BE2907

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Administração pública de interesses privados
Walter C. Swensson *


Existem atos jurídicos da vida dos particulares que se revestem de importância transcendente aos limites da esfera de interesses das pessoas diretamente empenhadas, passando a interessar também à própria coletividade.

Um casamento, por exemplo, não é da relevância apenas para os cônjuges; interessa à sociedade evitar casamento de pessoas impedidas, interessa dar publicidade aos casamentos realizados e por realizar, interessa definir a situação dos futuros filhos, etc; a constituição de uma sociedade mercantil ou de uma associação, também, não é ato que valha ou influa na vida jurídica dos sócios ou apenas, mas fatalmente irá ter relevância nas relações com terceiros.

Observando isso, o legislador (Estado impõe, para a validade desses atos de repercussão na vida social, a necessária participação de um órgão público). Mediante essa participação, o Estado insere-se naqueles atos que do contrário seriam tipicamente provados.  Ele o faz emitindo declaração de vontade, querendo o ato em si e querendo também o resultado objetivado pelas partes. Costuma a doutrina dizer que, através dessa atividade, realiza-se a administração pública dos interesses privados. Trata-se de manifesta limitação aos princípios da autonomia e liberdade que caracterizam a vida jurídico-privada dos indivíduos – limitação justificada pelo interesse social nesses atos da vida privada.

Já no direito romano a administração pública dos interesses privados era em parte exercida por órgãos jurisdicionais (a in iure cessio) e, em parte, por órgãos alheios à organização judiciária (os testamentos eram complementados por leis especiais dos comícios, órgãos legislativos). No direito moderno exercem-na: a) órgãos jurisdicionais; b) órgãos do chamado “foro extrajudicial”; c) órgãos administrativos, não dependentes do Poder Judiciário.

São atos de administração pública de interesses privados, praticados com a intervenção de órgãos do “foro extrajudicial”, a escritura pública (tabelião), o casamento (juiz de casamentos, oficial de registro civil), o protesto (oficial de protesto), o registro de imóveis (oficial do registro de imóveis), etc. Por outro lado, há intervenção de órgão ao Poder Judiciário quando o Ministério Público participa dos atos da vida das fundações (CPC, art. 1.199), ou quando os contratos e estatutos sociais tramitam pela Junta Comercial.” (Antonio Carlos de Araújo Cintra,Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, in Teoria Geral do Processo, Malheiros Editores, 10ª edição, páginas 149 e 150).


SUMÁRIO

1 – O Direito Civil e os Interesses Privados
2 – A Repercussão dos Atos Jurídicos da Vida Privada
3 – Administração Pública de Interesses Privados
4 – Modalidades da Administração Pública de Interesses  Privados
5 – Direito Civil, Direito  Notarial e Direito Registral ou Registrário
6 – Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça

1 – O Direito Civil e os Interesses Privados

O Direito Civil tem por objetivo disciplinar a conduta das pessoas (naturais e jurídicas de direito privado) entre si e em relação aos bens particulares, enfim, os interesses privados.

A partir dessa perspectiva, esses interesses privados são examinados sob quatro ângulos distintos, quais sejam: a) seus aspectos gerais (personalidade jurídica, sua aquisição e perda, e capacidade das pessoas naturais e jurídicas; classificação dos bens; negócio jurídico; atos jurídicos lícitos; atos ilícitos); b) o relacionamento entre as pessoas derivado de obrigações, decorrentes de contratos em geral (Direito das Obrigações); c)o relacionamento entre as pessoas e os bens materiais (Direito das Coisas); d) o relacionamento direto e indireto entre as pessoas derivado do contrato de casamento (Direito de Família); e) o destinado a ser dado aos bens que pertenceram a pessoas que vierem a falecer (Direito das Sucessões).

É possível dizer-se que o Direito Civil pode ser tido como Direito que disciplina os  Interesses Privados, ou, ainda, de forma resumida, o Direito Privado. volta

2 – A repercussão de Atos Jurídicos da Vida Privada

Na maioria dos casos a repercussão dos atos jurídicos da vida privada esgota-se na esfera de interesses das pessoas nele diretamente envolvidas, ou, em outro termos, seus efeitos ou conseqüências não atingem, seja direta ou indiretamente, os interesses de outras pessoas que integram o grupo social.

Assim, os demais membros daquela comunidade não tem nem mesmo interesse jurídico em conhecer detalhes a respeito de tal ato jurídico e da identificação das pessoas que nele intervieram.

É o caso, por exemplo, da aquisição de pães em uma padaria, de alimentos e bebidas em supermercados, da aquisição de passagens para viagens, etc.

Todavia, “Existem atos jurídicos da vida dos particulares que se revestem de importância transcendente aos limites da esfera de interesses das pessoas diretamente empenhadas, passando a interessar também à própria coletividade.” (Antonio Carlos de Araújo Cintra e outros, in Teoria Geral do Processo, Malheiros Editores. 10ª edição, pág.149).

Em tais casos, a experiência demonstra a certeza da repercussão ou dos reflexos dos efeitos do ato jurídico em um número indeterminado de pessoas à coletividade.

Temos, portanto, dois interesses em jogo, de um lado, duas ou mais pessoas interessadas em realizar um negócio jurídico  e, do outro, a coletividade, como um todo, no sentido de que seja divulgada a celebração do referido negócio e de todos os detalhes deste e, se for necessário acautelar ou proteger as pessoas de eventuais repercussões, efeitos ou conseqüências de tais atos.

Necessário foi a criação de um mecanismo capaz e suficiente para conciliar os interesses dos particulares diretamente envolvidos no negócio jurídico e da sociedade, como medida de controle da prática e divulgação de tais atos jurídicos em defesa de seus integrantes.

E a esse mecanismo dá-se o nome de Administração Pública de Interesses Privados. volta

3 – Administração Pública de Interesses Privados

Observando isso, o legislador (Estado) impõe, para a validade desses atos de repercussão na vida social, a necessária participação de um órgão público. Mediante essa participação, o Estado insere-se naqueles atos que do contrário seriam tipicamente privados. Ele o faz emitindo declaração de vontade, querendo o ato em si e querendo também o resultado objetivado pelas partes.” (Antonio Carlos de Araújo Cintra e outros, obra mencionada, pág. 148)

Vê-se, pois, que, em tais hipóteses opera-se uma intervenção do Estado nos negócios jurídicos que envolvam pessoas (naturais e jurídicas de direito privado).

Em razão de tal intervenção, o Estado, seja pelo Poder Executivo, através de sua  Administração Direta ou Indireta, seja pelo Poder Judiciário ou, ainda, pessoa natural, a quem delegou previamente tal atribuição, procede à verificação da legalidade do ato objetivado.

Se reconhecida a legalidade do negócio jurídico, aí sim, o Poder Público dará seu consentimento à consumação do negócio jurídico, validando-o e a ele dando a necessária publicidade. Se negado tal reconhecimento, não terá o negócio jurídico eficácia.

É bem verdade que tal intervenção estatal  caracterizará restrição ao direito que as pessoas (naturais e jurídicas de direito privado) têm de livremente contratar (“limitação aos princípios de autonomia e liberdade que caracterizam a vida jurídico-privada dos indivíduos”, segundo o magistério de Antonio Carlos de Araújo Cintra e outros, obra citada, pág. 149), mas tal restrição ou limitação visa preservar o interesse coletivo em tais negócios jurídicos. volta

4 – Modalidades da Administração Pública de Interesses Privados.

Duas modalidades da Administração Pública de Interesses Privados merecem, nesta oportunidade, especial atenção, a Jurisdição Voluntária, e aquela exercida pelos Registradores e Notários, por Delegação do Poder Público.

A – Atribuiu o legislador ao Poder Judiciário o exercício, nas hipóteses que menciona, a Administração Pública de Interesses Privados, por intermédio da Jurisdição Voluntária.

Tal função não é de caráter jurisdicional, mas tem nítida feição administrativa, embora exercida por juízes.

E a finalidade dos atos dos juízes, ao exercerem a jurisdição voluntária é idêntica a daqueles praticados por outros órgãos ou pessoas que exercem a Administração Pública de interesses privados, qual seja “a finalidade de formação de situações jurídicas novas (atos jurídicos de direito público”...) (Antonio Carlos de Araújo Cintra e outros, obra citada, página 150).

Tais atos estão enumerados nos diversos incisos do Art. 1.112 do Código de Processo Civil e os respectivos procedimentos disciplinados pelo mesmo Código (Arts. 1.103 a 1.210).

B – Os Serviços de Registro (Registro Civil de Pessoas Naturais, Registro Civil de Pessoas Jurídicas, Registro de Títulos e Documentos e Registro de Imóveis) foram disciplinados pela Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, os Serviços de Notas o foram pelos Arts. 108, 109 e 215 do Código Civil e os do Serviço de Protesto de Títulos pela Lei nº 9.492, de 10.09.1997.

Por outro lado, o Art. 236 da Constituição Federal determinou que “Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.”

Tal mandamento constitucional foi regulamentado pela Lei nº 8.35, de 18 de novembro de 1994, a chamada Lei dos Registradores e Notários. volta

5 – Direito Civil, Direito Notarial, Direito Registral ou Registrário.

É necessário, nesta etapa, definir-se a natureza do Direito Civil, do Direito Notarial e do Direito Registral ou Registrário.

O Direito Civil é por tradição, um ramo do Direito Material, pois o Direito Material “é o corpo de normas que disciplinam as relações jurídicas referentes aos bens e utilidades da vida” (Antonio Carlos de Araújo Cintra e outro, obra citada, página 40).

Já os Direitos Notarial e Registral ou Registrário se constituem em ramos do Direito Instrumental, pois, são instrumentos a serviço do Direito Material. É o Direito Notarial e o Direito Registral ou Registrário que fornecem os meios necessários para a validação e eficácia de negócios jurídicos disciplinados pelo Direito Material, estabelecendo a forma pela qual, nos casos previstos em lei, ocorrerá a intervenção estatal, como forma de Administração Pública de Interesses Privados.

Bem por isso, são ramos do Direito Público e devem seguir os norteamentos básicos estabelecidos no Direito Administrativo, notadamente aqueles princípios apontados no Art. 37 da Constituição Federal ( “...A administração pública direta e indireta...obedecerá os princípio de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...). volta

6 – Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça

Estabelece o Art. 30 da Lei dos Notários e Registradores (Lei nº 8.935, de 18.11.1994) que, dentre outros, é dever dos notários e registradores observar as normas técnicas estabelecidas pelo juízo competente (inciso XIV).

Pois bem, as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça se constituem em normas técnicas estabelecidas pelo Corregedor Geral da Justiça.

Tais Normas, de caráter administrativo, tem por finalidade uniformizar a interpretação e aplicação das regras inseridas na Lei de Registros Públicos, Código Civil, Lei nº 9492, de 1997, Lei dos Notários e Registradores e legislação complementar. volta

*  Walter C. Swensson é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.



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