjetiva para eximirem-se ou absterem-se da prática do ato que a situação exija.

O mesmo Jorge Alberto assevera que o “Uniform Commercial Code” norte-americano definiu, no seu parágrafo 1-21, 19 a boa-fé objetiva como “a honestidade de fato na conduta ou negócio jurídico correspondente”.  

O professor Renan Lotufo anota que “a boa-fé negocial traduz-se no dever de cada parte, alcançando todas as partes da relação jurídica, não importando o ponto de vista psicológico de uma das partes, seguindo como norte e padrão de conduta a ser seguido

Depreende-se, portanto, que a boa-fé objetiva se resume numa regra de conduta que exige dos cidadãos um comportamento reto, leal, solidário, de colaboração e que não há como se operar a subsunção desse comportamento às normas que a ela se referem, sem um juízo de valor fulcrado em detida investigação jurídica e social.    

6. Da publicidade registrária

Estabelecidas acerca da boa-fé objetiva as premissas necessárias para a conclusão que adiante se irá propor, cumpre-nos neste momento, fixar outras, atinentes a publicidade registrária.

Poucas vezes, a lei condiciona a eficácia de determinados fatos jurídicos, considerados no seu sentido lato, ou seja, aí englobados os fatos jurídicos stricto sensu, os atos jurídicos, os atos-fatos jurídicos e os negócios jurídicos, à comunicação, a notícia de sua existência a terceiros.

Os fenômenos jurídicos incidentes sobre alguma pessoa interessam também àquelas outras com quem ela esteja, ou possa a vir estar em relação.

Diante disso, o direito concebe alguns mecanismos voltados a informar a outrem, a ocorrência de determinados acontecimentos.

O autor português, Carlos Ferreira de Almeida, classifica esses meios legais de publicidade em imediatos e mediatos. Imediatos seriam aqueles em que a comunicação é efetuada pelo próprio sujeito criador da declaração, e mediatos aqueles que a publicidade se revela através de um  outro ato jurídico, a que chama de intermédio.

Dentre esses meios mediatos de publicidade se encontra o registro imobiliário. Mediato porque não há contato, não há relação direta, entre àquele que pretende informar e o destinatário da informação. O registro é o instrumento, é o elo, entre um e outro. Eu sei que determinado imóvel se encontra onerado, porque obtive tal informação através do registro e não diretamente do proprietário.

A publicidade registral, na feliz definição do autor patrício suso referido é uma "relação entre um sujeito (cognoscente) e um objeto (cognoscível)".

Observa o preclaro autor, que:

A relação de conhecimento registral é a relação de conhecimento respeitante a situação jurídica de uma pessoa ou coisa, realizada através de um meio mediato – o registro.

São seus elementos:

Os sujeitos – os autores dos actos de iniciativa de conhecimento;

- o autor do acto mediato (registro):

- os destinatários;

O objeto – a situação jurídica pessoal ou real;

- os actos de iniciativa de conhecimento;

- os registros

- a tomada de conhecimento

O resultado é o conhecimento de terceiros.     

Ainda nos valendo do escólio de Carlos Ferreira de Almeida, apreendemos que:

O conhecimento publicitário não é só relação, mas também processo, consistente no processo administrativo para o acto decisório praticado pelo oficial público e relativo a um fato jurídico que se pretende publicar através dos registros. (...) Os actos processuais que constituem o "iter" processual podem ser agrupados por três fases: peticção, instrução e decisão. O resultado é o registro ou sua recusa.

Como é cediço, não há relação publicitária sem requerente.

É seu pressuposto lógico que haja algo a publicizar e alguém que se proponha a fazê-lo. O registro, como meio, como instrumento, como ferramenta, como "mecanismo legal de publicidade" necessita de alguém ou de algum órgão que o coloque em funcionamento. Mal comparando, determinado "classificado" somente será publicado em dada registra ou jornal, se o interessado na sua veiculação, promover os atos materiais destinados a tanto. "Mutatis mutantis" é o que se dá com o registro imobiliário. É o que se convencionou chamar de "princípio da instância", que fora assim conceituado pelo mestre Afrânio de Carvalho:

A ação do registrador deve ser solicitada pela parte ou pela autoridade. É o que no direito alemão se costuma chamar de princípio da instância, expressão adequada também no direito brasileiro, por traduzir bem a necessidade de postulação do  registro. Sem solicitação ou instância da parte ou da autoridade o registrador não pratica seus atos de ofício.

Tal princípio se encontra positivado no direito brasileiro, no artigo 13 do vigente regulamento de registros públicos, que legitima "qualquer interessado" a movimentar o aparelho registrário.

7 - Conclusão: Da publicidade registrária como meio de concreção da boa-fé objetiva

Já nesta altura, temos fixado que: a) vivenciamos a terceira fase do Direito Moderno, cuja característica principal é a passagem da Jurisprudência de Interesses para a Jurisprudência de Valores; b) que nesse contexto, o Código Civil de 2002 adotou ao lado da  técnica legislativa da casuística,  a das cláusulas gerais; c) que as cláusulas gerais têm por função dar mobilidade ao sistema, estando positivadas em normas impregnadas de expressões dotadas de vagueza semântica, cuja aplicação requer a remissão do aplicador do direito a valores extraídos do contexto social; d) que dentre as espécies de cláusulas gerais temos a boa-fé objetiva, constante dos artigos 113, 187 e 422 do CC/2002;  e) que a boa-fé objetiva tem assento constitucional no princípio da solidariedade, impondo aos atores das relações jurídicas, deveres de conduta, dentre os quais o de lealdade, honestidade e cooperação, impondo um agir reto, atento aos interesses do “alter”;  f) que dentre os meios de publicidade preconizados pelo Direito, temos o registro imobiliário; g) que a publicidade registrária consubstancia-se em relação de conhecimento da qual são partes o requerente, o Estado (por meio do oficial registrador) e os terceiros, destinatários da informação; e finalmente, h) que não há publicidade registrária sem provocação.

Conjugando essas premissas, indagamos o seguinte:

Agiu de conformidade com os ditames da boa-fé objetiva, aquele que podendo fazê-lo, não se utiliza do registro imobiliário para dar publicidade da ocorrência de determinado fato jurídico? O autor de ação real ou pessoal reipersecutória que não promoveu o registro da respectiva citação, cumpriu com seu dever de proteção? Do mesmo modo, o credor que não promove a inscrição da penhora determinada em execução por ele aparelhada, obrou de boa-fé? E o promissário comprador que não leva o seu contrato a registro, teria se  preocupado em acautelar eventuais futuros adquirentes ou credores do titular do domínio, agindo, assim, com retidão?

A resposta parece-nos negativa.

Senão vejamos.

Tendo a boa-fé objetiva sua justificação no interesse coletivo de que a pessoa paute seu agir na cooperação e retidão, garantindo a promoção do valor constitucional do solidarismo, incentivando o sentimento de justiça social com repressão a todas as condutas que importem em desvio aos parâmetros sedimentados de honestidade e lisura, curial, nesse diapasão, a utilização do registro de imóveis, por aquele que tem a faculdade de fazê-lo, motivado, não só por interesses particulares, mas também pelo sentimento de proteção à esfera jurídica de terceiros.

A atividade dirigida ao conhecimento não é deixada pela lei entregue a vicissitude do acaso ou capricho individual. A proteção de terceiros no contato das pessoas e circulação dos bens, só é possível desde que haja efetiva possibilidade de os sujeitos de direito serem conhecedores dos atos que os podem afetar.

É do nosso sentir que dentre os deveres anexos de conduta que decorrem da boa-fé objetiva se encontra o "dever de registro". Hodiernamente se impõe o dever de dar a conhecer, com o fito de proteger o desconhecimento de terceiros, que não são assim afetados pelos fatos que não têm conhecimento.  

O "dever" de utilização do registro imobiliário exsurge da necessidade de proteção de determinados terceiros expostos a riscos de danos pessoais ou patrimoniais oriundos da execução de determinada obrigação, inserindo-se dentre aqueles denominados de "deveres instrumentais",  que se caracterizam por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes, servindo, ao menos as suas manifestações mais típicas, o interesse na conservação dos bens patrimoniais ou pessoais que podem ser afetados em conexão com o contrato ou qualquer outra relação de direito.

O cânone da boa-fé objetiva não se coaduna com a "indiferença" aos interesses de terceiros. O já tantas vezes citado, Nelson Rosenvald, consigna que dentre os titulares dos deveres de proteção encontram-se terceiros que estão expostos aos riscos de danos pessoais ou patrimoniais decorrentes da execução de determinado contrato, em que não há prevenção por parte dos contratantes.  

Assim, concluímos que o direito privado moderno, impõe, por intermédio da boa-fé objetiva, a efetiva utilização do registro imobiliário, não simplesmente como "forma jurídica" destinada à aquisição de direitos reais, mas, como instrumento de proteção a direitos de terceiros, impondo sua análise não só sob a ótica do destinatário da informação, mas também e, sobretudo, sob o prisma daquele que tem o dever de promovê-la. A utilização desse mecanismo protetivo, servirá como um dado revelador da boa-fé objetiva, devendo o efetivo cumprimento do "dever anexo de registro" ser perquirido pelo juiz na sua aplicação.

Bibliografia

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CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

COSTA, Judith Martins. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

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GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. São Paulo: Saraiva, 2004.

NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante. São Paulo:  Revistas dos Tribunais, 2003.

REALE, Miguel. Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva, 2001.

ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005.

SILVA, Jorge Alberto Quadros de Carvalho. Cláusulas abusivas no código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2003.

*Antonio Reynaldo Filho  é o segundo Oficial de Registro de Imóveis de Piracicaba, SP.



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