Em 02/01/2019
Artigo - A ciência de dados e a inteligência artificial no Direito em 2018 - Parte II – Por Alexandre Zavaglia Coelho
Para demonstrar que 2016, aqui no Brasil, foi o ano em que essas novas tecnologias, que iniciaram seu desenvolvimento em anos anteriores, começaram a maturar a ponto de viabilizar sua aplicação prática na área do direito. E que 2017 foi o ano em que a notícia caiu no mercado jurídico, mesmo que inicialmente de forma enviesada.
Mas o que tudo isso tem a ver com 2018? Para demonstrar que 2016, aqui no Brasil, foi o ano em que essas novas tecnologias, que iniciaram seu desenvolvimento em anos anteriores, começaram a maturar a ponto de viabilizar sua aplicação prática na área do direito. E que 2017 foi o ano em que a notícia caiu no mercado jurídico, mesmo que inicialmente de forma enviesada.
Em 2018 fechamos esse ciclo de três anos, na nossa visão, pois além da quantidade de eventos e publicações com crescimento exponencial sobre tudo o que estamos falando, começaram a ser entregues alguns cases importantes de aplicação de ciência de dados na área do direito. E 2019 inicia um novo ciclo, com o ambiente preparado para crescer.
Esses casos demonstraram na prática o potencial do uso dessas técnicas, o retorno do investimento nessas soluções e, assim, deixaram cada vez mais evidente que essas novas tecnologias são, na verdade, um ferramental imprescindível para apoiar a solução de problemas jurídicos.
Nesse ano participamos de muitos estudos avançados com o uso de conceitos de ciência de dados e técnicas de inteligência artificial. Como no (a) caso da identificação de temas da área da saúde para utilização do instituto de IRDR (Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas) no STJ; do (b) início do observatório da Fiesp para analisar as decisões de processos trabalhistas a partir da promulgação da nova lei (imaginem que fantástico poder analisar a aplicação efetiva de uma lei); de (c) estudos sobre diversos temas específicos e que, ao invés de análise por amostragem, podem nos permitir entender todos os processos e decisões que tratam daquele tema; além da (d) organização de dados para analisar performance de escritórios de advocacia, tendências de julgamento, valor ideal de acordo, provisão, e muito mais.
E também vimos colegas desse movimento criando chatbots com respostas de altíssimo nível a partir do conteúdo gerado por escritórios de advocacia (o chatbot é só o ferramental, o conteúdo continua o mesmo e confeccionado por profissionais do direito, só que entregue de forma diferente); o laboratório de inovação da Justiça Federal em São Paulo que projetou a vara judicial do futuro; a democratização do trabalho pelo interior do país pelo uso das plataformas de correspondentes; o aumento da eficiência nas investigações criminais e pelos órgãos de controle - com destaque ao combate a corrupção; a identificação de fraudes e do uso de robôs de forma indevida nas eleições por todo o planeta; o Supremo Tribunal Federal anunciando sua tecnologia (Victor) para classificar temas de repercussão geral, o que pode diminuir em até 2 anos o tempo de tramitação naquele tribunal [1]; o lançamento pela OAB de uma busca de jurisprudência avançada [2] ; entre muitas outras funcionalidades.
Por um prisma, aprendemos em 2018 que nesse novo mundo com milhares de informações geradas a cada segundo, será impossível prestar qualquer tipo de serviço sem o apoio da tecnologia. Ainda mais no ambiente jurídico, que sempre teve como base do trabalho a pesquisa de todo tipo de assunto e das provas ligadas ao caso, e qual a tendência da jurisprudência, das decisões, sobre quais as melhores cláusulas para um contrato.
De outro, entendemos que existem diferentes níveis de organização dos dados conforme a finalidade pretendida. Se o objetivo é ter as informações de prazos, publicações, entre outros andamentos processuais, lançados diretamente nos diversos sistemas de gestão, só que de forma automatizada, sem a necessidade de cadastros manuais, o mais adequado é a utilização como fonte dos metadados disponíveis nos dados abertos do judiciário (informações de capa dos processos). E, ressalte-se, mais uma vez nada disso precisa de computação cognitiva (IA) pois, de um modo geral, é apenas uma espécie avançada de copia e cola dos dados abertos que estão disponíveis para todos.
Essa atividade de inserir os dados e andamentos dos processos de forma automatizada nos sistemas de gestão de contencioso foi uma das grandes tendências em 2018, e isso está ajudando muito na otimização do tempo, na diminuição dos ajustes de digitação, no foco da equipe para tarefas de maior valor agregado. Pela melhoria dos procedimentos de gestão e pelo tratamento dos dados internos, é que percebemos que não dá para estudar o judiciário e os temas relacionados aos nossos casos, se primeiro não organizarmos nossas próprias informações, para ter certeza sobre o que e como procurar.
Acontece que uma ação de erro medico (por exemplo) pode ser lançada no sistema do judiciário simplesmente como ação indenizatória. Então se for para garantir o andamento e os prazos, essa solução de automatizar a entrada conforme os metadados é excepcional e um grande avanço, mas para estudar o erro médico e suas peculiaridades é preciso mais. E isso não quer dizer que uma técnica é melhor que a outra, simplesmente que estão resolvendo problemas diferentes.
Por esse motivo, se o estudo for avançar no tratamento dos dados, para o entendimento não só dos processos em andamento que tem como fato gerador/causa raiz o erro médico, mas de todos os tipo de erro médico e suas variáveis (que até então estão em boa parte classificados como ação indenizatória), será preciso buscar as informações na fonte, nos próprios documentos, pois esses metadados são incompletos e despadronizados para essa finalidade.
Por isso que, para cada tipo problema, é preciso usar o tipo de ferramenta e/ou funcionalidade mais adequada.
E é só na sequência dessa organização do small data e a melhoria dos procedimentos internos, é que se pode obter o melhor resultado com o saneamento e o enriquecimento dessa base previamente organizada, para depois pensar em predição. Seguir esse caminho é o que permitirá que essas informações sejam utilizadas corretamente pelas diversas ferramentas.
Por tudo isso, muito mais efetiva é a organização dos dados e a sua transformação em informações relevantes. Isso realmente proporcionará a melhoria da gestão jurídica, como fornecer indicadores para aprimorar os procedimentos internos das organizações e, entre muitas possibilidades, evitar a entrada de processos por motivos recorrentes. E isso está transformando o jurídico de custos e problemas em um lugar de ativos para a gestão estratégica.
Mas a realidade é que ainda não temos dados organizados para que essas ferramentas funcionem com todo o seu potencial. Fazer dashboards e tabelas bonitas é possível, mas o difícil é ter a segurança sobre a informação, sobre os resultados das pesquisas.
Em 2018, ao criar uma cultura de dados nós estamos, na verdade, ainda avançando na era do cadastro, do tratamento de dados, começando por temas específicos e questões setoriais. Porque é impossível organizar tudo de uma vez, e ainda serão anos para isso acontecer, para explorar todo esse pré-sal sociológico [3].
Para cada um desses trabalhos são meses de organização dos dados. Nesse ponto é que vem crescendo em nosso país, o uso de uma das técnicas de inteligência artificial (que não é uma coisa só), denominada processamento de linguagem natural.
Por meio dessa técnica, é possível buscar na fonte, no próprio documento, as informações dos processos e de outros documentos jurídicos. Utilizando algoritmos desse tipo, o STF está analisando milhares de documentos jurídicos para identificar de forma pormenorizada os temas que podem ser objeto de repercussão geral [4].
Na prática, a inteligência artificial tem sido utilizada na entrada de dados (pela busca direta nos documentos para o chamado enriquecimento das informações da forma mais granularizada possível) e, na outra ponta, para a tão discutida predição.
Depois de determinada e tratada a base de dados, passa-se a entender todos os indicadores e os fatores que podem refletir no tempo do processo e na decisão (por meio de softwares de B.I. – business intelligence) e, só na última parte, é possível avançar na predição, sobre como será percentualmente decidido aquele tema conforme determinadas variáveis (padrão de decisões anteriores e a integração com outros dados externos).
Contudo, se os projetos que utilizavam técnicas de IA em 2016 eram caros e demorados, em 2018 os valores e o tempo de entrega já se tornaram viáveis para parte relevante do mercado, apesar do desenvolvimento desses algoritmos ainda requerer tempo, investimento e pessoas qualificadas.
E a necessidade de orçamento extra para esses estudos, e a necessidade de mudança gradual da cultura de gestão na área do direito, tornou esse o ano da virada, o ponto da curva de ascensão para a adoção dessas inovações, que só vão aumentar exponencialmente a partir do ano que vem.
A constatação de 2018, portanto, é a de que uma parte ainda pequena do mercado jurídico está avançando na automação e uma ainda menor realmente está utilizando computação cognitiva, o que demonstra o grande potencial de crescimento profissional e das organizações para quem entender rápido essa janela de oportunidades.
Até aqui avançamos muito nos sistemas de gestão, nas plataformas de automação de documentos, de acordos, de correspondentes, e no monitoramento e análise de dados públicos (especialmente a partir dos metadados – ou dados conforme estão lançados nos sistemas públicos). E muito mais por técnicas de automação do que pelo uso de inteligência artificial.
A inteligência artificial começou a ser utilizada de forma crescente, nesse ano, para a busca das informações nos próprios documentos, começando pelas analises de processos e tendências de julgamentos e, seguindo de forma mais acentuada a partir do segundo semestre de 2018, para a aplicação na criação de chatbots e, seguindo a tendência de grandes empresas dos EUA e da Europa, na análise de contratos.
E aquele curso de ciência de dados que iniciamos no ano passado teve tanta procura, assim como para outros conteúdos ligados a essas inovações e sobre o reflexo do uso da inteligência artificial no nosso dia a dia, que esse embrião, em conjunto com as ideias de amigos e professores que realmente estão a frente desse movimento, acabou virando uma escola de tecnologia focada para a área do direito, a Future Law.
E depois desse ciclo de 3 anos (16-18), 2019 será o ano da aplicação, em que os projetos serão ampliados e conseguiremos demonstrar cada vez mais os ganhos de produtividade e o retorno do investimento na tecnologia para que, nos 2 a 5 anos seguintes, tudo isso se transforme em algo comum e com milhares de aplicativos úteis e intuitivos para melhorar tudo o que estamos fazendo.
Na verdade, se utilizada da forma correta e com o respeito às prerrogativas profissionais, essas novas tecnologia ajudarão muito na prestação de serviços jurídicos mais eficientes, com recursos humanos e financeiros alocados de forma correta para auxiliar na solução dos grandes problemas da sociedade, mantendo a essência da aplicação do direito por aqueles que realmente se formaram para isso e tem o dom desse ofício.
Participei recentemente do Legal Design Geek em Londres, um evento com mais de duas mil pessoas do mundo todo falando sobre tecnologia e design na área do direito. Uma das palestras mais impactantes foi “Why hype kills?”, que mostrou o quanto precisamos descer das manchetes para o conteúdo, pois essa euforia e a moda da inteligência artificial cria expectativas maiores em relação ao que realmente existe, gera falta de credibilidade pois são poucos os que realmente já estão entregando de forma escalonada, e cria hostilidade ao passar a ideia de que todos seremos substituídos.
Enquanto o assunto até agora foi a inteligência artificial, mesmo que de forma um pouco descolada entre o que é só automação e as reais aplicações da computação cognitiva, das técnicas de ciência de dados, no próximo triênio que se inicia em janeiro, acredito que o assunto mais relevante será o design jurídico, que começa a ser discutido internacionalmente como Legal Design.
O design não é o visual, e nem só o uso de design thinking no Direito, mas a funcionalidade, a forma como organizar o fluxo de informações e de atos até resolver um problema da maneira mais efetiva possível, focada no destinatário ou nos diferentes destinatários do serviço (personas).
O assunto será cada vez mais como preparar os profissionais para entender o problema, escolher os dispositivos adequados, o caminho para uma solução mais rápida e assertiva e de forma integrada com seus conhecimentos técnicos, do que sobre a tecnologia em si. Mas isso é assunto para outra conversa.
Como diz o filósofo grego Sócrates: “só sei que nada sei”, e nesses temas não existem professores, somos todos alunos. Por isso não dá para fazer futurologia sobre o que vai realmente acontecer, mas já conseguimos entender que o caminho da formação, da educação, vai nos preparar para navegar nesse mundo em transformação e fazer a diferença em um dos momentos históricos em que existem muitas oportunidades e coisas que estão por fazer. O futuro depende do nosso trabalho e responsabilidade sobre como utilizar todo esse potencial.
Que 2019 seja um ano de muito crescimento e conquistas para a ciência do Direito e para a ciência de dados aplicada ao Direito!
[1] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=380038
[2] Disponível em: https://jurisprudencia.oab.org.br/
[3] Expressão criada por Marcelo Guedes Nunes.
[4] Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/87869-inteligencia-artificial-trabalho-judicial-de-40-minutos-pode-ser-feito-em-5-segundos
Alexandre Zavaglia Coelho é advogado especializado em direito e tecnologia, coordenador do Curso de Ciência de dados aplicada ao Direito e VP de Educação da Future Law, um dos coordenadores da RDTEC – Revista Direito e as Novas Tecnologias da RT – Revista dos Tribunais.
Fonte: Conjur
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