Artigo – ConJur - Na crise, é preciso esforço para manter compromissos nas relações imobiliárias - Por Erika Raissa Loiola de Oliveira
A indústria da construção civil é claramente um termômetro da economia brasileira e mundial, sendo uma das maiores geradoras de empregos do país, com o número surpreendente de mais de 70 mil vagas criadas no ano passado no setor, correspondendo a 11% [1] do total de empregos surgidos no país em 2019.
A indústria da construção civil é claramente um termômetro da economia brasileira e mundial, sendo uma das maiores geradoras de empregos do país, com o número surpreendente de mais de 70 mil vagas criadas no ano passado no setor, correspondendo a 11% [1] do total de empregos surgidos no país em 2019.
No Brasil, a construção civil iniciou o ano de 2020 em claro ritmo de bull market, após disparar mais de 100% [2] na Bolsa e ter crescimento de 1,6% no ano de 2019, sendo a maior alta do Ibovespa no setor desde 2013 [3].
A reviravolta, no entanto, foi verificada em março de 2020 com o avanço exponencial da Covid-19 [4], o que, de forma inesperada, obrigou os governos a implementarem medidas duras e sem precedentes para a contenção da propagação do vírus, o que, por consequência, ocasionou a abrupta interrupção desse movimento de crescimento e reestruturação da construção civil.
Com a interrupção das obras, férias coletivas, escassez de material, insumos e mão-de-obra e, sobretudo, em razão da piora da percepção dos empresários acerca das expectativas para os próximos trimestres e a insegurança dos consumidores para aquisição de novos imóveis ou mesmo a manutenção de contratos preexistentes, já houve perdas significativas para o setor [5].
A projeção é de que os impactos sejam ainda maiores a médio e longo prazo, em razão dos mesmos motivos listados, o que acarretará, certamente, no atraso na entrega das chaves dos imóveis adquiridos na planta e o aumento da inadimplência.
É possível dizer que, além de paciência e trabalho árduo, deverá haver uma compreensão recíproca, ou seja, de todos aqueles que atuam nas relações contratuais, para minimizar os impactos da situação vivida.
É esperado que em razão da fragilidade da economia e dos eventuais atrasos na entrega dos imóveis, o número de ações ajuizadas aumente significativamente, seja com o objetivo de se pleitear a rescisão contratual, seja com o objetivo de obter indenização material.
Considerando especificamente o cenário de atraso na entrega dos imóveis, que comprovadamente se deram em decorrência da Covid-19, é possível sustentar a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, previsto no artigo 393, do Código Civil [6], que preceitua que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes do caso fortuito ou força maior se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Em situações menos complexas, os institutos do caso fortuito e da força maior são de difícil verificação prática e aplicação pelo Judiciário, já que vulgarmente utilizados por empresas do setor para justificar atrasos que poderiam de fato ser evitados.
No entanto, em situação extrema como a pandemia causada pela Covid-19, é possível evocar o caso fortuito e força maior sem grandes dificuldades, já que as construtoras e incorporadoras imobiliárias, por certo, não deram causa aos problemas enfrentados e tampouco poderiam evitá-los, sendo estes os fatores da excludente do nexo de causalidade em relação a eventuais prejuízos suportados pelos consumidores.
Inclusive, o Código Civil, em seu artigo 625, inciso I [7], prevê a possibilidade de suspensão da obra em razão do motivo de força maior, reforçando a ideia de impossibilidade de responsabilização do empreiteiro e da incorporada em razão de atrasos a que não deram causa e que não poderiam ser por eles evitados.
Esclarecida a possibilidade das construtoras e incorporadoras evocarem o caso fortuito e de força maior para justificar o atraso na entrega do imóvel, surge o questionamento acerca do direito do consumidor de receber multas e penalidades relacionadas ao referido atraso.
Nesse prisma, embora seja pacífico o entendimento da validade da cláusula prevista na maioria dos compromissos de venda e compra que possibilita o atraso na entrega das obras por 180 dias, espera-se do Poder Judiciário uma maior flexibilização desse prazo, podendo ser prorrogado em razão da pandemia, sem a aplicação da aludida cláusula penal.
Um cenário ainda mais sensível e alarmante para o setor é aquele em que o consumidor, alegando impossibilidade ou desinteresse na manutenção do contrato, pugna pela rescisão do instrumento, com a aplicação de multa compensatória e a restituição dos valores pagos.
Não é demais relembrar que toda a crise enfrentada nos últimos anos no setor imobiliário se deve justamente aos problemas desencadeados pela desistência voluntária por parte dos adquirentes, que não refletem apenas em seu direito individual, mas colocam em xeque a viabilidade do empreendimento como um todo e comprometem drasticamente a subsistência da atividade do incorporador, correndo o risco, entre tantos outros, de dispender altíssimos valores com os distratos, além de suportar os prejuízos decorrentes do cancelamento do empreendimento.
Nesse contexto, levando-se em consideração que o setor da construção civil é responsável por gerar grande parte dos empregos formais no Brasil e por aquecer a economia, conforme tratado no início deste artigo, temos que o problema a ser enfrentado pelas construtoras e pelo Judiciário ao tratar das ações de rescisão contratual é delicado e exige atenção do ponto de vista macro.
Inobstante a questão afeta à economia de modo geral, por certo o promitente comprador que não estiver disposto a suportar o atraso na entrega da obra ou não tiver condições de manutenção do contrato não poderá ser impedido de prosseguir com a rescisão do instrumento, porém, seguirá como rescisão imotivada, devendo suportar as penalidades previstas no contrato e na Lei n° 13.786/2018 (Lei do Distrato), que prevê multa de 25% para empreendimentos sem patrimônio de afetação ou de 50% para empreendimentos com patrimônio de afetação.
Em contrapartida, é inevitável que o Judiciário atente para aqueles casos em que o consumidor demonstrar de forma cabal e nos termos dos artigos 478, 479 e 480 do Código Civil [8], que em razão dos efeitos da Covid-19 na sua capacidade financeira o contrato se tornou excessivamente oneroso, hipótese em que poderá se eximir das penalidades previstas na lei e, em contrapartida, pugnar pela restituição integral dos valores pagos, devidamente atualizados.
Os dois cenários apresentados são sensíveis e certamente impactarão de forma drástica a economia brasileira, seja do ponto de vista do consumidor, seja do ponto de vista do incorporador, existindo justificativas suficientes para defesa de um ou do outro lado.
Justamente em razão do problema generalizado que apresentará desafios para todos os participantes da relação contratual e, principalmente, para a economia de modo geral, o caminho recomendável e saudável para a solução do conflito que certamente existirá, de fato não é a judicialização da questão ou a rescisão do contrato pura e simples, mas a intensificação das negociações entre contratante e contratado, por vezes intermediada por advogados e conciliadores, com concessões recíprocas e revisitação de cláusulas contratuais, caso seja necessário.
De tudo o que se espera para o correto enfrentamento dos danos causados pela Covid-19 no mercado imobiliário é que do lado da incorporadora se atente ao dever de informação, para que seja oportunizado ao consumidor, mesmo diante do conhecido cenário de crise de saúde pública e econômica, com pleno conhecimento do status da obra, da forma que os efeitos da pandemia afetará seu contrato e, principalmente, todas as medidas que o Incorporador está adotando para minimizar estes impactos.
Do lado do consumidor, espera-se, dentro do possível, um esforço acentuado e compreensão em relação aos impactos da crise no seu contrato, devendo priorizar a manutenção da relação contratual, ainda que para isso seja necessária a renegociação de valores, prazos para pagamento e revisitação de cláusulas contratuais em geral.
Por fim, sabendo que inexistem precedentes jurídicos e econômicos da situação atualmente vivida no Brasil e no mundo, o que se espera é um esforço mútuo para que sejam mantidos os compromissos assumidos, dentro dos princípios da transparência, boa-fé, proporcionalidade e razoabilidade, viabilizando, assim, a retomada do crescimento do mercado imobiliário brasileiro.
Fonte: Consultor Jurídico
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