Em 14/06/2018
Artigo - Usucapião extrajudicial: A conciliação e a mediação no registro de imóveis – Por Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli
Neste texto dedicaremos breves linhas a um aspecto muito interessante da regulamentação dessa modalidade administrativa de usucapião, que é a possibilidade de conciliação e de mediação feita pelo oficial do Registro de Imóveis na operacionalização do instituto
Este texto é o segundo da série de colunas sobre usucapião extrajudicial (art. 216-A da Lei de Registros Públicos), iniciada há pouco1. Nele dedicaremos breves linhas a um aspecto muito interessante da regulamentação dessa modalidade administrativa de usucapião, que é a possibilidade de conciliação e de mediação feita pelo oficial do Registro de Imóveis na operacionalização do instituto.
Recorde-se, antes de mais, que se deve à lei 13.465/2017 a correção de diversos pontos problemáticos da redação original do art. 216-A da LRP. Como já se afirmou, a mais relevante dessas alterações está na nova redação dada ao §2º:
“Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como concordância”.
O artigo afasta a anterior “presunção de discordância”, havida quando os titulares dos imóveis confrontantes não se manifestassem a respeito do pedido. Agora, uma vez notificados e não dando resposta em 15 dias, tem-se por concordância a sua inércia. Mas se, ao revés, houver uma impugnação do pedido de usucapião, o Oficial do Registro de Imóveis deve tentar uma conciliação entre as partes.
Depois da lei 13.465/2017, o provimento 65/2017, da Corregedoria Nacional de Justiça, estabeleceu importantes “diretrizes para o procedimento da usucapião extrajudicial no âmbito dos serviços notariais e de registro de imóveis” (art. 1º). E também no art. 10 do Provimento se afirma que:
Art. 10. Se a planta mencionada no inciso II do caput do art. 4º deste provimento não estiver assinada pelos titulares dos direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes ou ocupantes a qualquer título e não for apresentado documento autônomo de anuência expressa, eles serão notificados pelo oficial de registro de imóveis ou por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos para que manifestem consentimento no prazo de quinze dias, considerando-se sua inércia como concordância.
Como igualmente se assentou na última coluna, ninguém pode criticar a redação original dada ao art. 216-A da LRP pelo CPC/2015. Isso porque uma novidade como a usucapião administrativa (em toda a sua abrangência, nada comparável à restrição da lei 11.977/2009) exigia cautela do legislador e da comunidade jurídica. Após discussões saudáveis é que se identificaram problemas, cuja superação poderia ser facilmente corrigida. Assim é que se passou da presunção de discordância para a presunção de concordância em caso de inércia dos titulares de direitos reais sobre o imóvel ou dos titulares dos imóveis confrontantes.
Além disso, como também se afirmou no último texto, será sempre questionável, de certo modo, a mudança legislativa. Na medida em que o registro é a base do sistema, o princípio da inviolabilidade socorre o seu titular. O titular tabular, via de regra, está protegido desde a dimensão constitucional do direito de propriedade. Passou-se, com a mudança, a proteger o possuidor, o que é bastante razoável sob o ponto de vista prático e funcional, porém questionável do ponto de vista das garantias fundamentais. Essa discussão, contudo, deve ficar para outras linhas.
O que parece bastante claro é que uma tentativa de favorecer a desjudicialização não se poderia contentar apenas com essa diretriz (presunção de concordância). Importa também, numa normativa que se pretende eficiente, direcionar o que ocorre quando da impugnação – ou seja, que rumos toma o procedimento quando há impugnação do procedimento pelos referidos titulares ou pelos terceiros interessados. Recorde-se que a estes últimos também se dá a conhecer o procedimento: é o teor do §4º do art. 216-A da LRP (já na redação originalmente dada pelo CPC/15):
§ 4o O oficial de registro de imóveis promoverá a publicação de edital em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão se manifestar em 15 (quinze) dias.
Pois bem. Sobre a impugnação, diz o art. 216-A, em seu disposto:
§ 10. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum.
Então o que a lei parece ordenar é que o Oficial, diante de uma impugnação, remeta de pronto os autos ao juízo competente. Mas, será que uma interpretação apenas literal do preceito seria suficiente, tanto mais diante da complexidade do que afinal se regulamenta?
Parece que sim. E é bom que se recorde que o mesmo CPC/15, que estabeleceu a usucapião extrajudicial, também prestigiou fortemente a figura da conciliação, apresentada em diversos de seus dispositivos.
Uma visão sistemática, embora reconhecendo a presença da usucapião administrativa em artigo isolado (e um artigo que não menciona expressamente a conciliação/mediação operada pelo Oficial do Registro de Imóveis) entende desde a promulgação da lei ser possível que o agente atue como conciliador entre as partes (assim Lamana Paiva2, por exemplo).
O que fez o provimento 65/2017 – já mencionado – foi explicitar, dentre suas diretrizes, essa possibilidade, para que se operacionalize já no próprio Registro de Imóveis uma tentativa de superar o impasse da impugnação. Assim está o dispositivo:
Art. 18. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião apresentada por qualquer dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, por ente público ou por terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis tentará promover a conciliação ou a mediação entre as partes interessadas.
§ 1º Sendo infrutífera a conciliação ou a mediação mencionada no caput deste artigo, persistindo a impugnação, o oficial de registro de imóveis lavrará relatório circunstanciado de todo o processamento da usucapião.
§ 2º O oficial de registro de imóveis entregará os autos do pedido da usucapião ao requerente, acompanhados do relatório circunstanciado, mediante recibo.
§ 3º A parte requerente poderá emendar a petição inicial, adequando-a ao procedimento judicial e apresentá-la ao juízo competente da comarca de localização do imóvel usucapiendo.
Assim, em caso de impugnação (pois é dela que trata o dispositivo explicitador), levanta-se a possibilidade de conciliação ou mediação, devendo, diante de sua eventual ineficácia, ser o processo remetido ao juízo competente.
Nesse sentido, teve-se recentemente o pedido de providências 1000162-42.2018.8.26.010, perante a 1ª vara de Registros Públicos de São Paulo:
USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL – IMPUGNAÇÃO FUNDAMENTADA. Ocorrendo a hipótese de impugnação fundamentada, o Oficial deverá buscar a conciliação entre as partes. No insucesso, remeterá o processo ao juízo competente que julgará a impugnação. Caso mantida, este devolverá o processo ao Oficial, que extinguirá o procedimento e a prenotação, cabendo ao interessado buscar a via judicial se entender pertinente o prosseguimento do feito deste modo (ementa não oficial).
Mas, veja-se: o dispositivo do Provimento 65/2017 explicita a possibilidade de conciliação/mediação em face da impugnação. Não será possível, contudo, adotar-se essa tentativa de solução diante de outros problemas, que não uma efetiva e formal impugnação?
Ressalte-se que a questão não fica resolvida com o provimento 67/2018, da mesma Corregedoria Nacional da Justiça, o qual “dispõe sobre os procedimentos de conciliação e de mediação nos serviços notariais e de registro do Brasil”. Neste caso, trata-se de uma atividade de conciliação e mediação em sentido estrito, de modo que, segundo o art. 6º, “Somente poderão atuar como conciliadores ou mediadores aqueles que forem formados em curso para o desempenho das funções (…)”, observadas certas diretrizes curriculares. Segundo o Provimento, é necessária uma autorização da Corregedoria Estadual para que o cartório ofereça o serviço de conciliação e mediação.
Ainda que se possa criticar o provimento 67/2018, o fato é que uma visão geral de seus dispositivos, embora indique um regramento bem diferente daquilo que se discute em relação à usucapião extrajudicial, pode ao menos revelar que os ofícios do notariado e registro podem sim oferecer os serviços de conciliação. Têm essa capacidade e podem, preenchidos alguns requisitos – ainda obscuros, é verdade – mediar conflitos.
Mas, como se disse, no específico tema aqui abordado não há como confundir as disposições. O Provimento de 2018 tem como objeto a conciliação/mediação feita nas serventias extrajudiciais, ou seja, mediação/conciliação oferecida por agentes privados (delegatários do poder público), assim de forma institucionalizada. Não se pode utilizar este último Provimento para defender a restrição ou a ampliação da atividade de conciliação no caso da usucapião administrativa. São situações diferentes, pois na usucapião extrajudicial a conciliação deve ser sempre promovida diante da impugnação, não se tratando de uma atividade institucionalizada de mediação de conflitos.
Com isso, retorne-se à questão previamente fixada. A tentativa de conciliação, na usucapião extrajudicial, vai além dos casos de efetiva impugnação, envolvendo também outros “entraves” ao procedimento?
A resposta deve ser afirmativa. Não há sentido em atribuir-se ao Oficial o mais, e não o menos. Se lhe cabe agir como conciliador diante de impugnação, também será de seu mister orientar e direcionar as partes, fazendo o máximo possível para efetivar o procedimento no âmbito administrativo. Deverá, assim, agir para evitar a própria impugnação, dirimindo as dúvidas das partes. Em outros termos, trata-se de um esclarecimento quanto ao procedimento, suas etapas e seu resultado.
Qualquer que seja a visão a respeito da conciliação pelo Oficial – ora mais ampla, ora mais restrita – o fato é que esse será, certamente, um dos passos mais importantes para a efetiva concretização da usucapião administrativa no Brasil, que ainda caminha a passos lentos: várias atas notariais já lavradas, porém com poucos registros efetivados. A conciliação e a mediação – espera-se – darão aos Oficiais do Registro uma margem mais ampla de atuação para efetivar o procedimento.
Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.
Fonte: Migalhas
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