BE3097
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O procedimento retificatório instituído pela lei federal 11.481/07
Luciano Lopes Passarelli*
A lei federal 11.481/07 alterou vários dispositivos do decreto-lei 9.760, de 5 de setembro de 1946, que dispõe sobre os bens imóveis da União.
A par de disciplinar o procedimento discriminatório em geral dos bens da União, referido decreto-lei, com a redação dada pela citada lei 11.481/07, criou um rito especial para a demarcação de terrenos destinados à regularização fundiária de interesse social, regrado nos artigos 18-A a 18-F. O novel diploma, embora sinalize que a identificação da área como sendo uma Zeis caiba ao município, por intermédio do Plano Diretor ou de outro instrumento legal que garanta sua função social[1], condiciona mais à frente a demarcação de terrenos para regularização fundiária de interesse social às operações que visem atender famílias com renda familiar mensal não superior a cinco salários mínimos[2].
Observe-se que as disposições contidas nos citados artigos 18-A a 18-F do decreto-lei 9.760/46 não são aplicáveis exclusivamente aos imóveis pertencentes à União. O artigo 22 da lei 11.481/07 estende sua aplicação aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, para os casos em que esses entes federados realizem regularizações fundiárias de interesse social nos imóveis de sua propriedade. Saudamos enfaticamente o novo diploma legal, como um marco na luta contra a marginalização em que grande parcela da população brasileira vive hoje, no que pertine ao direito de moradia, embora o legislador tenha sido tímido nesse momento, já que poderia abarcar, também, a possibilidade de regularização de áreas particulares.
Curial lembrar que uma das facetas essenciais de qualquer regularização fundiária passa necessariamente pela titulação das posses, fazendo do Registro Imobiliário ator indispensável no processo. E o primeiro passo é, sem dúvida, a regularização da área toda em que se dará o procedimento regularizatório, para depois identificar as áreas individuais, pertencentes a cada beneficiado. Trata-se, portanto, de atender o princípio registrário da especialidade, em ordem a extremar a área regularizanda de quaisquer outros imóveis, dando-lhe o perímetro, medidas e confrontações. O novo texto legal, segundo nos parece, avançou bastante nesse aspecto.
Pois bem. O novel procedimento tem uma peculiaridade interessante: tanto é aplicável às hipóteses em que o imóvel não tenha ainda matrícula ou transcrição, e nesse caso ganha ares de processo discriminatório[3], quanto às hipóteses em que exista registro anterior e, havendo divergência entre a descrição constante deste e daquela que for apurada no levantamento de campo, fará as vezes de procedimento retificatório.
A demarcação será instrumentalizada por um “auto de demarcação”, assinado pelo secretário do Patrimônio da União – ou seu congênere estadual e municipal–, devendo ser instruído com planta e memorial descritivo da área a ser regularizada, dos quais constem sua descrição, com medidas perimetrais, área total, localização, confrontantes e coordenadas, preferencialmente georreferenciadas dos vértices definidores de seus limites.
O uso da expressão “preferencialmente”, referindo-se às coordenadas georreferenciadas, nos leva a entender que a norma é dirigida ao ente federado que está realizando a demarcação, não devendo o oficial de registro de imóveis negar o ingresso do “auto de demarcação” que vier sem esse requisito.
Se o imóvel estiver matriculado ou transcrito, deverão ser declinados o número do registro e o nome do “pretenso” proprietário, se houver[4].
Note-se que a demarcação nesses casos só é possível se incidir sobre imóveis públicos, de propriedade de qualquer um dos entes federados. Daí porque se o registro indicar como proprietário um particular, aparentemente estaríamos diante de uma contraditio in terminus, porque o imóvel não seria de domínio do poder público.
Nesse caso, o proprietário indicado no registro deve ser notificado pelo oficial de registro de imóveis pessoalmente. O oficial registrador deverá tentar localizá-lo no próprio imóvel retificando, no seu endereço que constar dos assentamentos registrais, e ainda no endereço que eventualmente for fornecido pelo ente federado.
Embora o texto legal valha-se do disjuntor “ou”, parece-me que, por cautela, deve o registrador esgotar todas as possibilidades, para só então lançar mão da notificação por edital, após certificar que suas diligências para localizar o proprietário indicado foram infrutíferas.
O edital deverá conter um resumo do pedido da demarcação, com a descrição que permita a identificação da área demarcanda, e deverá ser publicado por duas vezes, dentro do prazo de trinta dias, em um jornal de grande circulação local[5]. A publicação será de responsabilidade da União, que encaminhará ao registrador os exemplares dos jornais onde publicados os editais[6].
O proprietário indicado terá o prazo de quinze dias, contados da última publicação, para impugnar a demarcação. Se não o fizer, caberá ao registrador abrir matrícula da área em nome da União (ou do estado-membro, Distrito Federal, ou município), averbando essa circunstância no registro anterior.
E mais: se houver algum direito real sobre a área demarcada, ou parte dela, o registrador deverá também proceder ao cancelamento desses registros[7].
Naturalmente que todos esses aspectos poderão eventualmente ser questionados pelos prejudicados em sede jurisdicional, já que a lei não afastou, como não poderia mesmo, o socorro ao poder Judiciário, garantido por nossa Carta Maior[8].
Mas, como se disse, o proprietário indicado poderá impugnar a demarcação. Havendo tal impugnação, o oficial de registro de imóveis deverá dar ciência dos seus termos ao ente federado, abrindo-se oportunidade para que seja entabulada transação. Se isso não for possível, o registrador encaminhará o procedimento ao “juízo competente” que, a nosso ver, é o juiz federal, e não o corregedor estadual do registro imobiliário.
Caso a impugnação seja ao final julgada procedente, os autos serão restituídos ao registro imobiliário para cancelamento da prenotação e devolução dos documentos ao poder público. Se for julgada improcedente, o registrador, recebendo de volta o “auto de demarcação”, procederá ao registro do mesmo, na forma como comentaremos logo em frente.
Note-se que a impugnação poderá ter por objeto apenas parte do imóvel demarcando. Nesse caso, o procedimento poderá prosseguir com relação ao remanescente incontroverso[9].
Feitos esses breves comentários acerca do problema envolvendo a existência de um proprietário particular da área demarcanda no álbum imobiliário, continuaremos a verificar a documentação que deve instruir o “auto de demarcação”.
Além do mapa e memorial descritivo já citados, deverá também ser apresentada uma outra planta, com uma sobreposição da área demarcada e da situação registral do imóvel. É uma providência interessante, pois ajudará o registrador a melhor visualizar a correspondência e eventuais divergências entre a descrição do imóvel que figura nos seus assentamentos e a descrição pretendida.
O auto deverá também estar instruído com certidão do registro de imóveis, reforçando a necessidade de ser informado se o imóvel tem ou não registro.
Isso se mostra extremamente salutar, atendendo aos reclamos da segurança jurídica. O registro deve espelhar a verdade jurídica da titularidade dominial-imobiliária, de sorte que sociedade possa confiar em seu acervo. Assim, é importante saber se o imóvel tem registro anterior porque, caso o imóvel venha ser matriculado em nome do ente federado que promove a demarcação, isso significará também uma perda do domínio para o particular. A não sinalização dessa circunstância no registro anterior poderia ensejar a continuação indevida daquela cadeia filiatória, já sem lastro fático.
Prossegue a lei elencando a necessidade da apresentação também de uma certidão da Secretaria do Patrimônio da União de que a área lhe pertence. Esta regra deve ser adaptada, segundo pensamos, à realidade legislativa dos estados-membros, do Distrito Federal e dos municípios.
Caso o ente que esteja promovendo a demarcação seja a União, e apenas para ela, deverá ser apresentada também planta de demarcação da linha preamar média – LPM, quando se tratar de terrenos de marinha ou acrescidos, e a planta de demarcação da linha média das enchentes ordinárias – LMEO, quando se tratar de terrenos marginais de rios federais.
Todas as plantas e memoriais deverão ser elaborados por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica – ART – relativa ao trabalho realizado[10].
Acrescente-se ainda que deverá ser comprovado que o imóvel situa-se em uma Zeis – zona especial de interesse social, e que a demarcação está sendo feita ao ensejo de um procedimento de regularização fundiária destinada a atender famílias com renda mensal não superior a cinco salários mínimos.
Apresentado o “auto de demarcação” no registro de imóveis, será o mesmo prenotado e autuado, sendo que a prenotação valerá até a solução final do procedimento[11], não caducando em trinta dias, como de regra[12].
O oficial registrador terá o prazo de trinta dias para realizar buscas com o escopo de identificar as matrículas e transcrições correspondentes à área a ser regularizada e, examinando os documentos apresentados, deverá comunicar ao apresentante a existência de eventuais exigências para a efetivação do registro. Deverá cuidar o registrador para elaborar uma nota devolutiva exauriente, posto que não poderá formular novas exigências em uma segunda oportunidade.
É claro que isso não exclui a possibilidade de uma segunda devolução, não por exigência nova, mas para reiterar exigência feita na primeira devolução, caso não seja atendida a contento.
Prossegue disciplinando o artigo 18-C da novel redação do decreto-lei 9.760/46 que se inexistir matrícula ou transcrição anterior, estando a documentação em termos, deverá o oficial registrador abrir matrícula em nome da União e registrar o “auto de demarcação”.
Do ponto de vista da técnica registral, causa certa estranheza abrir a matrícula já constando a União como proprietária e depois lavrar um registro, de número 1, do Auto de Demarcação, para dizer que o imóvel foi demarcado como sendo de propriedade da União, o que já figuraria no preâmbulo da matrícula, dando a impressão de um ato repetitivo e inócuo. Melhor seria no preâmbulo consignar a inexistência de proprietário registral anterior[13], e aí sim no R.1 declinar a demarcação do imóvel como de propriedade da União.
Também temos como adequado lançar uma averbação prévia para consignar que o imóvel situa-se em uma Zeis – zona especial de interesse social –, e que está afetado a programa de regularização fundiária destinada a atender famílias com renda familiar mensal não superior a cinco salários mínimos. Essa providência facilita a visualização do status juris do imóvel, já que esse procedimento é especialíssimo.
A título de mera sugestão, o registro poderia ser elaborado da seguinte forma:
“Av. 1 / M. 000 – (ZEIS).
Em (data).
Conforme o Auto de Demarcação expedido em (data) pela Secretaria de Patrimônio da União (ou outro órgão expedidor), nesta cidade, nos autos do Processo Administrativo número (referências diversas ao procedimento que ensejou a expedição do Auto Demarcatório), instruído com a certidão nº 00, passada pela Prefeitura Municipal desta cidade em (data), procedo esta averbação para constar que o imóvel objeto desta matrícula situa-se em uma ZEIS – Zona Especial de Interesse Social -, e está afetado a programa de regularização fundiária destinada a atender famílias com renda familiar mensal não superior a cinco salários mínimos”.
“R. 2 / M. 000 – (demarcação administrativa).
Em (data).
Conforme o Auto de Demarcação referido na Av.1, procedo este registro para constar que o imóvel objeto desta matrícula foi DEMARCADO como sendo de propriedade da UNIÃO, nos termos dos artigos 18-A a 18-F do Decreto-Lei Federal nº 9.760/46”.
Contudo, poderá ser que o imóvel já esteja registrado. Já comentamos nesse caso acerca das providências a serem tomadas relativamente a quem figurar no fólio real como proprietário do imóvel. Há, porém, diligências a serem feitas relativamente a confrontantes, ocupantes e terceiros interessados[14], que deverão ser notificados do procedimento em curso para que ofereçam impugnação, se o caso.
Essa notificação será feita desde logo por edital, sendo despicienda qualquer tentativa de notificação pessoal.
Um aspecto chama muito a atenção aqui: não há exigência de notificação de confrontantes, ocupantes e terceiros interessados nas hipóteses de demarcação de imóveis sem registro anterior. O caput do artigo 18-D é bem expresso ao referir-se que eles serão notificados se houver registro anterior. Porém, não se pode afastar o risco de prejuízos a confrontantes nas hipóteses de demarcação de áreas não tituladas, dado que haverá risco de sobreposição das divisas.
Mas parece-nos que, inexistindo registro anterior, a demarcação é mesmo unilateral. Como o oficial registrador está vinculado à legalidade estrita, temos que não será possível fazer exigência no sentido de que sejam notificados os confrontantes, ocupantes e terceiros interessados nas hipóteses de demarcação de imóvel sem registro anterior.
Notificadas as pessoas acima referidas, abre-se para elas o prazo para impugnação, prosseguindo-se no mesmo rito já comentado acerca do proprietário tabular.
Notas
[1] Artigo 7º, parágrafo segundo, da lei federal 9.636/98, com a redação que lhe deu a lei federal 11.481/07. Contudo, referido dispositivo excepciona áreas situadas em faixa de fronteira ou de imóveis que estejam sob a administração do Ministério da Defesa e dos comandos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.
[2] Artigo 18-A, parágrafo primeiro, do decreto-lei 9.760/46, inserido pela lei 11.481/07.
[3] Insista-se, contudo: aplicável apenas em áreas afetadas à condição de Zeis.
[4] Artigo 18-A, inciso I, do decreto-lei 9670/46.
[5] Artigo 18-D, parágrafo segundo, do decreto-lei 9.670/46.
[6] Artigo 18-D, parágrafo quinto, do decreto-lei 9.670/46.
[7] Artigo 18-E do decreto-lei 9.670/46.
[8] Artigo 5º, XXXV, CF/88.
[9] Artigo 18-F, parágrafo primeiro, do decreto-lei 9.760/46.
[10] Artigo 18-A, parágrafo terceiro, do decreto-lei 9.760/46.
[11] Artigo 18-F, parágrafo quarto, do decreto-lei 9.760/46.
[12] Artigo 205 da Lei de Registros Públicos.
[13] Sugestão: “Proprietários: não consta”.
[14] Artigo 18-D do decreto-lei 9.760/46.
*Luciano Lopes Passarelli é registrador de imóveis de Batatais, SP.
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