Acervo histórico do Judiciário maranhense terá acesso digital
Personagem popular na cultura maranhense deixou seu testamento registrado em cartório local.
Vem do Maranhão a história de uma escrava africana que, por meio de seu trabalho, conseguiu sua liberdade e alcançou relevância na sociedade do século XIX. Dona de um grande comércio, Catharina Rosa Ferreira de Jesus – conhecida como Catharina Mina – é personagem popular na cultura maranhense. Deixou seu testamento registrado em cartório local, distribuindo seus bens a afilhados e concedendo a alforria para os 24 escravos que trabalhavam para ela no ano de sua morte, em 1886.
O inventário e outros documentos do período escravocrata, fazem parte do acervo documental do Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), que está na fase final de implantação do repositório digital de seu acervo histórico. A documentação de natureza histórica, que estava dispersa por todo o estado, passou a ser centralizada em São Luís a partir de 2009, para receber tratamento arquivístico: identificar, catalogar e digitalizar, antes de ser disponibilizado para consulta pública.
Segundo o coordenador de Arquivo e Gestão Documental do TJMA, Christofferson Melo, o Programa de Gestão Documental do tribunal atua em diversas frentes, além do tratamento do acervo histórico. “Nós somos o terceiro tribunal mais antigo do país e temos um dos acervos processuais antigos, de antes de 1970, mais robustos do Judiciário brasileiro.”
As atividades arquivísticas do Judiciário maranhense caminharam juntamente com a criação do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário (Proname) pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Dessa forma, a profissionalização do trabalho documental acompanhou, adaptou e construiu sua política no mesmo ritmo das diretrizes nacionais. “Definimos políticas para resolver a situação do tratamento do acervo do tribunal. Mas o normativo do CNJ foi importante para nortear o trabalho”, afirmou Christofferson Melo.
Além da história de Catharina Mina, contada a partir do registro de seu testamento, que data de 29 de junho de 1886, o arquivo do TJMA guarda documentos processuais manuscritos, datilografados e impressos desde o período colonial. São materiais de várias comarcas maranhenses, como São Luís, Alcântara, Caxias, Icatu, Imperatriz, Cururupu, Coroatá, Viana, Rosário, Itapecuru-Mirim, Brejo, entre outras. O documento mais antigo do acervo é de 1719.
Levantamento preliminar de toda a documentação no acervo histórico identificou materiais em 36 fundos ou comarcas, incluindo nos estados do Pará, Piauí e Ceará, e quantificou um total aproximado de 200 mil documentos. Entre essas peças restauradas, estão o Livro de Registro de Notas da comarca de Viana, do século XVIII, que aponta a presença de índios nos registros da antiga aldeia de Maracu, e o Regimento da Relação do Maranhão, de 1813, documento de nascimento do TJMA.
Criado em 1811, a Relação do Maranhão apresentava diferenças em relação às já existentes Relação da Bahia (instituída em 1609) e do Rio de Janeiro (de 1751) – essa última, reconhecida como precursora do Supremo Tribunal Federal (STF), foi transformada na Casa da Suplicação do Brasil em 1808, com a transferência da Corte portuguesa. A Relação do Maranhão deveria interpor agravos ordinários e apelações para a Casa de Suplicação de Lisboa, conforme determinado no alvará de 6 de maio de 1809, que incluía também as ilhas de Açores, Madeira e Porto Santo, além do Pará.
A Relação do Maranhão exercia jurisdição sobre as comarcas do Maranhão, Pará e Rio Negro, desmembradas de Lisboa, além de Piauí e Ceará Grande, separadas do distrito da Relação da Bahia. O órgão era composto pelo governador e capitão-general da província de Pernambuco, na função de presidente, um chanceler, nove desembargadores, além de alguns oficiais, que tinham atribuições para agravos e apelações cíveis e criminais, ouvidoria, justificações ultramarinas, despesas, feitos da Coroa, Fazenda e Fisco, aposentadoria-mor, almotaçaria-mor, procuradoria da Coroa, Fazenda e e Fisco e promotoria de justiça.
Gestão documental
Para ampliar o acesso aos documentos, de forma a popularizar e democratizar um conjunto de dados para o desenvolvimento da história e memória do estado, o planejamento estratégico do arquivo está voltado para ampliar o grau de desenvolvimento em gestão de documentos. Para atingir esses objetivos, o TJMA está adotando soluções digitais, elaborando instrumentos específicos para unidades de primeiro e segundo grau de jurisdição, aperfeiçoar ferramentas de diagnóstico dos acervos, entre outras ações.
Desde 2010, o Programa de Gestão Documental passou a recolher o acervo histórico das comarcas do estado. Esse trabalho foi mantido mesmo durante o período da pandemia de covid-19, quando foram recolhidos o acervo de sete comarcas e encaminhado para tratamento. “Temos realidades distintas no Maranhão. A comarca mais distante da capital fica a 14 horas de viagem, o que dificulta o trabalho de coleta, mas justifica sua diversidade”, explicou Christofferson Melo.
Vencedor da 1ª edição do Prêmio CNJ Memória do Poder Judiciário, na categoria Patrimônio Cultural Arquivístico, o programa do TJMA desenvolve um trabalho colaborativo, com equipe interdisciplinar. O acervo foi centralizado em São Luís, com estrutura física adequada para recebimento, tratamento e guarda do material histórico.
Para isso, foi feita uma reforma na área de arquivos, que custou cerca de R$ 1,5 milhão, com a criação de um laboratório de restauro e digitalização. Foram adquiridos equipamentos especializados, estabelecida a climatização completa do arquivo – com controle de temperatura e umidade 24 horas por dia – e instaladas placas de energia solar para permitir a economicidade do projeto. Também foi criada uma sala audiovisual para atender ao público.
O TJMA estabeleceu três acervos centrais na capital e um em cada comarca, onde são produzidos catálogos de documentos manuscritos. Cada catálogo leva de três a quatro anos para ser produzido, dada a complexidade do tratamento. “É preciso pegar o documento, identificar do que se trata, datar, concentrar os metadados e digitalizar, para poder incluir no repositório digital”, contou Melo. Atualmente, estão sendo preparados os catálogos das comarcas de Viana e Guimarães.
Também foram definidas as tabelas de temporalidade, para eliminação do material que não precisa ficar sob guarda. Apenas durante a pandemia, foram eliminados mais de 352 mil processos com tempo de guarda extrapolado. Além disso, foram digitalizadas mais de 2,5 milhões de imagens históricas que serão indexadas ao repositório digital AtoM (Access to Memory), que é uma aplicação open source baseada na web para descrições arquivísticas.
Para Christofferson Melo, o prêmio do CNJ trouxe ainda mais responsabilidade e mostra a importância da gestão documental no Judiciário. “É um trabalho que leva tempo para ser feito com qualidade, que não pode perder sua essência com a velocidade. Mas já temos um acervo que agora pode ser disponibilizado para o público, que pode pesquisar sobre a história do estado, escravidão, questões genealógicas, assim como sobre a história do Judiciário e de seus personagens, de forma virtual ou presencial. Temos o poder e o dever de ofertar o melhor acesso à sociedade.”
Fonte: Agência CNJ de Notícias (Texto: Lenir Camimura/Edição: Márcio Leal).
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