TJRS: Revogada doação de imóvel por ingratidão dos beneficiados
Com a anuência dos filhos, idosa havia doado, com reserva de usufruto, os bens que lhe pertenciam
Por conta da ingratidão e da inexecução do encargo, a Justiça Estadual revogou a doação de imóvel, com reserva de usufruto, feita por uma idosa em favor de um casal do interior do Estado em troca de companhia e cuidados. A decisão unânime dos integrantes da 17ª Câmara Cível do TJRS confirmou a sentença proferida em 1º Grau na Comarca de Marcelino Ramos. Com a decisão, os autores da ação, uma idosa e seus filhos, conseguiram anular a escritura pública de doação.
Caso
Os autores ajuizaram ação anulatória contra um casal que veio a residir, na condição de usufrutuário, em área de propriedade da matriarca da família. Segundo os autores, a genitora e seu esposo possuíam três imóveis rurais, sendo que sobre um deles foi construída uma casa. Após o falecimento do cônjuge, coube à esposa, em razão de sua meação, além da moradia, partes de dois lotes.
Por conta do falecimento do marido, a esposa e os filhos permitiram que os requeridos passassem a residir na propriedade. Com a anuência dos filhos, a idosa doou aos requeridos, com reserva de usufruto, os bens que lhe pertenciam. Nesta linha, destacaram que por determinado período os demandados dispensaram certa dedicação à doadora.
No entanto, com o passar do tempo, o comportamento deles mudou radicalmente, tendo a doadora de sair de casa para morar com os filhos, razão pela qual os autores promoveram ação de notificação e de reintegração de posse.
Segundo os autores, embora a escritura pública seja omissa nesse ponto, a doação com reserva de usufruto vitalício deu-se sob a condição e encargo de que os donatários deveriam cuidar da doadora. Suscitaram a ocorrência de ingratidão do donatário e inexecução do encargo, nos termos do artigo 555 do Código Civil. Assim, invocaram a nulidade da doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência, forte no artigo 548 do Código Civil. Pleitearam a procedência da ação, pretendendo seja revogada a doação.
Citados, os beneficiados com a doação (donatários) contestaram alegando, em suma, que respeitam a posse da autora, porém discordaram das acusações de maus tratos. Sustentaram que o pedido de revogação foi motivado por ciúmes e inveja dos filhos da doadora. Afirmaram que sempre buscaram a reconciliação, sendo que todas as tratativas restavam frustradas em decorrência da má-fé dos autores. Sustentaram que a doação com reserva de usufruto não possuía encargo algum, assim como nunca houve nenhum ato de ingratidão. Neste sentido, destacaram, ainda, a inocorrência de doação inoficiosa, prevista nos artigos 548 e 549 do Código Civil, uma vez que a doação ocorreu com a anuência de todos os herdeiros.
Sentença
Em 1ª Instância, o juiz de Direito Eduardo Marroni Gabriel julgou procedente a ação anulatória a fim de revogar a doação. O magistrado destacou que a doação somente pode ser revogada por ingratidão do donatário ou por inexecução do encargo, conforme disciplinado pelo artigo 555 do diploma civil.
Segundo o Juiz, a escritura pública caracteriza um contrato de doação pura e simples, com reserva de usufruto vitalício, sem estipulação de qualquer encargo. No entanto, o exame acurado da prova testemunhal comprova a existência do encargo, embora ajustado verbalmente como condição para a doação, consistente na incumbência dos donatários de cuidarem da doadora.
Neste contexto, a própria requerida reconheceu, em seu depoimento pessoal, a existência do encargo, no sentido de que deveria cuidar da doadora, o que, por si só, tornaria desnecessária a exigência de outras provas acerca da questão, conforme regra contida no artigo 334, inciso II, do Código de Processo Civil.
Diante desse quadro, é possível concluir que houve a inexecução do encargo, consistente na incumbência dos requeridos em cuidarem da demandante, diz a sentença. Os depoimentos trazidos aos autos permitem concluir que a doadora era maltratada pelos réus, fato confirmado pelas comunicações de ocorrência acostadas ao feito e pela necessidade de ajuizamento de ação de reintegração de posse para retomada do imóvel pela idosa.
Inconformados, os réus recorreram ao Tribunal sustentando, em preliminar, a nulidade do depoimento prestado em audiência pela ré sob o argumento de que fora tomado de forma diversa da prescrita em lei. No mérito, sustentaram estar equivocado o entendimento do Juízo de origem uma vez que na escritura pública de doação nenhum encargo foi estipulado, o que torna impossível sua revogação por inexecução do ônus.
Apelação
No entendimento da relatora, Desembargadora Elaine Harzheim Macedo, o recurso não merece ser provido. Segundo ela, a preliminar de nulidade do depoimento da ré deve ser rejeitada diante do silêncio da parte ou seu procurador quando da realização do ato. Como se tratava de audiência, caberia à parte prejudicada, a teor do parágrafo 3º do art. 523 do CPC, manifestar o seu inconformismo imediatamente, na forma oral, através do agravo retido, diz o voto. Nada disso foi feito, estando a questão abrigada pela preclusão.
Quanto ao mérito, a relatora ressaltou tratar-se, infelizmente, de mais um caso em que alguém vulnerável do ponto de vista emocional e até físico, dependente de afeto e já com idade avançada, resolve doar seu patrimônio, ou parte dele, a pessoas em quem confia, sob o compromisso de prestar-lhe atenção e cuidado. É importante destacar ser possível o reconhecimento do encargo estipulado verbalmente entre as partes e o seu descumprimento e, em decorrência, a anulação do ato jurídico. Para tanto, indispensável apenas prova inequívoca da estipulação do encargo e de seu descumprimento, diz o voto.
No caso em tela, não só a prova documental, mas principalmente a oral produzida nos autos, demonstra, de forma cristalina, que a autora efetivou doação com encargo verbal, bem como o desatendimento do ônus por parte dos destinatários, afirmou a relatora. O que se verifica é o descaso dos réus para com a doadora, conduta que caracteriza descumprimento do encargo assumido. Assim, demonstrado o descaso com que foi atendida nas suas necessidades (encargo de cuidar, acompanhar e dar atenção), outra não pode ser a solução que não reconhecer a procedência do pleito de revogação de doação e de anulação de escritura pública de doação.
Participaram do julgamento, além do relator, os Desembargadores Luiz Renato Alves da Silva e Bernadete Coutinho Friedrich.
Fonte: TJRS
Em 18.07.2011
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