O registro de Imóveis como instrumento de proteção socioambiental
Artigo da assessora de juiz junto à 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Santa Maria, Ingrid Noetzold de Almeida
Resumo: O presente estudo consiste inicialmente na análise dos princípios constitucionais relacionados ao meio ambiente em especial do princípio da natureza pública da proteção ambiental da informação e do poluidor. Após centra-se na análise do sistema registral imobiliário brasileiro e de seus institutos com o exame da possibilidade de informações ambientais e fatos relacionados ao meio ambiente não previstos em lei constarem em tais assentos proporcionando uma maior publicidade e segurança jurídica a respeito de tais informações ou fatos. Por fim passa-se à verificação de interação desses sistemas jurídicos princípios constitucionais e sistema registral brasileiro como forma de potencializar o bem jurídico por ambos tutelados. A metodologia do trabalho terá cunho transdisciplinar iniciando no direito constitucional passando pelo direito registral culminando pela interação dos institutos.
Sumário: A função registral e a segurança jurídica. Os princípios da taxatividade e da concentração. Princípios ambientais relacionados ao registro de imóveis. A competência normativa das corregedorias de justiça dos estados. A consolidação normativa do estado de São Paulo. Conclusão
A função registral e a segurança jurídica
O Registro de Imóveis tem por função primordial proporcionar segurança para a sociedade a respeito da situação dominial de um determinado imóvel. Quanto mais seguras (e completas) as informações contidas no fólio real, mais se possibilitará o conhecimento sobre o bem, e de todos os seus contornos e características. Nesse sentido, contribui sobremaneira o Registro de Imóveis com o próprio desenvolvimento da sociedade, diminuindo o custo das transações e os riscos de eventuais litígios.
Muito bem enfrenta o tema Francisco de Assis Palácios Criado (p. 124), Registrador Imobiliário na Espanha, ao dizer que “hoje, mais do que nunca o tráfego imobiliário necessita de um pressuposto: CERTEZA. Pois a incerteza e a desordem produzem a falta de progresso em qualquer país”.
No mesmo sentido, o entendimento de Luiz Guilherme Loureiro (p. 271) sobre a publicidade registral:
“O Direito registral imobiliário tem por objeto a publicidade da propriedade de bens imóveis e de outros direitos reais imobiliários, visando a proteção dos titulares de tais direitos reais (publicidade estática) e também a garantia do trafico jurídico dos bens imóveis (publicidade dinâmica). Destarte, a razão de ser do Direito registral é diminuir o risco dos adquirentes de imóveis ou direitos reais a eles relativos, por meio de uma maior segurança jurídica no trafico imobiliário e, consequentemente, diminuindo os custos da transação e contribuindo para a diminuição dos litígios envolvendo imóveis.”
Questiona-se, entretanto, como se buscar essa certeza se existem inúmeras informações (não somente ambientais, mas aqui o foco são essas) que são deixadas à margem do Registro de Imóveis?
Nesse sentido, deve se ter presente a modificação do conceito da propriedade, a partir da Constituição Federal de 1988, como destaca a doutrina de Marcelo Augusto Santana de Melo (p. 29):
“A CF, ao instituir em cláusula pétrea a função social da propriedade (art. 5º, XXIII) e ao declarar que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225), atribui ao Registro de Imóveis características que outrora não possuía. Dentre elas, está a necessidade de incorporação do conceito de função social da propriedade e do meio ambiente, percepção claramente observada pelo legislador no Estatuto da Cidade e na legislação ambiental. (…)
Esse é o conceito tradicional do Registro de Imóveis; contudo, hodiernamente ele não mais merece somente a função de guardião do direito de propriedade, mas também a novel missão de guardião da função social da propriedade, nesta incluída a ambiental. Cabe observar que a facilidade natural de concentração das informações imobiliárias e o fato de se tratar de órgão constitutivo da propriedade por meio do registro levaram o Registro de Imóveis, no decorrer dos anos, a exercer funções atípicas como fiscalizar o recolhimento de tributos (imposto predial e territorial urbano, imposto de transmissão de bens imóveis, imposto territorial rural, entre outros).”
A falta de informações de natureza ambiental no fólio real é evidente gerador de incertezas. Em quais e quantos órgãos um potencial comprador de um imóvel deve buscar informações para ter conhecimento de todas eventuais pendências ambientais sobre o bem? Qual o custo dessa busca? Não seria mais fácil que essas informações de natureza ambiental viessem a ser informadas no fólio real para o conhecimento do possível adquirente?
Um exemplo interessante da problemática pode ser evidenciado na apelação cível n. 2009.005843-1[1] do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, cujo relator fora o Desembargador Luiz Fernando Boller. No caso em questão foi realizada a alienação de lotes integrantes de um loteamento urbano que se encontrava aprovado pelo órgão ambiental estadual (no caso a FATMA), mas que havia sofrido embargo do IBAMA poucos dias antes da alienação. Ou seja, o alienante tinha conhecimento de que pairava sobre o imóvel um embargo de órgão ambiental, mas, não obstante, realizou a alienação sem mencionar tal pendência. Posteriormente, foi ajuizada ação civil pública pelo Ministério Público Federal com objetivo de declarar a nulidade da licença ambiental concedida pela FATMA, bem como condenar o proprietário à recuperação integral do dano ambiental. Tanto o embargo do IBAMA, como a ação civil pública, resultaram na inutilidade dos lotes para a finalidade pretendida pelo adquirente, ou seja, a construção de residências. Com base no “dolo negativo” (art. 147 do Código Civil), o Tribunal anulou o negócio jurídico e determinou o restabelecimento das partes à situação original, com a devolução dos valores pagos aos compradores.
Trata-se de caso emblemático, pois o loteamento encontrava-se licenciado pelo órgão ambiental estadual. No momento da aquisição, todavia, pairava sobre o imóvel embargo ambiental pelo IBAMA, que não era, na época, de potencial conhecimento dos adquirentes. Como se precaver de um caso como este? No mínimo o potencial comprador teria que diligenciar perante os órgãos federais de todos os entes federativos e perante a Justiça Federal e Estadual, cível e criminal. Mesmo assim, ainda não conseguiria informações sobre o embargo em questão. O custo desse cuidado é inegável, e poderia ser facilmente evitado com a realização de um ato registral por parte no IBAMA no Registro de Imóveis, tão logo efetivado o embargo.
Torna-se evidente, neste caso em concreto, o quão importante para a segurança jurídica buscada pelo Registro de Imóveis se mostra a inserção de informações a respeito de passíveis ambientais existentes.
Deve se ter presente que já existem informações ambientais sujeitas aos registros imobiliários, como a Reserva Legal Florestal (art. 16 do Código Florestal) e a Servidão Ambiental (art. 44 – A) do Código Florestal – institutos eminentemente relacionados à propriedade rural. Todavia, estas não se mostram suficientes, sendo possível que se faça constar no Registro de Imóveis informações outras, ainda que decorrentes de situações jurídicas não consolidadas, mas que podem gerar efeitos na propriedade, tais como a existências de áreas contaminadas, autuações ambientais, ações penais por crimes ambientais, ações civis públicas, dentre outras.
Os princípios da taxatividade e da concentração
O princípio da taxatividade é um dos princípios basilares do registro imobiliário. Segundo ele, somente podem ter acesso ao fólio real os atos que previstos expressamente em lei, mais especificamente, no artigo 168 da Lei n° 6.015/73. Com base nisso, evita-se que conste no Registro de Imóveis atos irrelevantes e que visem apenas causar prejuízos ao detentor de um direito real.
Este princípio, contudo, vem sofrendo relativização com a introdução no direito registral brasileiro do princípio da concentração. Esse princípio foi sendo desenvolvido no Brasil pelos estudos de Décio Erpen, Desembargador aposentado do TJRS, e de João Pedro Lamana Paiva, registrador imobiliário em Porto Alegre. Veja-se como Paiva (apud Melo, p. 38) define o princípio em questão:
“(...) nenhum fato jurígeno ou ato jurídico que diga respeito à situação jurídica do imóvel ou às mutações subjetivas, pode ficar indiferente à inscrição na matrícula. Além dos atos translativos de propriedade, das instituições de direitos reais, a ela devem acorrer os atos judiciais, os atos que restringem a propriedade, os atos constritivos (penhoras, arrestos, sequestros, embargos), mesmo de caráter acautelatório, as declarações de indisponibilidade, as ações pessoais reipersecutórias e as reais, os decretos de utilidade pública, as imissões nas expropriações, os decretos de quebra, os tombamentos, comodatos, as servidões administrativas, os protestos contra a alienação de bem, os arrendamentos, as parcerias, enfim, todos os atos e fatos que possam implicar a alteração jurídica da coisa, mesmo em caráter secundário, mas que possa ser oponível, sem a necessidade de se buscar alhures informações outras, o que conspiraria contra a dinâmica da vida”.
A ideia lançada por esse princípio é que devem ser atraídas ao fólio real todas as informações diretamente relacionadas ao direito inscrito e que tenham consequências diretas sobre sua extensão e qualificação. Ainda que tais informações sejam apenas declaratórias, sem consequências práticas que não a mera publicidade.
Esse princípio ganha particular importância na proteção ambiental. A grande parte das informações que são relacionadas a passivos ambientais são meramente informativas, não se relacionando com a formação do direito propriamente dito. Não obstante, tem consequências inegáveis no que tange à qualidade do direito e eventuais passivos pendentes.
Marcelo Augusto Santana de Melo (p. 41) trata da questão:
“O sistema de registros públicos brasileiro, e em especial o Registro de Imóveis, tem-se tornado exemplo para o mundo, principalmente por sua seriedade e eficácia, de sorte que o efeito da concentração deve ser aplicado somente em casos de que a publicidade é necessária, especialmente em situações que possam trazer alguma limitação ou restrição ao direito de propriedade. Nesse propósito, questões ligadas ao meio ambiente se enquadram perfeitamente, pois além de ordem pública estão protegidas pela CF. O princípio da publicidade ambiental também corrobora a possibilidade de o Registro de Imóveis averbar determinadas informações. Foi esse princípio que trouxe ao Registro de Imóveis a possibilidade de averbação de reserva legal para imóveis rurais e do ato definitivo de tombamento de bens imóveis.
Assim, entendemos que os atos registráveis (latu sensu) não são taxativos, malgrado os direitos sejam numerus clausus, aplicando-se o efeito da concentração para interpretar o art. 246 da Lei n. 6.15/73, permitindo a averbação de qualquer ato que altere o registro, outorgando publicidade para casos não expressamente autorizados por essa lei; mas que, de qualquer forma, mesmo reflexamente, possam limitar o direito de propriedade ou ainda de grande relevância para o direito inscrito, justificando o ingresso por meio de averbação de institutos decorrentes do direito ambiental, estabelecendo-se uma fusão entre a publicidade ambiental e registral.”
Percebe-se, dessa forma, a importância de se mitigar a taxatividade registral, em prol da possibilidade de acesso ao fólio real de informações de natureza ambiental não expressamente tipificadas na legislação.
Fonte: Âmbito Júrido
Em 1.8.2015
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