Em 05/07/2018

IRIB entrevista a professora Dra. Mónica Jardim durante sua passagem pelo Brasil


Após a série de debates nas faculdades de direito (USP, IDP e São Bernardo), o presidente do IRIB, Sérgio Jacomino, entrevistou a professora Dra. Mónica Jardim,docente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.


P – A Sra. enfrentou um tema polêmico: obrigações reais e ônus reais. Como avalia o estado dessa matéria em sede doutrinária?
 
Mónica Jardim – Esse tema foi magistralmente estudado pelo Prof. Doutor Henrique Mesquita na sua tese de doutoramento – defendida no início da década de 1990 – cujo título é precisamente: “Obrigações Reais e Ônus Reais”. Eu, como tive o privilégio de trabalhar com o Prof. Doutor Mesquita, entre 1996 e 2013 na Faculdade de Direito de Coimbra, integro essa matéria na disciplina de Direito das Coisas, na licenciatura em Direito da FDUC. Mas, honestamente, creio que a maioria da doutrina tem andado bastante esquecida da temática em apreço.
 
P – Os institutos jurídicos da civilística tradicional podem sofrer abalos com a influência dos sistemas da commom law?
 
Mónica Jardim – Sempre que o legislador nacional importa institutos que são estranhos ao seu ordenamento deve adaptá-los à sua realidade (jurídica, social, econômica, etc.), respeitando as bases, a estrutura, sistemática, etc. do referido ordenamento. Caso não o faça, obviamente, pode introduzir distorções nos seus institutos. O estudo do Direito Comparado é sempre uma mais valia, mas o legislador nacional, seja de um país da civil law ou da common law, não pode deixar de ter presente a respectiva realidade nacional. Tal é imprescindível em geral, mas, sobretudo, quando se pretende importar um instituto de uma família jurídica diferente, designadamente da common law, pois, recordamos que o sistema anglo-saxônico se baseia numa técnica jurídica específica e numa visão própria das fontes de direito. Tem na base o costume comum a todos os cidadãos (common law). Costume comum que é revelado e aplicado pela jurisprudência, que ocupa um lugar predominante na criação do direito. As decisões judiciais constituem aí a base de toda a ordem jurídica. O precedente fixado pelos tribunais superiores é vinculativo para os juízes inferiores. As leis têm uma função auxiliar, complementar e esclarecedora do sistema do direito comum. Da relevância da jurisprudência e do precedente judiciário como fonte de direito, características desse sistema, resulta a importância da equidade, a predominância da prova oral sobre a escrita e a não distinção entre direito público e privado.
 
P – Como avalia a tendência de se criar uma eficácia real a uma série obrigacional de institutos e figuras de direitos?
 
Mónica Jardim – A questão tem que ser analisada e respondida de forma precisa e minuciosa, pois, caso contrário, a resposta gerará mais equívocos. É preciso ter presente que diversos sistemas registrais admitem o acesso ao Registro de situações jurídicas que não assumem natureza real. Quanto a essas situações, o assento registral, por um lado, não assume uma função constitutiva – ou seja, não condiciona a constituição, modificação ou extinção dos correspondentes direitos “pessoais” – e, por outro, não altera a natureza do direito publicitado, ou seja, não o converte num direito real. Por isso, em rigor, tais figuras obrigacionais não passam a ter eficácia real. Na verdade, o assento registral de um direito pessoal visa, isso sim, uma das seguintes finalidades, consoante o sistema registral em causa: assegurar a mera publicidade-notícia; acrescentar à eficácia típica do fato registrado a oponibilidade deste a terceiros para efeitos de registro que não tenham obtido o respectivo assento com prioridade; assegurar a oponibilidade do direito “pessoal” apenas em face de futuros adquirentes de direitos sobre o imóvel. Assim, por exemplo, no sistema registral suíço que consagra a inscrição constitutiva, de forma expressa, o art. 959 do Código Civil prescreve: “Les droits personnels, tels que les droits de préemption, d’emption et de réméré, les baux à ferme et à loyer, peuvent être annotés au registre foncier dans les cas expressément prévus par la loi. Ils deviennent ainsi opposables à tout droit postérieurement acquis sur l’immeuble”. O sistema registral português admite o registro de situações jurídicas que não assumem natureza real e a inscrição definitiva visa acrescentar à eficácia típica do fato registrado a oponibilidade deste a terceiros para efeitos de registro. Consequentemente, como é evidente, quando um fato desprovido de eficácia em face de terceiros e sujeito a registro não é publicitado, mantém apenas a eficácia que lhe é atribuída pelo direito substantivo (assim, por exemplo, o contrato-promessa a que as partes atribuam “eficácia real” ou eficácia em face de terceiros, o pacto de preferência dotado de “eficácia real”, o arrendamento por mais de seis anos). Por fim, cumpre sublinhar que, se a intenção do legislador, ao admitir o acesso ao Registro de direitos de crédito e de direitos pessoais de gozo, não tivesse sido a indicada – ou seja, acrescentar à eficácia típica do fato registrado a oponibilidade deste a terceiros para efeitos de registro −, por certo teria determinado que os direitos de crédito e os direitos pessoais de gozo que podem aceder ao Registro fossem publicitados por meio de um tipo de assento registral diverso da inscrição definitiva. Quando em causa esteja um conflito entre um direito real não registrado e o direito de um promissário de um contrato-promessa dotado de “eficácia real”, o promissário que obtém o registro definitivo com prioridade vê o seu direito de crédito tornar-se oponível em face de terceiros e, portanto, perante o titular do direito real anteriormente constituído, mas não registrado; no entanto, entendemos que esse direito não se extingue, nem fica onerado, enquanto não for celebrado o contrato prometido. De fato, na nossa perspectiva, tal direito real passa apenas a ser provisoriamente ineficaz perante a pretensão do promissário, uma vez que nada garante, por exemplo, que o crédito do promissário não se extinga por causa diferente do cumprimento (v.g., por remissão) e, nesse caso, claro está, o direito real do terceiro passa a ser plenamente eficaz. Ao invés, caso tal não ocorra, e a pretensão creditória do promissário se mantenha, a ineficácia provisória do direito real incompatível assegura plenamente o promissário. De fato, em virtude dela (da ineficácia), o contrato prometido pode ser celebrado, voluntária ou coativamente, uma vez que não existe impossibilidade de cumprimento. E, uma vez adquirido e registrado o direito pelo até ali promissário, o direito real incompatível torna-se definitivamente ineficaz porque, se tiver um conteúdo mais amplo, passa a estar onerado pelo direito adquirido em virtude da celebração do contrato prometido; por seu turno, se tiver um conteúdo igual ou menos amplo do que este, extingue-se. Em resumo, apenas o registro do direito adquirido em virtude da celebração do contrato definitivo funciona como evento resolutivo da primeira aquisição e conduz à extinção ou contração do direito primeiramente constituído. Por sua vez, quando em causa esteja um conflito entre um direito real não registrado e um direito decorrente de um pacto de preferência dotado de “eficácia real” que tenha por finalidade a aquisição de tal direito real − já anteriormente adquirido por outrem, mas não registrado −,  o preferente que obtém o registro definitivo com prioridade vê o seu direito tornar-se oponível em face do terceiro. No entanto, entendemos que o direito não registrado também não se extingue, ocorre “apenas” que o titular do direito de preferência pode intentar uma ação de preferência, dentro do prazo previsto na lei, para assim exercer o seu direito potestativo de se sub-rogar ao adquirente da coisa, no contrato que este celebrou com o obrigado à prelação. Exercida triunfantemente a preferência, nessa hipótese, segundo o nosso entendimento, contrariamente ao que em regra ocorre, os seus efeitos retroagem, não à data em que o obrigado à prelação alienou a coisa, mas à data do registro do pacto de preferência dotado de “eficácia real” e, portanto, o preferente torna-se o titular do direito real desde essa data. De fato, não concebemos que o preferente possa adquirir em data anterior à do registro do pacto, uma vez que antes da celebração do referido pacto não é sequer titular do direito de preferência e só após obter o respectivo registro o seu direito de preferência se torna oponível a terceiros. No entanto, se, entre a data do fato aquisitivo do direito real não registrado e a data da inscrição do pacto de preferência dotado de “eficácia real”, o titular do direito real (ou seja, o subadquirente daquele que se vinculou à prelação) o tiver alienado ou onerado a outrem que também não tenha obtido o correspondente registro, na nossa perspectiva, o até ali preferente não será prejudicado porque ao obter o registro definitivo do pacto de preferência com prioridade tornou o seu direito oponível também em face de tal “terceiro” e o direito incompatível deste passou a ser provisoriamente ineficaz perante a sua pretensão. Consequentemente, sendo a ação de preferência julgada procedente e obtendo o até ali preferente o registro do direito real, tal direito incompatível (cuja ineficácia esteve, desde a data do registro do pacto de preferência, sob condição resolutiva de não ser proposta e julgada procedente a ação de preferência e registrado o direito, assim, adquirido) tornar-se-á definitivamente ineficaz  e,  portanto,  extinguir-se-á. Por fim, refira-se que, exercida triunfantemente a preferência, sendo o adquirente substituído pelo preferente com eficácia ex tunc, os atos de disposição praticados pelo subadquirente do obrigado à preferência, após o registro do pacto de preferência, passam a ser havidos como disposições a non domino, e, como tais, estarão feridos de nulidade, não podendo prevalecer sobre o direito adquirido pelo preferente (cfr. art. 892.º aplicável por força do art. 939.º e 956.º do Código Civil português). Por seu turno, quando em causa esteja um conflito entre um direito real não registrado e um direito de arrendamento de duração superior a seis anos, o arrendatário que obtém o registro definitivo com prioridade também vê o seu direito tornar-se oponível em face de “terceiros”. Consequentemente, se o senhorio em data anterior tiver transmitido o direito que serviu de base ao contrato de locação (v.g., o direito de propriedade ou o direito de usufruto) ou se tiver  constituído sobre o imóvel um direito real de gozo que possa servir de base ao contrato de locação, porque atribui ao respectivo titular a fruição proporcionada por uma relação locativa (por exemplo, um direito de usufruto), tal direito não se extinguirá, mas o seu titular assumirá a posição de senhorio, vendo assim imediatamente “onerado” o seu direito real. Na hipótese de o senhorio, em data anterior à do registro do contrato de arrendamento, ter constituído a favor de um terceiro um direito real insuscetível de servir de base ao contrato de locação (por exemplo, um direito de uso e habitação), entendemos que o direito não registrado se extingue. Ilustrando: se A constituir a favor de B um direito de habitação sobre o prédio urbano X; B não solicitar o registro; em seguida, A der de arrendamento, por mais de seis anos, o imóvel X a C e este obtiver a respectiva inscrição definitiva, o direito de C prevalecerá, porque inscrito definitivamente em primeiro lugar, uma vez que B e C são terceiros para efeitos de registro (art. 5.º, n.º 4, do Cód. Reg. Pred.).  
 
P – Como avalia a sua participação nos debates acadêmicos na USP?
 
Mónica Jardim – Foi para mim uma honra e um privilégio ter feito a palestra na USP, no evento organizado pelo IRIB e pela USP. A USP é uma faculdade muito reconhecida em Portugal e com fortes vínculos à FDUC onde me licenciei, fiz o mestrado e doutorado e onde sou professora desde que acabei o curso (1992). Por sua vez, o IRIB é um Instituto de Estudos de Registro de qualidade ímpar e com o qual tenho o privilégio de trabalhar desde 2004. Ora o fato de ter participado dos referidos debates acadêmicos e, assim, ter podido discutir com renomados acadêmicos da USP e registradores do IRIB foi, para mim, uma experiência profundamente enriquecedora. Espero que possamos voltar a repetir a experiência por muitas vezes e, inclusive, já revelei ao Senhor Prof. Doutor Celso Fernandes Campilongo o meu desejo de realizar o próximo evento em Coimbra. 
 


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