Direito administrativo registral – novo livro de Ricardo Dip chega às livrarias
Entrevista exclusiva com Ricardo Dip sobre seu novo livro "Direito administrativo registral"
Por Sérgio Jacomino
Acaba de sair, pela Editora Saraiva, em parceria com o IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, o livro Direito Administrativo Registral, de autoria do desembargador Ricardo Dip, renomado autor e um dos mais destacados juristas dos país, especializado, dentre outras, na matéria notarial e registral.
O livro apresenta à comunidade jurídica brasileira uma percuciente abordagem do sistema registral pátrio, destacando aspectos pouco estudados e desvelando novas e instigantes perspectivas, iluminadas pela interpretação sistemática da nova ordem constitucional. A questão do Registro passa a ser vista como uma questão política
Condensando a sua longa e proveitosa produção jurisprudencial e doutrinária, haurida de sua destacada experiência profissional na justiça registral bandeirante, no exercício reiterado nas corregedorias permanente e geral de São Paulo -, o desembargador Ricardo Dip nos presenteia com um elegante, preciso e bem fundamentado estudo sobre os registros prediais.
O autor não foge às questões mais delicadas que podem colocar em risco o desenvolvimento da multissecular atividade registral brasileira – como é o caso das gratuidades plenárias, hoje concedidas sem peias no bojo de programas oficiais. Não deixa de enfrentar, igualmente, os candentes temas da informatização dos cartórios, com seus profundos reflexos na dinâmica procedimental dos registros.
Livro de leitura obrigatória, o Irib, em parceira com a Editora Saraiva, prestam um inestimável serviço à comunidade jurídica pátria, contribuindo não só com o desenvolvimento da instituição do Registro Público de Imóveis no Brasil, mas para o fortalecimento do instituto da segurança jurídica. (SJ)
Título: Direito Administrativo Registral.
Editora: Saraiva, São Paulo
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Independência jurídica – fortificação contra a administrativização dos registros públicos
SJ – Acaba de publicar-se, pela editora Saraiva, seu livro Direito Administrativo Registral, versando temas relativos à organização dos registros públicos. A quais pontos se poderiam resumir as proposições conclusivas dessa obra?
RD- Penso que poderia sumariar-se o pequeno livro em três conclusões:
a necessidade de repensar o conceito de delegação registrária e notarial, sem insistir, de maneira acrítica, no conceito antigo de delegação administrativa;
a importância de que a independência da qualificação registral se garanta contra uma linha de atuação administrativista —não só proveniente da negativa factual da liberdade decisória na órbita própria do juízo de qualificação (que se resumiria como tendência socializante), mas também oriunda de um pseudo-corporativismo (que a história do século XX retratou no fascismo italiano)—, afirmando-se, de resto, a bipolaridade serviço público–gestão privada, que, decerto, se vulnera com uma tendência empresarialista, reconhecível na ideologia liberal;
a relevância de preservar todos os equilíbrios do pacto de delegação —equações que não se limitam ao plano econômico-financeiro, plano esse que não se respeita se, por exemplo, para satisfazer as equações política e social, o custo correspondente onere a gestão privada.
SJ - Sua análise sobre o conceito de delegação registral consiste numa nova interpretação do caput do art. 236 da Constituição Federal e, propondo um novo paradigma, exige consenso doutrinário. Como vê, de fato, a possibilidade de adoção desse novo paradigma?
RD - Embora, com efeito, haja, no livro, uma, de algum modo, nova interpretação do texto constitucional, três coisas, a propósito, devem ser observadas, a meu ver: primeira, a de que as conclusões desse modesto estudo não exigem, essencialmente, a adoção do novo paradigma; é certo que, acolhido esse modelo, as conclusões se explicam com rigor lógico; mas, ainda sem ele, seria possível concluir do mesmo modo, por exemplo, quanto à independência jurídica do registrador e a necessidade de salvaguarda das demais equações da delegação.
Segunda nota: não há razão alguma —salvo a meramente do nome comum “delegação”— para eleger, quanto à delegação registrária, o modelo de uma transferência funcional puramente administrativa, baseada num relacionamento hierárquico, quando, em vez disso, a delegação registral é destinada a uma expressa transferência gestionária ad extra.
Terceira observação: bem por isso, porque há uma transferência extásica de gestão, a vigente delegação registral corresponde ao paradigma insurgente do Estado contemporâneo ou pós-moderno. Esta é a clave fundamental, em rigor, para a compreensão teórico-política do livro, que, com não ser propriamente um livro de política, preferiu deixar apenas indicada a realidade desse novo Estado globalizado.
SJ - Poderia explicar um pouco mais essa realidade estatal… Ainda mais que, assim disse, é a chave para bem compreender seu livro…
RD – Em poucas palavras, Dr. Sérgio, porque explicar esse tema estaria a exigir um livro, nós não podemos tratar da realidade do Estado atual como se fora ele o tipo vivido em larga parte do século XX. O que agora se chama de “erosão do Estado” corresponde a uma série de quebras da unidade da soberania política e do monopólio jurídico dos Estados contemporâneos, quebras que vêm do convívio do Estado com poderes e normas jurídicas internacionais e supranacionais, da repartição de parcela considerável da soberania interna em mãos do que se tem designado por “autoridades independentes” e ainda em razão do crescente influxo das exigências de um mercado sem fronteiras territoriais.
Dessa maneira, quando se interpreta a gestão privada dos registros públicos e das notas como um elemento da Administração Pública do Estado antigo —aquele do modelo da pré-modernidade—, adota-se um discurso conservador (próprio da velha ideologia estatalista), contornando a realidade de uma Administração que não só transferiu suas antigas tarefas, mas que, abdicando de parcela considerável de sua pretérita soberania, responde agora à estratégia de pactos, de negociações.
Assim, há um equívoco radical na análise do conceito de delegação registrária, que consiste no anacronismo de referi-lo a um Estado munido de monopólio jurídico-legal e que não fragmentava competências. Isso já não é o Estado de nossos dias. Não trato, com isso, de aqui ou no livro defender ou atacar esse modelo de Estado, mas só de reconhecer-lhe a vigência atual.
SJ - Como se entenderá, nesse quadro, a relação dos registros públicos e das notas com a Administração Pública?
RD – Muito oportuna essa sua indagação. Com efeito, a independência jurídico-funcional não exige que o jurista independente esteja marginado da esfera estatal: o juiz é jurista independente e, não por isso, deixa de ser agente estatal. A perspectiva é outra, contudo, quando se trata de gestão extásica, porque ela é, definidamente, atividade ad extra, conceitualmente fora do Estado. Mas não fora do direito público. Há um grave erro em identificar Estado e direito público. Nessas circunstâncias, a independência jurídico-registral deriva da própria externalidade da função, ou seja, do fato mesmo de que sua autoridade se exercita com independência da soberania política. Em vez de pensar-se em relacionamento hierárquico entre a Administração Pública e os registradores e notários, a imagem que preside essa relação é a reticular, como resultado de que as competências se partilham, de modo que há toda uma esfera de poderes regulados e exercitáveis pelos próprios delegatários, sem prejuízo de que, na forma do direito posto interno, se possam rever seus julgamentos e controlar suas atividades, segundo um modelo procedimental sólido.
SJ - Nesse ponto, o Judiciário tem intensificado sua atuação…
RD – Tem razão. Sem perder de vista, quero sublinhar isto, que a pós-modernidade é, definidamente, a “era das incertezas” —como a referiu Hobsbawm— ou, em outras palavras, uma era de ambiguidades, reconheço que um dos traços marcantes do novo Estado globalizado é o de uma tendência judiciarizante…
SJ – Mas experimentamos, justamente, um fenômeno de “dejudicialização”, com a entrega, aos notários, de partilhas em sucessões, separações, divórcios…
RD – Claro, Dr. Sérgio, podem objetar-me que recentes medidas brasileiras puseram à mostra algumas inclinações desjudiciarizantes (pense-se, p.ex., na tabelionização dos inventários ou nesta fórmula rápida de demolição das famílias, como é o divórcio express). Trata-se aí de um exemplo da ambiguidade própria do Estado pós-moderno, porque essas medidas desjudiciarizantes vêm ao lado de uma iniludível universalidade da jurisdição, que, da trilha da apreciação defensiva de interesses individuais suscetíveis de lesão, passou —e o fenômeno é global— para uma crescente atuação no âmbito até mesmo dos atos discricionários da Administração Pública. Se considerarmos, em acréscimo, a idéia de hipernorma judiciária —superior, de fato, à própria lei constitucional— que, no Brasil, se consagrou com as súmulas vinculantes, tem-se aí um exemplo muito gráfico de que o Poder Judiciário, para além dos limites ordinários de casos e até mesmo dos relativos raros processos abstratos, exercita agora funções que eram antes próprias do Parlamento e as exerce com prevista eficácia superior à dos resultados dos processos legísticos canônicos.
SJ – Voltando aos Registros Públicos…
RD – …voltando à esfera dos registros públicos, o que se tem visto é o antigo judicialismo administrativo superar-se por uma progressiva jurisdicionalização das questões registrais. Essa superação, a meu ver —sempre é de supor que se observe o due process of law—, apresenta um aspecto interessante: a crescente atuação jurisdicional em casos registrários sinaliza o reconhecimento da independência jurídica da autoridade ad extra, porque o julgamento desses casos não tem nunca demandado o pressuposto de algum concurso obrigatório de prévio controle administrativo-judicial.
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