Artigo – Conjur - A morte do CEP e as implicações jurídicas do uso do Plus Code
Mais da metade da população urbana do mundo não tem endereço de rua.
Mais da metade da população urbana do mundo não tem endereço de rua. Este percentual aumenta significativamente se considerarmos a população rural. Longe de ser um problema trivial, as diferentes experiências governamentais realizadas até os dias atuais, com honrosas exceções, não foram eficazes em prover uma solução que permita aos cidadãos terem o direito a um endereço.
O Tratado de Berna de 1874 compreendeu um grande esforço de padronização dos endereços globais. A criação, naquele momento, da União Postal Universal (UPU) foi um enorme avanço para coordenar políticas e serviços postais internacionais. A localização dos endereços passava a ter um foro para discussão de padronizações. Após a elaboração, em 1929, do Código Postal Universal, foi somente em 1971 que os Códigos de Endereçamento Postal — conhecidos pela sigla CEP, foram criados no Brasil. O país foi dividido em 10 zonas postais, permitindo a identificação da população no território e a remessa de correspondências a lugares antes não identificados.
Os Correios, gestores deste sistema e presentes em quase todos os municípios do país, têm sido sinônimo de integração nacional e foram, por muitos anos, praticamente a única forma de comunicação entre inúmeros migrantes e suas famílias. O monopólio postal era um instituto que servia para criar um amálgama entre a capacidade estatal de gerir uma instituição com essa característica e a necessidade dos cidadãos de fazer documentos, cartas, informações e bens circularem pelo país e alcançarem seu destino.
Todavia, o CEP ainda não é um código universalizado em todo o país. Há diversas zonas sem um CEP atribuído. Isso ocorre nas áreas rurais e nas urbanas. Há desde casos de ex-recenseadores que “criaram” serviço de correio em comunidades até milícias que se apropriaram deste serviço em áreas urbanas. E com a revolução informacional, que inclui a propagação da internet e a popularização dos smartphones, dispensando o transporte físico de inúmeras correspondências, empresas têm buscado fornecer uma solução que permita visualizar e utilizar como endereço a localização de sistemas globais de posicionamento (sendo o mais popular o GPS).
Para tanto, o grande desafio é criar uma maneira de codificar as informações de localização para que as pessoas possam comunicar locais entre si. E o Google se propôs a isso. Sem alarde, após a aquisição da empresa Keyhole em 2004 que culminou na elaboração do Google Earth, principal plataforma de mapeamento do mundo, tem sido desenvolvido, desde 2014, o Plus Code, que nada mais é do que um código postal universal adaptado à realidade algorítmica. Esse sistema já tem sido aceito oficialmente por diferentes governos, como ocorre com Cabo Verde, partes da cidade de Kolkata, na Índia, e o estado de São Paulo. Nesse último caso, o Projeto Rotas Rurais (Rorais) busca identificar em torno de 60 mil quilômetros de estradas rurais do estado que não têm nome ou qualquer outro tipo de identificação.
E para lidar com esse desafio foi celebrado um convênio com o Google meses após o encerramento da Emplasa — órgão que tinha como competência cartografar áreas do estado. Na busca do Estado mínimo para lidar com sérios problemas de mapeamento e de ordenamento do território, como demonstram os verdadeiros tsunamis fluviais ocorridos nesse verão em São Paulo, abre-se mão da cartografia pública em prol de uma rica experiência privada que tem como alicerce uma propriedade intelectual que não é pública. Em outras palavras, atribuímos oficialidade a uma tecnologia sobre a qual não temos a menor ingerência. É como se disséssemos, no início do século 20, que a energia elétrica pertence a um dono que nos licencia para a usarmos sem que tenhamos instrumentos hábeis para reagir caso ele nos desligue da tomada.
E isso gera inúmeros problemas de gestão pública. Como exemplo, em que pese os técnicos estatais manifestarem, nos autos administrativos, preocupação com a interoperabilidade do sistema com outras plataformas, os termos do convênio não fixam esse compromisso enquanto obrigação do Google. No mesmo sentido, não há qualquer menção a integração dos dados à Infraestrutura de Dados Espaciais de São Paulo (IDE-SP), revelando desconexão entre a política pública desenvolvida pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo e as demais secretarias estaduais.
É provável que o Google, em mais uma disrupção genial, consiga aposentar o CEP pelo Plus Code no médio prazo e universalizar o direito a se ter um endereço. Mas isso é completamente diferente do fato de entidades públicas abdicarem do seu dever de criar sistemas próprios de infraestrutura de dados espaciais. Como a hipótese da Administração Pública estadual passar a ter poder decisório na condução dos negócios da Google é intuitivamente remota, ao menos presentemente, se a ideia do estado de São Paulo é ter protagonismo setorial, mostra-se fundamental a criação da primeira agência reguladora de infraestrutura de dados espaciais do Brasil, como já fazem diversos países do mundo desenvolvido e em desenvolvimento. Isso não é burocratizar, é fomentar uma próspera indústria de startups de mapeamento, aerolevantamento, drones e de geoprocessamento de imagens de satélites que se estima bilionária com o progressivo desenvolvimento de carros autônomos. Sob pena de os carros da avenida Paulista, ou melhor, da C8QV+4P São Paulo1 serem dirigidos a partir do Vale do Silício em 2030.
Fonte: Consultor Jurídico
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