BE3176
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Combate à informalidade mobiliza América Latina
Registrador brasileiro participa de encontro ibero-americano
Entre os dias 8 a 11 de outubro, em Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, na sede da Agência Espanhola de Cooperação Internacional (www.aeci.org), com a organização do Colégio de Registradores da Espanha (www.registradores.org), sob coordenação de Francisco de Asis Palacios Criado, realizou-se o VII Seminário Ibero-americano de Direito Registral.
Estiveram reunidos representantes do registro da propriedade de Argentina, Bolívia, Brasil, Costa Rica, Cuba, El Salvador, Espanha, Guatemala, Honduras, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela, para debater o tema "A importância do registro da propriedade imobiliária na luta contra a informalidade".
O IRIB esteve representado por seu coordenador editorial, Marcelo Salaroli, então registrador imobiliário em Patrocínio Paulista, SP, que relatou à comunidade de registradores ibero-americanos a experiência brasileira no combate à informalidade imobiliária, cujo teor segue abaixo.
Argenis Riera (Venezuela), Francisco Palacios (Espanha), Enrique Rajoy (Espanha), Marcelo Salaroli (Brasil).
O registro imobiliário brasileiro no combate à informalidade
Marcelo Salaroli*
1. Introdução
Este texto foi elaborado para a apresentação no VII Seminário Ibero-americano de Direito Registral, patrocinado pela Agência Espanhola de Cooperação Internacional e organizado pelo Colégio de Registradores da Propriedade, Mercantis e de Bens Móveis da Espanha, realizado nos dias de 8 a 11 de outubro de 2007, em Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, cujo tema é “A importância do registro da propriedade na luta contra a informalidade”.
Primeiramente, assevere-se que dentre os registradores brasileiros, notadamente no âmbito Instituto do Registro Imobiliário do Brasil - IRIB, do qual faço parte, está certo e pacificado que a publicidade registral imobiliária não é um fim jurídico que se esgote em si mesma, mas é imprescindível fator para o desenvolvimento econômico e social. Tal perspectiva, graças ao trabalho incessante realizado pelo IRIB, já alcança outros setores, como a Administração Pública, o Ministério Público, órgãos representativos de instituições financeiras e do mercado imobiliário.
Não é objetivo deste pequeno estudo aprofundar a importância econômica e social do registro imobiliário, pois tal mister coube aos outros expositores, que têm muito mais autoridade e conhecimento para tratar do tema. Basta aqui apenas reafirmar tal importância, para tomá-la como ponto de partida.
O registro imobiliário, ao exercer sua função de qualificação de títulos e publicidade de direitos, torna os bens imóveis em ativos econômicos, que podem ser negociados de maneira segura com baixos custos de transação. Isto enriquece o mercado imobiliário e lhe dá proteção, sendo sólida base para o desenvolvimento econômico. Do ponto de vista social, o registro imobiliário promove a prevenção de litígios, ordenando e harmonizando os direitos sobre imóveis, donde decorre seu valioso atributo de pacificação social e garantia do direito à moradia.
Estando certo dessa importância do sistema registral, concentra-se este trabalho na análise de algumas medidas, boas ou más, que surgem no direito brasileiro para expandir a abrangência do registro imobiliário, trazendo para o sistema os imóveis e parcelas da população que estão à sua margem, ou seja, que navegam nas águas incertas do mercado informal, longe da proteção proporcionada pelo Estado.
Assim detectamos, apenas para fins de organizar o presente trabalho, dois focos de informalidade no Brasil, sobre os quais passaremos a dissertar: as contratações que não são instrumentalizadas nem registradas por inércia dos contratantes e o parcelamento ilegal do solo urbano.
Há um terceiro foco, que não vamos tratar nesta apresentação, que é a centenária irregularidade na transmissão dos imóveis rurais do patrimônio público ao privado.
2. Títulos não registrados
Nota-se na prática jurídica brasileira que inúmeras alienações de imóveis ocorrem sem correta formalização do negócio jurídico e, conseqüentemente, sem o devido registro imobiliário. É certo que na maioria das vezes tal ocorre pela existência de óbice jurídico que não é superável exclusivamente pela vontade das partes, como é o caso dos imóveis, rurais ou urbanos, que surgiram ilegalmente e, portanto, não estão no fólio real.
No entanto, em alguns casos, mesmo sem a existência de óbice jurídico-registral, por mera inércia das partes contratantes, não é formalizado corretamente o negócio jurídico. Por vezes a informalidade é total, contentando-se as partes com o mero acordo verbal e a expectativa de posteriormente providenciar o que chamam pejorativamente de “papelada”. Verifica-se também, numa gradação um pouco mais além do mero acordo verbal, que as partes acabam aceitando apenas um recibo de pagamento, ou um escrito particular, por vezes com firmas reconhecidas por notário público, por vezes com a assinatura de testemunhas, por vezes com ambos. Estes são os chamados “contrato de gaveta”, já que não acedem ao registro imobiliário. Por fim, há os que realizam a escritura pública (ou o instrumento particular admitido por lei), mas não levam seu título ao registro imobiliário.
Diversos são os motivos que podemos cogitar para compreender porque os contratantes abrem mão da proteção estatal: desconhecimento da importância do registro, custos com a formalização, desnecessidade da formalidade, vantagens da informalidade. Nenhum deles por si só é capaz de explicar esse fenômeno social complexo, que certamente ultrapassa os limites da ciência jurídica, mas isso não impede a análise de alguns aspectos jurídicos da questão.
O desconhecimento da importância do registro imobiliário não parece ser um fator preponderante no Brasil, pelo contrário. Ocorre a informalidade mesmo dentre os grupos sociais mais instruídos e está muito bem disseminado na sociedade o ditado popular que sintetiza a relevância dos registros públicos brasileiros “quem não registra, não é dono”. Em verdade, os cartórios historicamente gozam de muita confiança da população, havendo inúmeros casos em que o comprador só paga o preço após o registro do título.
Os custos financeiros com a formalização também não parecem ser um fator determinante. Num primeiro momento, poderíamos supor que oferecer ao titular do direito a gratuidade para registrar sua propriedade, facilitaria e ampliaria o acesso ao registro, no entanto, a prática tem nos mostrado que tal não é verdadeiro.
Experiência interessante, ainda que não diga propriamente ao registro imobiliário, mas ao registro de pessoas naturais, foi a gratuidade generalizada estabelecida pela Lei Federal 9.534, de 10 de dezembro de 1997, para os atos de registro de nascimento, seja para as classes pobres ou ricas. Diz-se que a medida é destinada a reduzir o número de crianças nascidas e não registradas, pois as conseqüências do não registro são muito maléficas para a cidadania. Entretanto, os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontam que o índice de subregistro manteve-se em valores elevados mesmo após o advento da lei da gratuidade (http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_impressao.php?id_noticia=512) .
Já no âmbito do registro imobiliário, relevante é a experiência no Estado de São Paulo com os contratos de compromisso de venda e compra de imóveis, cujo registro constitui o direito real do promitente comprador. Sendo contrato preliminar, a completa transação envolveria dois registros, a do contrato preliminar e posteriormente o contrato definitivo, cujo registro constitui a propriedade.
A Lei 11.331, de 26 de dezembro de 2002, do Estado de São Paulo, que estabelece os emolumentos devidos pelos serviços notariais e registrais, determinou que para o registro do compromisso de compra e venda fosse pago apenas 30% (trinta por cento) do valor do registro, bem como determinou que para o registro do contrato definitivo, nos casos em que já estiver registrado o compromisso que lhe é anterior, paga-se apenas 70% (setenta por cento) do valor do registro. Caso não esteja registrado o contrato preliminar, cobra-se 100 % normalmente.
Ou seja, há um grande favorecimento para o registro dos contratos preliminares, já que o valor que será pago é apenas um adiantamento de 30% do que certamente irá pagar no futuro, quando registrar definitivamente sua aquisição.
No entanto, apesar da concessão legal, a prática avassaladora demonstra que não houve um correspondente aumento no número de registro de tais contratos, que permanecem em sua grande maioria na clandestinidade, somente registrando quando lhe seja absolutamente necessário.
Sendo a propriedade um direito que historicamente se firmou justamente para proteger o indivíduo ante os abusos do Estado, não é difícil supor que os cidadãos tenham receio quanto as verdadeiras intenções estatais ao estabelecer a gratuidade. Diz-se no Brasil que “quando a esmola é demais, o santo desconfia”. Também temos razões para acreditar que a gratuidade tem sido estabelecida muito mais com um caráter político e eleitoral, de cariz demagógico, do que como mecanismo para aumentar e facilitar o acesso ao registro imobiliário.
Ademais, outro aspecto nos leva a repudiar a disseminação da gratuidade, pois esta questão, em verdade, é uma decisão sobre quem arcará com os custos do serviço registral. Quem deverá suportar ônus? O titular do direito registrado ou o Estado (ou seja, todos os cidadãos)? Sendo o maior interessado no registro o titular do direito, não parece justo impor a toda sociedade o custeio de tal serviço. No direito brasileiro tem-se indevidamente colocado um terceiro elemento nessa questão, pois sendo o serviço público registral prestado por particulares, a quem o serviço é delegado após concurso de provas e títulos, muitas vezes quem tem suportado os custos do ato gratuito é o delegado do serviço, sem qualquer previsão de ressarcimento de tais atos pelo poder público, o que viola o princípio elementar de que não há trabalho sem remuneração, muito menos trabalho forçado.
Outro motivo que pode levar os cidadãos a não registrar suas propriedades é a segurança que sentem em decorrência de sua posse e do reconhecimento e aceitação pela comunidade local da sua propriedade. Alie-se a isto a percepção, pelos titulares desses direitos, de que caso lhe seja exigido o registro terá facilidade em consegui-lo, bastando apresentar ao oficial de registro imobiliário sua documentação ou obtê-la junto ao alienante.
É certo que tal percepção nem sempre é verdadeira, pois muitas vezes a apresentação tardia do título ao registro já não socorrerá o adquirente, em virtude do princípio da prioridade. Bem como alterações legislativas posteriores à data do título causal poderão obstar seu acesso ao fólio real, já que em matéria de registro vigora no direito brasileiro o princípio de que se aplica a lei da data do protocolo. Também é possível ocorrer alteração da situação fática que torne difícil obter seu título junto ao alienante, como nos casos de falecimento ou divórcio deste. Aliás, por vezes as alterações fáticas e jurídicas que ocorrem entre a data do negócio e a data em que se busca o registro são tantas que o meio mais fácil de formalizar a propriedade é o custoso e moroso processo de usucapião.
Por outro lado, há uma certa complacência dos tribunais ante o litígio concreto, principalmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que acabando reconhecendo efeitos erga omnes aos contratos não registrados, como nos casos expressos nas súmulas 84 e 308. Avalia-se como extremamente prejudicial ao sistema registral tais reconhecimentos judiciais, pois quebram a racionalidade do sistema, incentivam a informalidade, causam surpresa no âmbito dos negócios e gera insegurança jurídica.
Assim os titulares dos direitos começam a vislumbrar certas vantagens na informalidade. Os contratantes passam a fazer um juízo de custos e benefícios e ponderam que pode ser mais interessante promover o registro futuramente, já que o benefício promovido pelo registro, a certeza da propriedade, não lhe é tão interessante no momento, e poderá ganhar alguns benefícios pelo não registro, como esconder seu patrimônio da ânsia arrecadatória do Estado, de eventuais credores ou até mesmo da intenção criminosa de seqüestradores.
O registro brasileiro é um ônus que o adquirente deve cumprir sob pena de não lhe ser reconhecido os efeitos dele decorrentes. Não há prazos para o registro, nem multas pela sua omissão, no entanto estas medidas não são a solução para a informalidade. A imposição forçada do registro poderá aumentar as suspeitas do cidadão ante o verdadeiro interesse do Estado. No Brasil, o registro nunca foi imposto por medidas coercitivas, pelo contrário, sempre ficou ao critério dos adquirentes promoverem o registro de seus títulos para conseguir os efeitos dele decorrentes.
Para incentivar ainda mais o registro, parece ser necessário consolidá-lo com um instituto ágil e eficiente, com procedimentos uniformes e simplificados, ou seja, deve-se reduzir os custos para adentrar ao sistema registral. Custos estes que não são apenas pecuniários, mas também o tempo gasto para se conseguir o registro, as documentações necessárias, os trâmites legais.
Ilustra bem essa situação o fato de que há mais de 100 anos vigora no Brasil a possibilidade de se registrar a propriedade rural pelo Sistema Torrens. A principal vantagem do Sistema Torrens é a presunção absoluta da titularidade do domínio, a qual não admite prova em contrário. No entanto, raríssima é a utilização de tal registro, seja porque ao proprietário já bastava a presunção relativa que decorre do registro comum, seja porque o trâmite do Registro Torrens é extremamente custoso e moroso, envolvendo a contratação de engenheiros para realizar levantamento planimétrico, publicação de editais, necessidade de notificação de todos interessados e apreciação judicial mesmo na inexistência de impugnação.
Assim, parece-nos que a redução desse tipo de informalidade está no equilíbrio de custos e benefícios do registro, vale lembrar que estes custos não são apenas pecuniários e que esse equilíbrio deve ser levado em conta do ponto de vista dos titulares de direitos, não do ponto de vista do Estado.
Atualmente no Brasil, ainda que sempre seja possível melhorar, principalmente em matéria de uniformização de procedimentos, não parece que exista excesso de burocracia que possa configurar em empecilho intransponível aos registros públicos. O registro brasileiro sempre foi muito buscado pelos proprietários e ainda o é por suas próprias virtudes, o próximo passo no caminho para sua plenitude está em fortalecer as informações registrais, negando efeitos perante terceiros a todo e qualquer direito que não esteja registrado.
3. A ilegalidade do imóvel urbano
Provavelmente a maior fonte de informalidade para o registro imobiliário brasileiro é a ilegalidade dos imóveis urbanos por violação da legislação urbanística e ambiental. Segundo estimativas do Ministério das Cidades, dois terços das áreas urbanas do país estão em situação irregular. Os dados são alarmantes e já se constata que a irregularidade está presente não apenas nas grandes cidades, mas também nas pequenas e médias, bem como atinge não apenas as classes sociais mais pobres, mas também as mais abastadas.
Estando o imóvel em área irregular, certamente estará excluído do sistema registral, já que este, imbuído do princípio da legalidade e realçando sua função social, não oferece proteção aos imóveis surgidos em desrespeito às regras do urbanismo e meio-ambiente. O controle é tão rigoroso que até mesmo perante concretos indícios de que os sucessivos desmembramentos da área maior ou as sucessivas alienações de frações ideais estão sendo realizadas em fraude à legislação urbanística, deverá o Oficial de Registro Imobiliário obstar a prática de novos registros (a respeito, veja-se a decisão da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, Processo CG 2.588/2000, de 08.06.2001).
Dessa forma tornou-se imprescindível aos registradores, que tradicionalmente ostentam uma boa formação do direito civil, aprofundar seus conhecimentos de direito urbanístico e das políticas públicas de regularização fundiária. Aliás, a importância dos registradores no âmbito do direito urbanístico é bem ilustrada pela participação desses profissionais, por meio do IRIB, no Grupo de Análise e Aprovação de Projetos Habitacionais do Estado de São Paulo – GRAPROHAB - conforme Decreto nº. 52.053, de 13 de agosto de 2007. Este grupo reúne e coordena os diversos órgãos envolvidos no processo de aprovação de parcelamento do solo para fins habitacionais.
É certo que o registro imobiliário pode contribuir para evitar novas e futuras violações da legislação urbanística, no entanto, com os olhos voltados para a realidade brasileira atual é necessário responder a urgente questão social: o que fazer com essa imensa área urbana irregular? Para isso, cabe analisar as causas que levaram à irregularidade, as políticas de regularização adotadas e seus instrumentos jurídicos e, principalmente, como o registro imobiliário se insere nesse processo.
O principal motor da irregularidade das cidades brasileiras tem sido expresso pelo conhecido binômio da economia: a demanda por habitação é maior do que a oferta. Isto se dá principalmente em razão da precariedade da oferta, resultado de políticas públicas habitacionais insuficientes e inadequadas e um mercado imobiliário voltado primordialmente para realizar o maior lucro possível.
Ilustra bem essa pressão social por habitação o bairro denominado “Brasília Teimosa”, em Recife, Estado de Pernambuco ou o bairro homônimo em Natal, Estado do Rio Grande do Norte, ambos com uma história semelhante, que se repete no Brasil afora (http://www.recife.pe.gov.br/especiais/recifesempalafitas/brasilia.php). Tais bairros surgiram nas décadas de 70 e 80, sendo uma ocupação irregular crescente até o ponto em que o poder público resolveu remover a população daquelas áreas e assim o fez. Após a remoção, a área permaneceu ociosa e foi novamente invadida e ocupada, o poder público novamente promoveu a remoção da população e, como não apresentou alternativa para a urbanização da área, esta foi pela terceira vez ocupada irregularmente. Enfim, daí decorre o nome do bairro, “teimosa”, pois mesmo cientes das desocupações forçadas a população voltava a ocupá-lo. Essa foi a lição para que o poder público atacasse diretamente as causas e priorizasse as políticas de regularização fundiária em detrimento da simples desocupação.
O rigor da legislação e a precariedade da fiscalização são outros fatores costumeiramente apontados como contribuintes da irregularidade fundiária. Sustenta-se que a legislação civil e urbanística estabelece padrões elevados, mas que não refletem as condições socioeconômicas da população. Seriam exemplos desses padrões elevados a necessidade de se reservar 35% da área a ser loteada para os espaços públicos, cujo domínio seria transferido ao Poder Público para a implantação de equipamentos urbanos, áreas verdes, áreas de recreação, áreas institucionais. Bem como a impossibilidade de parcelar em áreas de alta declividade ou ambientalmente protegidas. Tais alegações estão pendentes de uma comprovação empírica mais científica, a fim de apurar se estes padrões são realmente elitistas ou se a ganância dos loteadores ignorou a legislação para construir fortuna particular.
A fiscalização do cumprimento da legislação urbanística compete constitucionalmente aos Municípios, mas estes não estão desempenhando satisfatoriamente seu papel, o que se constata também pelas condenações judiciais que têm sofrido com ações civis públicas promovidas pelo Ministério Público. É muito questionável se a precariedade da fiscalização decorre de falta de estrutura administrativa dos municípios. Parece mais provável que decorre da falta de vontade política, já que em muitos casos o próprio poder público figura como loteador irregular ou adota uma postura paternalista e omissiva, com notórios interesses eleitorais.
As conseqüências da irregularidade são diversas e vão desde a mais nefasta precariedade das condições de vida, em áreas que oferecem risco de vida de seus moradores, com falta de todos os serviços públicos básicos, como coleta de esgoto, água, energia elétrica, iluminação e asfaltamento das vias públicas, coleta de lixo, correio, áreas de lazer, hospitais, escolas, policiamento. Gradativamente, conforme o caso concreto, encontram-se áreas que estão melhores organizadas até o ponto em que há toda a infra-estrutura urbanística, faltando aos seus moradores apenas o título de propriedade.
Além da degradação social e humana, a irregularidade gera elevados custos econômicos, principalmente se comparados com os custos das medidas preventivas. A falta de planejamento e a irracionalidade da cidade irregular acarretam uma maior dificuldade de implantar e manter os serviços públicos. Vê-se também que o acesso dos moradores às áreas ilegais nem sempre é gratuito, mas tem preço elevado, transformando a população vítima do mercado imobiliário especulativo.
Ainda no aspecto econômico, mas já entrelaçado com o aspecto jurídico, a irregularidade da ocupação acarreta a exclusão dos cidadãos do mercado de crédito. Isto porque inexiste título de propriedade, logo esta não pode ser oferecida em garantia dos financiamentos ou créditos imobiliários, bem como não há como comprovar o patrimônio, o que submete o cidadão a juros bancários mais elevados, quando não estará totalmente a mercê de agiotas. Vale lembrar que no Brasil o mercado de crédito imobiliário representa apenas 3 % do PIB, número insignificante já que a média européia é de 50 % do PIB. Certamente um dos fatores para esse baixo percentual decorre da falta de titulação dos imóveis.
A solução para todos esses males está no que chamamos de regularização fundiária, que é um conjunto integrado de políticas públicas que promovam a urbanização e recuperação do meio-ambiente urbano, proporcionando um espaço provido de serviços públicos e de equipamentos urbanos adequados e também outorgando aos cidadãos o título que comprove seu direito.
A regularização fundiária é imprescindível para a redução da pobreza e promoção da dignidade humana, no entanto, não pode ser vista como a solução para o problema do crescimento ilegal das cidades, pois não o interrompe, apenas remedia as situações fáticas já consolidadas. Neste ponto devemos considerar que a regularização fundiária é medida excepcional, seu uso indiscriminado resultaria em incentivos aos parcelamentos ilegais, pois haveria a expectativa de que no futuro sejam feitas as obras de infra-estrutura, tudo à custa do Estado, o que representaria um enriquecimento ilícito para os loteadores irregulares.
Sabemos que o registro imobiliário contribui preventivamente para coibir o surgimento de imóveis em violação à legislação urbanística, impedindo o acesso de títulos em desacordo com a lei, comunicando às autoridades competentes os ilícitos que tiver conhecimento, publicizando as limitações urbanísticas ao direito de propriedade.
No entanto, o registro imobiliário também desempenha importante papel no processo de regularização fundiária, principalmente tendo em vista a reorganização dos direitos de propriedade imóvel. O registro deverá fornecer para a autoridade regularizadora a situação jurídica prévia da área a ser regularizada e consolidar em seus assentos a realidade jurídica após a regularização. Assim as informações registrárias estarão de acordo com a nova realidade, dessa simetria extrai-se a presunção de exatidão e integridade dos direitos registrados, o que protege o titular da propriedade e os terceiros que com ele contratam, garantindo estabilidade das relações no mercado e na sociedade.
O título de propriedade registrado dá segurança ao cidadão e com esta segurança o indivíduo é incentivado a investir no seu imóvel. É verdade que em alguns casos se verifica que esta segurança também pode advir do reconhecimento pela comunidade local de sua propriedade, no entanto, é imprescindível que o direito de moradia esteja formalizado em um título de propriedade registrado, pois a segurança deste amplia a proteção da posse e da propriedade em face de todos.
E não é só, o título registrado torna o direito sobre o imóvel ativo econômico a ser transacionado de forma segura, servindo de garantia ao crédito, o que insere o cidadão no mercado de crédito.
Essa a importância do registro da propriedade no processo de regularização fundiária, o que em última análise contribui para a redução da informalidade. Passemos agora a analisar alguns institutos jurídicos que o direito brasileiro oferece para a efetivação da regularização fundiária.
Muitos adquirentes de imóveis em situação irregular, inconformados com a falta de título registrado, socorrem-se do Poder Judiciário, por meio da ação de usucapião ou de adjudicação do imóvel. No entanto, essas medidas são muito custosas e demoradas e impõem que cada um dos proprietários tome a iniciativa da regularização isoladamente, não há integração entre as diversas ações, de forma que esse instrumento soluciona o problema individual, mas não o coletivo, desconsiderando a proteção ao meio-ambiente e urbanismo.
Há outros três institutos jurídicos que foram desenhados especialmente para melhor solucionar as questões de política urbana, mas eles também são passíveis de críticas. São eles a concessão especial de uso para fins de moradia, a autorização especial de uso para fins comerciais e a concessão do direito real de uso. Este último é um pouco mais amplo que os dois primeiros, já que pode ser concedido pelo proprietário do imóvel particular, enquanto que os outros dois só podem se concedidos pelo Poder Público, e também não está vinculado apenas aos fins de moradia ou pequeno comércio, mas admite outras utilizações para o imóvel.
Ocorre que estes títulos não acedem ao registro imobiliário e garantem um direito muito limitado se comparado aos direitos do proprietário, dessa forma, tem-se afirmado que seu maior valor, talvez único, é a garantia do exercício da posse em face do Poder Público, assegurando que seus titulares não serão desocupados a força dessas áreas, como já aconteceu na história recente brasileira.
Esses títulos não são alienados no mercado formal e não são aceitos como garantia (já que sua execução seria incerta), dessa forma estamos diante de um título manco, que carece de um de seus atributos fundamentais, a virtude de proporcionar a circulação. Assim não se cumpre a função econômica, motivo pelo qual o direito registral brasileiro sustenta que o melhor título a ser outorgado é o direito de propriedade ou ainda uma outra figura jurídica que não retire do titular do direito sua liberdade de negociar formalmente e com segurança seus direitos.
Ao lado desses institutos há procedimentos de regularização com fundamento no artigo 40 da Lei Federal 6.766, do ano de 1979, que culminam com a outorga do título de propriedade. No entanto, apesar deste importante e sucinto artigo, a legislação vigente é insuficiente para dar uma resposta adequada à demanda por regularização, não há regras uniformes nem estão claros os requisitos necessários. Coube justamente aos órgãos de fiscalização do registro imobiliário colmatar essa lacuna.
No Brasil, essa fiscalização é exercida pela Corregedoria-Geral da Justiça, que é o órgão do Poder Judiciário Estadual. Citemos dois exemplos de normatização da regularização fundiária: o Projeto More Legal, já em sua terceira edição, realizado pela Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e o Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo.
No entanto, o maior marco legislativo brasileiro sobre regularização fundiária está por vir. Está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 20/2007, que normatizará a matéria em nível federal, estabelecendo regras claras e uniformes para todo o procedimento de regularização fundiária, inclusive determinando o papel do registro imobiliário, seja na qualificação dos títulos, seja nos efeitos desse registro.
4. Conclusões
De todo o exposto, podemos afirmar que o registrador imobiliário brasileiro, para contribuir com a formalização da propriedade, deve:
• compreender que o registro imobiliário não é um fim jurídico em si mesmo, mas está intimamente conectado com sua função social e econômica.
• abandonar uma postura passiva em seu ofício registral e entrosar-se ativamente no procedimento de regularização fundiária.
• preparar-se tecnicamente para qualificar e registrar, com uniformidade e eficiência, o título de regularização fundiária.
• estar aberto para cooperação e diálogo constante com a autoridade regularizadora, a fim de buscar consenso na aplicação do direito e na consecução do objetivos da regularização fundiária.
• fornecer os dados registrais necessários para a regularização fundiária.
5. Bibliografia
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FERNANDES, Edésio. Políticas de regularização fundiária: confrontando o processo de crescimento informal das cidades latino-americanas. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO REGISTRAL, 15, 2005, Fortaleza. Trabalhos apresentados. Disponível em: <http://www.cinder2005.com.br/trabalhos.asp>. Acesso em: 16.ago.2007.
FERRAZ, Patrícia André de Camargo. Regularização fundiária e desenvolvimento econômico sustentado. Algumas experiências do Brasil. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO REGISTRAL, 15, 2005, Fortaleza. Trabalhos apresentados. Disponível em: <http://www.cinder2005.com.br/trabalhos.asp>. Acesso em: 16.ago.2007.
MENDEZ GONZALEZ, Fernando P; NOGUEROLES, Nicolas.; JACOMINO, Sergio; FERRAZ, Patrícia André de Camargo. Café chileno. Registro em áudio de uma conversa descontraída em Viña del Mar, Chile, 2006. Disponível em: <http://www.irib.org.br/radio/indice.asp>. Acesso em 18.ago.2007.
OLIVEIRA, Sonia Lima de; STAURENGHI, Rosangela. Pós-regularização urbanística e seus efeitos socioambientais. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO REGISTRAL, 15, 2005, Fortaleza. Trabalhos apresentados. Disponível em: <http://www.cinder2005.com.br/trabalhos.asp>. Acesso em: 16.ago.2007.
PAIVA, João Pedro Lamana. Regularização Fundiária. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO REGISTRAL, 15, 2005, Fortaleza. Trabalhos apresentados. Disponível em: <http://www.cinder2005.com.br/trabalhos.asp>. Acesso em: 16.ago.2007
*Marcelo Salaroli é coordenador da RDI – Revista de Direito Imobiliário do Irib e registrador civil em São Paulo.
(Edição e revisão SJ)
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