Em 17/05/2022
Agronegócio: dano ambiental e responsabilidade do financiador
"Apesar do compromisso pela sustentabilidade exigido de todos os ramos econômicos, não é possível afastar integralmente o perigo de lesão ambiental em empreendimentos financiados."
Dário da Cunha Dóro e Fabricio Muraro Novais
Panorama fático
O agronegócio (agro) representa um pilar econômico nacional e sua pujança se comprova pela participação em 27,4% do PIB e geração de receitas com exportação no patamar de US$ 120,59 bilhões, em 2021.
Borges e Parré (2022, p. 20) interligam diretamente o sucesso produtivo à disponibilidade de crédito, público e privado. Apenas no ano passado, foram liberados R$ 251,22 bilhões para fomento da atividade no Plano Safra.
Indissociáveis, portanto, o agro e o crédito compõem o sistema financeiro e econômico constitucional que objetiva o desenvolvimento nacional, a redução das desigualdades e o progresso do Estado brasileiro.
Apesar do indubitável sucesso, o agro, por se tratar de atividade com atuação agrária direta, sempre representou algum tipo de risco ao meio ambiente, notadamente porque também responsável por desflorestamentos e poluições.
Consoante registro do MAPBIOMAS, houve a perda de aproximadamente 10% das matas entre 1985 e 2020, representando 13.853 km2 de área apenas nesse último ano analisado. Desse total, 98,9% foram desmatamentos ilegais, 12,4% em unidades de conservação (UC's) federais ou estaduais e 7,3% em área indígena, com finalidade predominante de abertura de novas fronteiras agrícolas e pecuária, ou seja, relacionados intimamente à cadeia do agronegócio.
Do ponto de vista creditício, a exemplo de qualquer atividade capitalista produtiva, a exposição aos riscos, inclusive ambientais, integra o cerne e a essência negocial pela busca do lucro, os quais são sopesados nas condições legais, negociais e remuneratórias.
Com efeito, apesar do compromisso pela sustentabilidade exigido de todos os ramos econômicos, não é possível afastar integralmente o perigo de lesão ambiental em empreendimentos financiados.
Como não há na jurisprudência do E. STJ enfrentamento específico sobre a modalidade jurídica de responsabilização aplicável aos agentes financiadores, encaminham-se aos distintos leitores algumas das nossas reflexões acerca da temática.
Responsabilidade ambiental do financiador
A responsabilidade civil, subdividida em objetiva e subjetiva, é a figura do Ordenamento Jurídico reservada para imposição, ao agente gerador do ato ilícito, da obrigação de reparação e indenização. Para sua caracterização, Destefenni (2005, p. 82/93) elenca três requisitos: o primeiro, a conduta, ato ativo do agente, comportamento, procedimento; o segundo, o dano, a lesão gerada pela conduta comissiva ou omissiva; e, o terceiro, nexo de causalidade, a relação, conexão entre o ato e a lesão.
Conforme Ayala (2012, p. 125), a culpa reflete uma ofensa, maculação, um desrespeito a uma obrigação prévia, caracterizado pela negligência, imperícia ou imprudência.
Para a modalidade objetiva inexiste vínculo imperativo entre a conduta e a culpa do agente, senão somente nexo de causalidade entre a lesão e a conduta, vez que não perquirida a culpa, como cediço..
Lado outro, para a modalidade subjetiva (regra no Direito Civil), necessário o dano, o nexo de causalidade e a conduta típica, assim entendida como ato do agente culposo ou doloso.
Nesse panorama fático-jurídico, a análise sobre a (im)possibilidade de responsabilização dos agentes financiadores considera duas alternativas com consequências distintas.
Responsabilidade Objetiva
A corrente doutrinária predominante defende a responsabilização objetiva dos agentes financiadores por qualquer dano ambiental. Para Fiorillo (2011, p. 98), inexiste a necessidade de culpa, bastando apenas que o dano seja oriundo do ato, já que o exercício de uma atividade apresenta seus riscos inerentes.
Para essa corrente, eventual lesão ao meio ambiente gerado por obra ou atividade financiada decorre por força de lei, independentemente de qualquer requisito ou circunstância.
De forma enfática, Raslan (2012, p. 274/275) afirma que a intermediação financeira visa ao lucro e afasta a possibilidade de análise de culpabilidade, conquanto a relação de causalidade surge desde a formalização da operação creditícia.
O nexo causal se concebe no exato momento de liberação dos recursos destinados ao empreendimento financiado, porquanto sem referida intermediação não existiria a possibilidade do dano. Dessa forma, não há distinção entre o poluidor direito e o indireto, representando o segundo mero coobrigado solidário do primeiro.
Em diversas decisões recentes (REsp 1778729/PA, exempli gratia), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) corroborou com sua adoção, conceituando a obrigação ambiental como de natureza objetiva, ilimitada, solidária, propter rem e imprescritível. Todavia, não se vislumbrou na pesquisa nenhum julgado específico no tocante aos agentes financeiros.
A doutrina denomina essa teoria de Risco Integral. Segundo Sampaio (2013, p. 39), o risco integral impossibilita, inclusive, qualquer causa excludente de responsabilidade prevista no Código Civil, ou seja, o dever de reparar perdura tão somente pelo dano, mesmo atribuindo-se a culpa exclusiva ao financiado, em caso fortuito ou força maior. Em contrapartida, o mesmo autor defende que a adoção dessa teoria alcançaria restritamente o poluidor direto, não sendo cabível interpretação extensiva.
A adoção da responsabilização objetiva e do risco integral representa a solução com maior perspectiva de defesa do meio ambiente, seja na espécie preventiva ou reparatória, dada a capacidade administrativa e financeira dos bancos.
Responsabilidade Subjetiva
A corrente antagônica defende que a responsabilização objetiva dos agentes financiadores, na prática, possui traços de subjetividade, pois pressupõe uma das características da culpa (imprudência, imperícia ou negligência), notadamente, porque o ato de financiar de per si não representa risco ambiental.
Desconsiderar integralmente o aparato legal na análise da responsabilização ambiental, basicamente iguala o fornecedor creditício que respeitou amplamente os princípios constitucionais (prevenção, precaução e desenvolvimento sustentável), leis infraconstitucionais, resoluções do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Banco Central, exigiu a averbação da reserva legal, não financiou produtores em listas de trabalho escravo, realizou fiscalizações contratuais, enfim, adotou toda diligência esperada, com outro fornecedor que garantiu o crédito sem nenhuma exigência.
A solidariedade ilimitada implicaria, de fato, em ilegítimo incentivo à não observância do regramento existente para a concessão de crédito, notadamente, porque a adoção das cautelas retrocitadas apenas elevaria o custo administrativo e empresarial, sem efeito material na responsabilização.
O risco extremo, além da possibilidade de restrição creditícia, levaria os financiadores a laborarem com excesso de diligência e interferência no agronegócio, invadindo a esfera privada na sua dimensão econômica, em grave ofensa aos princípios da livre iniciativa, da livre concorrência e do livre exercício de atividade.
Não se pode olvidar também que o Estado sempre se posicionaria como poluidor intermediário indireto, seja na qualidade de licenciador ou na condição de fiscalizador.
Outrossim, representa também a responsabilização de todos os outros intervenientes da cadeia, tais como, fabricante, revendedor de agrotóxicos, implementos agrícolas, profissionais da área ou qualquer pessoa física ou jurídica integrante da relação danosa, dada que a seletividade ofenderia o tratamento isonômico.
Por tais motivos, a mitigação do risco integral e a adoção do risco criado se mostra viável. Para essa teoria aquele que gera uma situação de risco em virtude de atividade ou profissão atrai para si a responsabilidade pela reparação de dano causado, desde que não consiga comprovar que agiu da forma esperada para evitá-lo ou que tomou todas as precauções regulamentares no exercício da atividade. (Raslan, 2012, p. 201).
Machado (2020, p. 410) é enfático no sentido de abalizar a transferência do risco para o financiador, apontando o compartilhamento como a melhor solução jurídica, permitindo dessa forma a apreciação da culpabilidade. A propósito, foi essa a solução aplicada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª região, ao julgar o Agravo de Instrumento 0060759-67.1997.4.01.0000.
Conclusão
In casu, o caminho mais sensato é se posicionar de maneira restritiva no ponto da responsabilidade objetiva. Não havendo, por ora, jurisprudência consolidada no tema, cabe ao Mercado dialogar com os Tribunais, mormente com o STJ, dada a sua qualidade de responsável pela uniformização de entendimento. Certo é que a condenação indiscriminada dos bancos poderá acarretar efeito econômico negativo (restrição de crédito e juros mais altos, v.g.), sem, efetivamente, gerar maior grau de proteção ambiental. A solução é harmonizar estas duas dimensões à luz do estado da arte da Responsabilidade Civil.
Bibliografia
AYALA, Patryck de Araújo. Direito Fundamental ao Ambiente e a Proibição de Regresso nos Níveis de Proteção Ambiental na Constituição Brasileira. In: LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental na Sociedade de Risco. São Paulo: Saraiva. 2012.
Borges, M. J., Parre', J. L. (2022). O impacto do crédito rural no produto agropecuério brasileiro. Revista de Economia e Sociologia Rural, 60(2), e230521.
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CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA (CEPEA) E CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA AGRICULTURA E PECUÁRIA (CNA). PIB do agronegócio brasileiro. Disponível aqui. Acesso em 02.abr.2022.
DESTEFENNI, Marcos. A responsabilidade civil ambiental e as formas de reparação do dano ambiental: aspectos teóricos e práticos. Campinas: Bookseller, 2005.
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 12ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011.
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RASLAN, Alexandre Lima. Responsabilidade Civil Ambiental do Financiador. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.
Relatório Anual do Desmatamento no Brasil 2020 - São Paulo, Brasil - MapBiomas, 2021 - 93 páginas. Disponível aqui. Acesso em 02 jan. 2022.
SAMPAIO, Rômulo Silveira da Rocha. Reponsabilidade civil ambiental das instituições financeiras. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda, 201
Fonte: Migalhas.
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