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O Registro de Imóveis e as Terras tradicionalmente ocupadas pelos Índios
Marcelo Augusto Santana de Melo*


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O artigo 20, XI, da Constituição Federal, dispõe que são bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. O artigo 231, § 1º, define como tal as terras habitadas pelos índios em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

José Afonso da Silva leciona que a expressão terras tradicionalmente ocupadas não revela uma relação temporal, “não se trata de posse ou prescrição imemorial, como se a ocupação indígena nesta se legitimasse e dela se originassem os direitos dos índios sobre as terras por eles ocupadas, porque isso, além do mais, é incompatível com o reconhecimento constitucional dos direitos originários sobre elas”. Para o autor, “o tradicionalmente refere-se ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos em que se deslocam etc.” (Curso de direito constitucional positivo. Malheiros. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 823).

A regulamentação do artigo 231 da Constituição Federal ocorreu diretamente através do Decreto n. 1.775, de 8 de janeiro de 1996, que estabeleceu um largo procedimento para a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas por índios e Portaria nº. 14, de 9 de janeiro de 1996, do Ministério da Justiça,  que disciplina as regras sobre a elaboração do relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Terras Indígenas.

O procedimento é presidido pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI através da Diretoria de Assuntos Fundiários, que é o órgão do  governo brasileiro que estabelece e executa a Política Indígena no Brasil, e consiste em dez etapas:

1. Estudos Antropológicos de Identificação: onde são realizados estudos que apresentarão o modo de ocupação de determinado grupo étnico indígena, de acordo com critérios culturas;

2. Formação de Grupo Técnico especializado: consiste na etapa de estudos complementares de caráter ambiental, histórico, etnohistórico, cartográfico, levantamento de ocupação não indígena  e de outra natureza, necessários para demonstrar  a ocupação tradicional e apresentação de proposta de delimitação de área. Este Grupo Técnico será coordenado por antropólogo e ao final apresentará Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação.

3. Aprovação do Relatório Circunstanciado: no prazo de  quinze dias após aprovação pela Presidência da FUNAI será publicado resumo dos estudos nos diários oficiais da União e Estado;

4. Contraditório: manifestações relativas ao procedimento podem ser apresentadas desde o início dos trabalhos de identificação até noventa dias depois da publicação. A FUNAI responde as eventuais contestações no prazo de sessenta dias e encaminha processos de identificação e de contestação para apreciação pelo Ministério da Justiça;

5. Emissão de Portaria Declaratória pelo Ministério da Justiça, declarando, reprovando ou solicitando diligências;

6. Demarcação Física: a materialização dos limites é feita apenas nas linhas secas, através de abertura de picadas, implantação de marcos e placas indicativas e medição topográfica e geodésica. Os limites naturais são definidos através de conversão digital das cartas topográficas. Em seguida é elaborado o mapa e o memorial descritivo da demarcação, que instrui o decreto de homologação do  Presidente da República.

7. Homologação do Presidente da República.

8. Atualização do levantamento fundiário e cadastro pelo INCRA;

9. Registro no Cartório de Registro de Imóveis e anotação na Secretaria de Patrimônio da União - SPU;

10. Regularização fundiária: a legislação prevê o pagamento de indenizações relativas a benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

Chama-nos a atenção e configura o tema de maior interesse desse breve estudo, a utilização do Registro de Imóveis para publicizar um bem público da União afetado ao uso de povos indígenas.

É cediço que os bens públicos, a princípio, não necessitam da publicidade registral para garantir os direitos de seus titulares já que são inalienáveis e, por decorrência, também imprescritíveis e impenhoráveis. No entanto, é notório que cada vez mais o Registro de Imóveis está sendo reconhecido como um importante reforço da publicidade legal.

Por outro lado, uma das finalidades das terras indígenas é a proteção e preservação dos recursos naturais, o que corrobora os recentes estudos que acabaram por eleger o Registro de Imóveis como órgão natural para reforçar a publicidade ambiental que, através de seus livros, outorga maior transparência e facilidade de acessos a todos os cidadãos a essas informações.

E não poderia ser diferente.  O Registro de Imóveis é  um órgão que exerce serviço público (art. 236 da Constituição Federal); são organizados territorialmente; possui relação com todos os demais órgãos da Administração; o serviço é exercido por profissionais com qualificação técnica após aprovação em concurso de prova e de títulos (art. 3º da Lei 8.935/94); e existe conexão com o Sistema Geodésico Brasileiro (Lei 10.267/2001 e Decreto 4.449/2002).

O artigo 6º do Decreto n. 1.775, de 08 de janeiro de 1996, determina que “em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, o órgão federal de assistência ao índio promoverá o respectivo registro em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda.

A Lei 5.972, de 11 de dezembro de 1973, permite a abertura de matrícula de áreas públicas no Registro de Imóveis, independente do título anterior (parágrafo único do art. 2º) estabelecendo alguns requisitos, e pode ser utilizada perfeitamente para as terras indígenas. A única observação seria a necessidade da matrícula ser aberta figurando como proprietária a União, lançando-se posteriormente uma averbação noticiando o decreto presidencial e afetando a área como terra tradicionalmente ocupada por povos indígenas.

Não existe previsão normativa, mas a descrição dessas áreas provavelmente será georreferenciada em virtude da extensão e facilidade de levantamento - sem falar no fato de ser a técnica descritiva mais avançada - o que representa um avanço tecnológico e representa facilidade de controle pelo Registro de Imóveis. Todos os meios de publicidade são válidos e úteis, mas poucos possuem efetivamente a capacidade de impedir situações irreversíveis, e, nesse propósito não podemos olvidar que o Registro de Imóveis através de sua publicidade pode afastar a chance de sobreposição de direitos, prevenindo futuros litígios e situações praticamente irreversíveis, por isso foi utilizado no procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas. 

Salienta-se que levar ao Registro de Imóveis bens públicos não é exclusividade de nosso direito. O regulamento hipotecário espanhol em seu artigo 5º, disciplina que “os bens imóveis de domínio pública também poderão ser objeto de inscrição, conforme a sua legislação especial”.
Nesse sentido o trabalho apresentado por Jorge Requejo Liberal, registrador espanhol, no 3º Congresso de Registradores da Espanha realizado de 30 de outubro a 1 de novembro de 2006:

Recentemente (R.D. 1867/1998, de 4 de setembro  - B.O.E. 29-IX-1998), parece que o legislador se deu conta do que estava ocorrendo durante muitos anos, principalmente nos bens públicos como vias pecuárias, cuja utilidade inicial foi notadamente desfigurada pelo desuso e foram objeto de apropriação por particulares que agregaram áreas públicas a seu domínio, em outros casos as áreas públicas foram utilizadas por populações carentes que utilizam esses espaços para estabelecer sua residência, principalmente em decorrência dos movimentos migratórios do campo para a cidade como conseqüência da industrialização e, o que é pior, em muitas ocasiões a própria Administração acaba por incentivar o desaparecimento dessa classe de bens através de procedimentos de regularização fundiária.

Nessa linha se produz a reforma do Regulamento Hipotecário através do artigo 5º, permitindo que os bens de domínio público possam, também, ser objeto de proteção registrária”.

Por derradeiro, para entendermos a importância do tema para o registro imobiliário, segundo a Fundação Nacional do Índio - FUNAI, a superfície das 488 terras indígenas, cujos processos de demarcação estão na fase "delimitada", é de 105.673.003 hectares (quase duas vezes o tamanho da Espanha), perfazendo 12,41% do total do território brasileiro, configurando um número impressionante. O quadro a seguir aponta com detalhes a situação das 611 terras indígenas do País quanto ao seu procedimento administrativo de regularização.

SITUAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS (Resumo Geral)
    Nº de T.I's    %    em revisão  
EM ESTUDO  123   ----  0
DELIMITADA  33 1,66 1.751.576
DECLARADA  30 7,67 8.101.306
HOMOLOGADA  27 3,4 3.599.921
REGULARIZADA  398 87,3 92.219.200
T O T A L  611 100 105.672.003

* Marcelo Augusto Santana de Melo  é Registrador imobiliário em Araçatuba-SP
 



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