Em 28/08/2018
Ao contrário do que dizem os políticos, Brasil não é mais um "país cartorial" - por Claudio Marçal Freire
Ao defender tais ideias, utiliza-se como contraponto a pecha de que o Brasil precisa deixar de ser um “país cartorial” e avançar rumo à modernidade dos novos tempos. Noves fora o populismo de tais argumentos, sua utilização caracteriza um profundo desconhecimento da realidade dos cartórios brasileiros
No dia 05.08, o Brasil deu início a mais uma corrida eleitoral, desta vez marcada por um antagonismo cada vez mais eloquente entre as diversas correntes partidárias que hoje dividem o eleitorado. Entre as discussões de esquerda, centro e direita, se faz cada vez mais presente o debate em torno da nova e da velha política, sendo a primeira representada por novatos oriundos de outras áreas, enquanto a segunda é caracterizada por aqueles políticos de carreira, tradicionalmente presentes nas eleições.
Neste quadro polarizado que se criou entre a nova e a velha política, é preciso que os candidatos estejam antenados e atualizados sobre diversos assuntos que circundam a nova sociedade da informação, sob pena de deixarem transparecer ao eleitor desconhecimento ou falta de conteúdo sobre temas impactantes da vida cotidiana. Mais do que idade ou experiência, desconhecimento é sinônimo da velha política.
Chama atenção, portanto, nesse início de disputa política, as constantes declarações em torno da necessária modernização pela qual o país precisa passar, principalmente nos serviços públicos prestados ao cidadão e de sua conversão para plataformas digitais. Ao defender tais ideias, utiliza-se como contraponto a pecha de que o Brasil precisa deixar de ser um “país cartorial” e avançar rumo à modernidade dos novos tempos. Noves fora o populismo de tais argumentos, sua utilização caracteriza um profundo desconhecimento da realidade dos cartórios brasileiros. Caracteriza a velha política.
A expressão foi cunhada pelo cientista político Hélio Jaguaribe em seu trabalho Política ideológica e política de clientela, escrito nos idos de 1950. Certamente influenciado pela realidade de sua época, o escritor fluminense buscou estabelecer a diferença entre as funções públicas que deveriam ser orientadas à prestação de serviços à coletividade, mas que acabavam sendo utilizadas para assegurar empregos e vantagens específicas para determinadas pessoas e grupos de apaniguados, a “política de clientela”.
Se essa era a realidade brasileira desde a chegada dos portugueses ao país, em 1500, cuja frota naval já contava com a presença do tabelião Afonso Furtado, responsável pelos interesses do rei, contabilista e despenseiro de mantimentos, água e víveres das embarcações (Bueno, Eduardo, A Viagem do Descobrimento, pág. 42), e se assim se manteve ao longo da já secular história de nosso país, sendo muitas vezes utilizadas pelos próprios políticos como instrumento de barganha e troca de favores, tal situação está hoje completamente distante daquela realidade, sendo uma profissão extremamente regulada, preenchida por mérito mediante concurso público e rigorosamente fiscalizada pelo Poder Judiciário e pelo Conselho Nacional de Justiça, merecedora do respeito dos candidatos aos postos majoritários de comando do país, assim como desfruta do respeito da população brasileira.
Previstos no artigo 236 da Constituição Federal de 1988, os cartórios ou serviços extrajudiciais são hoje modelo de prestação de serviços jurídicos de qualidade à população, garantindo publicidade, autenticidade, eficácia e segurança para os atos jurídicos pessoais e patrimoniais das pessoas, prevenindo litígios, recuperando créditos para os entes públicos, desburocratizando diversos procedimentos antes afetos à Justiça, contribuindo para o desafogo do Poder Judiciário, e fiscalização dos recolhimentos de tributos, contribuindo com melhoria da arrecadação dos municípios, estados, Distrito Federal e União.
Presentes em todos os municípios do país, muitas vezes sendo o único braço do Estado, os 11.946 cartórios brasileiros, além de executarem seus serviços — que são públicos, regulados por lei, criados e delegados pelo Estado a particulares e fiscalizados pelo Poder Judiciário —, atuam como verdadeiros conselheiros jurídicos dos cidadãos, oferecendo auxílio jurídico qualificado, e muitas vezes gratuitos, àqueles que não tem a quem recorrer.
Ao contrário do mito estabelecido, os cartórios estão presentes em mais de 87 países do mundo que praticam o Direito latino — igual ao do Brasil —, entre eles nações consideradas de excelência, como Japão, Espanha, França, Itália, Alemanha, Holanda, Bélgica e Suíça, além de potências como China e Rússia. Na Espanha, os notários praticam mais de 130 atos de jurisdição voluntária, dentre eles a abertura, modificações e encerramento de empresas, evitando que pessoas sejam usadas como laranjas, e empresas de fachadas utilizadas para lavar dinheiro sejam abertas, razão porque gozam de profundo respeito das autoridades e da população daquele país.
Nos últimos tempos, muitas novas atribuições foram atribuídas por lei e resolução do CNJ aos notários e registradores, os chamados cartórios. E, se fosse considerada a vontade dos cidadãos, muitas outras deveriam ser transferidas. Pesquisa do Datafolha realizada em 2016 identificou que os cartórios não só são as instituições públicas mais confiáveis do país como também poderiam prestar serviços hoje oferecidos pelo Estado, como a emissão de passaportes, identidades e carteiras de trabalho, que exigem deslocamentos de grande parte da população, bem como a participação de intermediários.
A Lei Federal 13.484/2017 tornou os cartórios de registro civil “ofícios da cidadania”, permitindo a realização de solicitação e entrega de documentos emitidos por órgãos públicos e privados, aproveitando a presença dos serviços cartorários em todos os municípios do país. Aprovada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo, a iniciativa recebeu ainda validação do Poder Judiciário, que editou norma regulando essa ação, pendentes a implementação de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal de ADI proposta pelo Partido Republicano Brasileiro (PRB). Assim, acabariam com os longos deslocamentos dos cidadãos que hoje precisam desses serviços.
Desde que foi aprovada, em 2007, a lei que autorizou que separações, divórcios, inventários e partilhas consensuais passassem a ser feitas em cartórios, mais de 2 milhões de escrituras foram feitas nos tabelionatos de notas, processos que até então desaguariam diretamente em tribunais de Justiça de todo o país. A prática dos atos em cartórios significou uma economia de R$ 4 bilhões aos cofres públicos. Mas não foi só o Estado o beneficiado. Basta uma consulta rápida aos advogados e aos cidadãos, que viram um prazo de inventário cair de 15 anos no Judiciário para 1 mês no cartório, ou um divórcio que levava seis meses ser solucionado no mesmo dia em um cartório, em ato bancado exclusivamente pela parte que necessita do serviço, e não por toda a sociedade, para saber o quão eficaz foi a medida para a sociedade.
Realizar a legalização de documentos para uso no exterior — procedimento conhecido como apostilamento — exigia do cidadão um périplo de três etapas por diferentes órgãos públicos, em procedimento que exigia diferentes deslocamentos, pagamento a intermediários, altos investimentos e paciência: sua conclusão chegava a levar um ano. Agora, no cartório, é simples. O cidadão vai até a unidade mais próxima de sua residência e realiza o ato. Sem deslocamentos, sem intermediários, sem gastos adicionais e sem prazo de espera. O serviço é feito na hora. Ganha o cidadão, que tem seu problema resolvido, e o poder público, que delega o serviço a um agente qualificado e se exime de custos com a prática destes serviços, podendo investir em saúde, educação etc.
Os cartórios estão presentes ainda nos processos de regularização fundiária customizados em todos os municípios brasileiros, permitindo a efetiva entrega de títulos de propriedade à população mais carente através de mecanismos cada vez mais céleres e inovadores, como a usucapião extrajudicial e o novíssimo direito de laje, novidade jurídica que contempla a situação de milhares de pessoas em todo o Brasil.
Somente no último ano, os cartórios de protesto recuperaram para entes públicos 52,1% dos títulos apresentados, totalizando R$ 3 bilhões, dos quais R$ 2 bilhões foram reintroduzidos na economia para utilização de governos em prol de serviços públicos. No tocante aos títulos privados, o índice de recuperação chega a 67,9%, recuperando-se 2/3 dos créditos inadimplidos, injetando-se na economia outros R$ 18 bilhões nos últimos 12 meses. Com relação às duplicatas, o índice de recuperação está na casa de 65%, sendo esses serviços prestados no Distrito Federal e na maior parte dos estados da federação de forma gratuita, e gratuitamente são atendidas as pesquisas das situações negativas ou positivas de protesto pela internet, pelo site www.protestodetitulos.org.br.
Segurança jurídica, prevenção de litígios, recuperação de créditos ao poder público, desburocratização de procedimentos, controle de legalidade, verificação de tributos, concursos públicos e fiscalização do Poder Judiciário. Características centrais do novo modelo de atividade dos cartórios extrajudiciais brasileiros que estão à serviço do cidadão — seja em ambientes físicos ou virtuais — e que destoam do “país cartorial”, a que alguns tentam revisitar por frenética busca de votos a todo custo, desconhecendo ou fazendo vistas grossas aos benefícios proporcionados pelos cartórios à população e aos entes públicos.
Se remanesce a “política de clientela”, esta sim estaria na ação dos órgãos da administração pública quando concedem autorização para as empresas privadas exercerem serviços de registros públicos, sem concurso público e sem fiscalização do Poder Judiciário, ao arrepio da Constituição e da lei, e não aos cartórios.
Por essas razões, a cunhada expressão “país cartorial” já estaria a merecer revisão do historiador. O Brasil mudou, e os cartórios também. É chegada a hora da velha política também mudar.
Claudio Marçal Freire é presidente da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg-BR).
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