Artigo - A luz de Henrique Ferraz sobre a usucapião extrajudicial – Por Eurimar Nogueira
Análise sobre um tema ainda pouco explorado pela literatura jurídica brasileira.
Análise sobre um tema ainda pouco explorado pela literatura jurídica brasileira
O fenômeno da desjudicialização parece um processo sem volta. O profissional do Direito do presente século não pode mais ignorá-lo. Interessado no tema da usucapião extrajudicial, uma das novas possiblidades trazidas pela conjuntura de desjudicialização do direito, visitei a obra Usucapião Extrajudicial, 2ª Edição/2018, de Henrique Ferraz Corrêa de Mello.
Gostei do que li. Além da formação, Doutor em Direito Processual Civil pela PUC-São Paulo, a experiência do autor como magistrado na 1ª e 2ª Vara de Registro Público de São Paulo e, atualmente, como Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos na comarca de Itapevi-SP, deixaram a obra muito didática e propositiva. Um raio de luz animador sobre um tema ainda pouco explorado pela literatura jurídica brasileira. O método do Direito comparado (normas brasileiras e suas semelhanças e diferenças com normas portuguesas, italianas, peruanas, argentinas e chilenas) foi essencial na construção da obra.
A tese de Mello (2018) é a de que o processo administrativo da usucapião extrajudicial, se conduzido pelo espírito da simplicidade e prudência dos oficiais de registro, se torna uma ferramenta indispensável para a garantia ampla e irrestrita de acesso à justiça, favorecendo a concretização de direitos constitucionais básicos como moradia (art. 6º da CF) e função social para a propriedade (inciso XXIII do art. 5º da CF).
A obra é dividida em três partes. Primeiro trata da crise da judicialização brasileira. Depois da tentativa de se reverter essa crise, gerando o fenômeno da desjudicialização e suas modalidades. Por fim, um aprofundamento maior numa dessas modalidades de desjudicialização, a usucapião extrajudicial, definindo sua natureza jurídica e seus fundamentos legais.
Abordando a crise da judicialização, o autor lembra que dados do CNJ apontam para um grande congestionamento do judiciário, na média de 70% ao ano. “Isto é, para cada 100 processos, 70 costumam terminar sem solução.” (pg. 24). Além da cultura do litígio, o problema tem como causa principal a habitual litigância do próprio Estado. Mais da metade de todos os recursos que chegam ao STF e ao STJ tem o próprio Estado como parte.
Como fica o instituto da usucapião nesse contexto? Atua como causa, congestionando, e sofre as consequências da crise, com processos cada vez mais morosos. O modelo judicial se mostra desnecessário na grande maioria dos casos. Mello (2018) destaca que, em 2014, de 100 feitos ajuizados na Comarca de São Paulo, apenas 10 eram objeto de contestação. Ou seja, 90% poderiam ter sido resolvidos nos Cartórios de Registro de Imóveis, pois ausente a lide (requisito essencial da usucapião extrajudicial).
Para o doutrinador, a resposta a essa crise veio na última década do século XX e nas duas primeiras do XXI, na forma de legislações que caminharam no sentido de construir um modelo jurídico pautado na desjudicialização. Destaca-se a Lei n. 9514/97, tratando da alienação fiduciária de bens imóveis, a n. 10931/2004, disciplinando a retificação bilateral de registro de área, a n. 11977/2009, para regularização de imóveis urbanos pela usucapião administrativa, a n. 11441/2007, prevendo a hipótese de inventários, partilhas, separações e divórcios nos cartórios, e por fim, a usucapião extrajudicial aqui tratada, instituída pelo Código de Processo Civil de 2015, que introduziu o art. 216-A na Lei 6015/1973 (Lei de Registros Públicos).
Junto com a usucapião extrajudicial, o CPC/2105 criou outro importante procedimento administrativo, a homologação do penhor legal junto aos notários. Com essas mudanças, os notários e oficiais de registro passaram a compartilhar parte da autoridade e do papel que antes era exclusivo da jurisdição estatal.
Dentro desse contexto de desjudicialização o Brasil implementou modelos alternativos de prevenção e solução de conflitos, como a mediação e conciliação judicial e extrajudicial, que são procedimentos autocompositivos introduzidos pelo CPC de 2015 e pela Lei da Mediação (Lei n. 13.140/2010), além da arbitragem ( Lei n. 9307/1996), procedimento heterocompositivo.
Antes de mergulhar na natureza jurídica e fundamentos legais da usucapião extrajudicial, Mello (2018) apresenta as oito modalidades de usucapião existentes em nosso ordenamento jurídico, todas elas possíveis de se efetivarem nas serventias registrais. São elas a usucapião extraordinária (art. 1238 do CC); ordinária (art. 1242 CC); secundum tabulas (parágrafo único do art. 1242 do CC); especial rural (191 da CF); especial urbana (art. 183 da CF); coletiva urbana ( art. 10 do Estatuto da Cidade); indígena (art. 33 da Lei n. 6001/73) e familiar (Lei 12424/2011).
Para o processualista, a natureza jurídica da usucapião extrajudicial é de processo administrativo, tendente ao registro da propriedade imobiliária. Em suas palavras:
(…) a usucapião extrajudicial é um processo de natureza administrativa, instaurado a pedido do interessado, que tem por finalidade converter em propriedade uma posse reconhecidamente hábil e qualificada do possuidor, segundo os requisitos predispostos em lei. (FERRAZ, 2018, pg. 158)
Trata-se de um modelo que deve respeitar princípios constitucionais como ampla defesa, contraditório e o devido processo legal, além dos princípios gerais da administração pública como legalidade, imparcialidade, moralidade, publicidade e eficiência, insculpidos no art. 37 da Constituição Federal.
Simplificando, a sequência do processo é a seguinte: 1-Ata Notarial junto ao tabelião do Registro de Notas;2- Protocolo da Petição de Usucapião Extrajudicial (com base no art. 319 do CPC) devidamente instruída com Ata Notarial, planta e memorial descritivo, anuência dos titulares de direitos reais registrados no imóvel usucapiendo e confrontantes, certidão negativa do distribuidor da comarca do imóvel e do domicílio do requerente, justo título (essencial no caso de usucapião ordinária, e dispensável na extraordinária e especial rural e urbana) e valor do pedido (valor do imóvel) 3- Intimação, de ofício, das fazendas públicas 4- notificação dos interessados certos que deixaram de anuir na planta; 5 Publicação de edital destinado aos interessados incertos; 6 Deferimento ou indeferimento do pedido (desta decisão cabe Recurso de Dúvida para o Juiz Corregedor Permanente).
No curso do processo administrativo o oficial de registro de imóveis exerce função equiparada à do juiz, investigando os fatos relatados pelo interessado, ouvindo testemunhas e promovendo diligências necessárias à descoberta da verdade para, ao final, deferir ou indeferir o pedido do requerente. Decisão que deve vir independente de obscuridade ou lacunas da lei, pois o oficial deve recorrer aos princípios gerais do direito, analogia e costumes, conforme aplicação subsidiária do art. 4º da LINB ao processo administrativo. Sua decisão tem eficácia de sentença declaratória dada por juiz.
O trabalho do oficial sucede ao do tabelião de notas, que ao elaborar a ata notarial, faz atividade preparatória do processo administrativo, atestando os fatos referentes à posse do imóvel. Ambos exercem funções complementares.
O autor elenca o que ele considera como fundamentos constitucionais essenciais da usucapião extrajudicial: acesso à ordem jurídica justa (inciso I, art. 3º da CF); legalidade (art. 37 da CF); segurança jurídica; ampla publicidade (incisos XXXIII e XXXIV do art. 5º da CF)- não existe sigilo no processo de usucapião extrajudicial, exceto se declarado por decisão judicial; e função social da propriedade (inciso XXIII do art. 5º da CF).
A legislação que regulamenta a usucapião extrajudicial é o art. 216-A da Lei n. 6015/1973 (Lei de Registros Públicos), que surgiu e foi inserto nessa lei por obra do art. 1071 do CPC de 2015; o Provimento nº 65/2017 do CNJ; e a Lei n. 13.465/2017, que alterou alguns pontos da Le n. 6015/1973.
Por fim, o autor destaca dois grandes avanços que a Lei n. 13.465/2017 trouxe para o processo administrativo da usucapião extrajudical. O primeiro foi alterar a presunção de discordância para concordância, nos casos em que os interessados notificados se silenciarem; a segunda foi autorizar a citação por edital dos interessados certos não encontrados ou que estejam em local incerto ou não sabido. Mais razoabilidade e dinâmica ao processo.
Em síntese, a obra de Mello (2018) nos ajuda a compreender o instituto da usucapião extrajudicial como ferramenta para justiça social e garantia de direitos fundamentais. Num contexto de desjudicialização de processos, a pesquisa de novos caminhos para a paz social é essencial. A obra cumpre muito bem esse papel. Nos atualizarmos, enquanto profissionais do Direito, e avançar nesses terrenos é um caminho que parece mesmo sem volta.
Bibliografia:
Mello, Henrique Ferraz Corrêa de. Usucapião Extrajudicial. 2ª Ed. São Paulo. YK Editora, 2018.
EURIMAR NOGUEIRA GARCIA – Mestre em História pela UFG e Graduando em Direito pela FACMAIS.
Fonte: JOTA
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