Em 24/02/2017

“A concentração é um meio de se atingir aquilo que efetivamente foi a modificação mais relevante trazida pela nova lei: o reforço da eficácia do registro”


O registrador de imóveis em Paraguaçu Paulista/SP, diretor de Assuntos Internacionais do IRIB e especialista na Lei nº 13.097/2015, Ivan Jacopetti, concedeu entrevista exclusiva para o Boletim Eletrônico


Por Juliana Affe

IRIB: Qual a modificação mais relevante para o sistema registral imobiliário brasileiro trazida pela Lei nº 13.097/2015?

    Ivan Jacopetti: Antes de responder a esta pergunta, é necessário que se contextualize o surgimento das disposições presentes na Lei nº 13.097. Esta lei – que surgiu por conversão da Medida Provisória nº 656 – foi gestada em um contexto de estímulo ao mercado imobiliário, e, naquilo que toca ao registro, com um propósito manifesto de aumento da segurança jurídica e diminuição da assimetria de informações. Ou seja, tentar assegurar, tanto quanto possível, que o alienante e o potencial adquirente de um determinado imóvel tenham as mesmas informações sobre a sua situação jurídica. Isso se fez por meio de um aumento da eficácia do registro, em sentido positivo, pela ideia de que a situação jurídica constante do registro vale e merece confiança; e em sentido negativo, pela ideia de que circunstâncias que possam repercutir na situação jurídica do imóvel e que não constem do registro são ineficazes contra os potenciais adquirentes. Isso se faz pela chamada “concentração”, ou seja, uma determinação legal de que quem pretenda opor certa situação jurídica a eventuais credores ou adquirentes do imóvel, deverá leva-la ao registro. Destaque-se que, sem isso, é virtualmente impossível se ter plena segurança em uma aquisição. Se o alienante omite a circunstância de que realizou negócios, ou de que teve empregados, em certa localidade – especialmente em outros estados que não o de seu domicílio – será muito difícil para o adquirente ter conhecimento da existência de eventuais ações lá ajuizadas. No entanto, a concentração é um meio de se atingir aquilo que efetivamente foi a modificação mais relevante trazida pela nova lei: o reforço da eficácia do registro.

É possível sustentar que a inscrição agora gera efeitos materiais (fé pública registral)?

Parece-me que sim, por conta do disposto nos artigos 54, parágrafo único, e 55 da lei. Diz o parágrafo único do artigo 54 – que contem a regra geral, já que o artigo 55 tratará de uma situação especial – que “não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel”. Há algumas exceções relevantes, mas a regra geral é essa. Quem poderia opor ao terceiro adquirente uma situação jurídica não constante da matrícula, inclusive para fins de evicção? Há várias possibilidades, entre elas a de alguém que, por alguma razão, pretenda ser o verdadeiro proprietário do bem. Imagine-se que um terceiro, de boa-fé, adquira o bem de quem figurava no registro como titular, mas que, por um defeito de seu título, não era realmente o proprietário do bem; e então surge o verdadeiro proprietário, e ajuíza ação reivindicatória. O que o parágrafo único está dizendo é que nesse conflito prevalecerá o direito do terceiro adquirente, ainda que o reivindicante tivesse um direito legítimo sobre o bem; e ainda que quem alienou o bem ao terceiro não fosse o verdadeiro proprietário. Têm-se aí exatamente os efeitos materiais do registro e a fé pública registral: em um conflito entre dois títulos legítimos, o do proprietário espoliado e o do terceiro, opta-se por proteger o terceiro adquirente de boa-fé. O registro tem fé pública e, por isso, oferece uma proteção forte a quem nele confiou; e gera efeitos materiais porque nos casos que estejam preenchidos os requisitos da lei – terceiro adquirente, de boa-fé, que adquiriu de quem figurava no registro como titular, e inexistência de alguma das exceções previstas no próprio parágrafo – poderá criar o direito real mesmo em situações nas quais o título anterior na cadeia filiatória do bem era defeituoso.

E os adquirentes ficam protegidos em caso de aquisição a non domino?

Se preenchidos os requisitos da lei, sim. Produzindo efeitos materiais, o registro acaba caminhando para uma configuração em que atua não apenas como um órgão que gera publicidade, mas que, efetivamente, cria direitos e titularidades reais sobre os bens imóveis, como um ato de soberania do Estado, como diz Fernando Mendez Gonzalez.

E no caso do artigo 55 da lei?

O artigo 55 contém uma situação especial, que, a meu ver, também contempla fé pública e efeitos materiais. Há aqui uma proteção maior ao adquirente, já que não se exige a boa fé do terceiro adquirente. Isso significa que, diferentemente do que ocorre no artigo 54 – em que se pode eventualmente afastar os efeitos da fé pública pela demonstração da ausência de boa-fé do adquirente – na hipótese do artigo 55, quem pretender opor sua situação jurídica terá apenas uma opção, que é a de leva-la ao registro. Não o fazendo, não será possível demonstrar a inexistência de boa-fé do adquirente. E para quais situações a lei optou por eliminar um dos requisitos? Dentro da ideia de estímulo ao mercado imobiliário, os requisitos foram mitigados em se tratando de empreendimentos imobiliários, sejam loteamentos, sejam incorporações. Caberá a quem eventualmente houver sido espoliado pelo empreendimento acionar o loteador ou o incorporador, sub-rogando-se no preço das parcelas. Mas seu direito não atingirá os adquirentes dos lotes e unidades. A lei não diz isso expressamente, mas me parece que, dada a sua finalidade, isso somente faz sentido na primeira aquisição, ou seja, na situação em que alguém adquire o lote ou a unidade autônoma diretamente do loteador ou do incorporador. Não há sentido em se oferecer uma proteção especial ao adquirente de lote ou de unidade autônoma que já está no mercado fora dessa situação.   

E esse afastamento da evicção nesses casos previstos nos artigos 54, parágrafo único, e 55 modula a regra do art. 1.247 do Código Civil?

Sim. O caput do artigo 1.247 ainda permanece em vigor, já que se o registro não exprimir a vontade, pode o interessado ainda reclamar que se retifique ou anule. No entanto, há uma modulação importante: nos termos da Lei nº 13.097, essa retificação ou anulação poderá ser feita somente se não prejudicar terceiros adquirentes de boa fé. Se o defeito estiver na última transmissão registrada, admite-se que o prejudicado pleiteie a retificação ou mesmo o cancelamento do registro; mas, se o bem circulou, essa eventual retificação ou anulação não poderá atingir o terceiro adquirente, salvo se, quando houve a sua aquisição, já constasse da matrícula informação de que estava em curso ação judicial a respeito, o que afastaria a eficácia do registro. Já o parágrafo único do artigo 1.247, me parece, está revogado: a possibilidade ali afirmada de se reivindicar o bem do terceiro adquirente independente de seu título ou de sua boa-fé, que serviu, antes da Lei nº 13.097, para estabelecer no Brasil, sem qualquer dúvida, um sistema de registro sem fé pública, é absolutamente incompatível com os artigos 54, parágrafo único, e 55 da nova lei, que é de mesma hierarquia e posterior.

O art. 844 do CPC, com a mesma redação do código anterior, já não previa uma presunção de "caráter absoluto" de conhecimento por parte de terceiros? O art. 252 da LRP já não gerava um efeito mais potente do que uma mera presunção relativa? O que é novo?

Diz o artigo 844 do novo Código de Processo Civil que incumbe ao exequente providenciar a averbação da penhora e do arresto, para presunção absoluta de conhecimento de terceiros. Ou seja, uma vez inscrita a penhora, não pode ninguém alegar seu desconhecimento. Isso decorre da própria essência da publicidade registral. É atributo da publicidade registral a sua cognoscibilidade, ou seja, a aptidão para que os seus efeitos se produzam mediante um conhecimento potencial – ainda que não atual – daquilo que consta do registro. Isso já estava no sistema, mesmo antes da previsão pelo CPC. O que, me parece, é novo, ao menos no âmbito legal – já que isso, em algumas situações, já vinha sendo aplicado pela jurisprudência – é o aspecto negativo, ou seja, a inoponibilidade da situação jurídica não inscrita. Ninguém pode alegar o desconhecimento da situação jurídica inscrita na matrícula, mas também não tem o dever de conhecer a situação jurídica não inscrita. O beneficiado pelo fato potencialmente inscritível, pode-se dizer, tem um controle maior da situação do que o terceiro adquirente. Por isso, segundo o novo paradigma, presente na Lei n° 13.097, deixa de haver, ou ao menos mitiga-se, um dever de diligência do adquirente, e cria-se um ônus jurídico a quem queira ver sua situação jurídica sendo oponível a terceiros. Já o artigo 252 da Lei de Registros Públicos contém a chamada “legitimação registral”, que não se restringe a uma mera presunção processual – já que gera efeitos de direito material – e que segue existindo. A legitimação é em todo compatível com a fé pública, e com ela convive na Alemanha, Suíça, Espanha etc. Atendem a necessidades diferentes. A diferença em relação à fé pública surge nas situações em que havia um defeito na cadeia filiatória – por exemplo, um título nulo que logrou ser registrado – e o bem circulou, caso em que não se admitirá que esse defeito atinja o terceiro adquirente. Sem a fé pública, combinando-se o artigo 252 da Lei de Registros Públicos com o parágrafo único do artigo 1.247 do Código Civil, tinha-se que o terceiro, em tal caso, poderia perder o bem, a despeito de vigorar a legitimação.   

Alguns sustentam que  Lei nº 13.097/2015 foi parcialmente revogada pelo novo Código de Processo Civil? O senhor concorda? Comente.

Quanto a essa questão, em primeiro lugar, se deve restringir o alcance da controvérsia. A Lei nº 13.097 contém disposições com natureza processual, mas também compreende disposições com natureza material, de Direito Civil. É o caso da fé pública prevista nos artigos 54, parágrafo único, e 55. O cerne da controvérsia, portanto, é uma questão processual: uma vez que o artigo 792, inciso IV, do novo Código de Processo Civil – lei de mesma hierarquia e posterior à Lei nº 13.097 - não menciona a averbação na matrícula de outras ações judiciais aptas a reduzir o proprietário à insolvência, como requisito de consideração da alienação em fraude à execução, serão essas ações oponíveis ao terceiro adquirente mesmo não mencionadas na matrícula? A conclusão positiva é incoerente do ponto de vista sistemático. Se a pendência de processo de execução - mais grave, pelo estágio em que se encontra – tem de estar averbada na matrícula para que se considere fraudulenta a alienação, não há sentido em se considerar fraudulenta uma alienação na pendência de outro tipo de ação, da qual não se deu publicidade registral. Além disso, considerar em fraude à execução uma alienação nessas circunstâncias transfere ao adquirente um dever de diligência que o parágrafo 2º do próprio artigo 792 somente atribui quanto aos bens não sujeitos ao registro. Assim, me parece que segundo uma compreensão sistemática do previsto no novo CPC, não é adequado o entendimento de que teria sido revogados, nem mesmo em parte, os dispositivos presentes na Lei nº 13.097 que tratam do Registro de Imóveis.  

Quanto às hipóteses de registro e averbação previstas na Lei nº 13.097, em que momento processual a inscrição de citação em ações reais ou pessoais reipersecutórias pode ser feita na matrícula? Deve-se exigir decisão judicial? Como ficam os direitos do proprietário do bem?

A maioria das hipóteses previstas nos incisos do artigo 54 da Lei nº 13.097 já vigorava mesmo antes do seu advento. De maneira geral, as constrições judiciais – penhora, arresto, sequestro – dependiam, e ainda dependem, de decisão judicial específica que as ordenasse. Já a inscrição acerca da existência de ações judiciais, tais como as ações reais e pessoais reipersecutórias, e as execuções ou processos em fase de cumprimento de sentença não dependiam, como ainda não dependem, de decisão judicial específica, mas tão somente de comprovação, mediante certidão expedida pelo ofício judicial, de que tinha havido a citação nas ações reais ou pessoais reipersecutórias, ou da distribuição nas ações executivas. Quanto a essas últimas, o novo Código de Processo Civil trouxe uma pequena mudança, exigindo que sejam não apenas distribuídas, mas admitidas pelo juiz. Em todo caso, o juiz não apreciará a conveniência de sua inscrição no registro. Essa análise cabe ao exequente, que, com razoabilidade, deverá solicitar a averbação em tantos imóveis quantos bastem para proteger o seu crédito; e o abuso de direito, neste caso, se causar dano, ensejará dever de indenizar. É essa a salvaguarda do proprietário do bem. Por outro lado, a Lei nº 13.097 criou uma nova possibilidade de averbação de ação judicial, que serve como um “fecho” do sistema: a averbação de qualquer outro tipo de ação judicial, que, a critério do juiz, possa reduzir o proprietário do bem à insolvência. Nestas haverá, portanto, decisão judicial deferindo ou indeferindo o pedido de averbação. Contudo, surge um novo problema, ainda sem solução: supondo-se que o autor de certa ação judicial requeira a averbação e seu pedido seja negado, sua situação jurídica será oponível a terceiros? A resposta, fácil, é não; no entanto, deve-se recordar que uma regra básica da inoponibilidade dos direitos não inscritos, tal como enunciada pela professora da Faculdade de Direito de Coimbra Mónica Jardim, é a de não ser oponível a terceiros um direito que poderia ter sido inscrito e não foi, punindo-se quem se quedou inerte. Esse é um ponto importante, que merece um estudo mais profundo.   

Após realizada a dita averbação, o imóvel poderá ser livremente alienado?

Sim. Essas várias hipóteses de averbação mencionadas no artigo 54 da lei, como regra, não implicam a inalienabilidade do imóvel. Servem, apenas, para tornar oponível aos terceiros a situação jurídica de onde derivam. Tendo os terceiros ciência da existência do fato – seja, por exemplo, uma penhora, a citação em uma ação real, o ajuizamento de uma execução ou de uma outra ação judicial qualquer que, a critério do juiz, possa implicar a insolvência do proprietário etc – poderão avaliar, segundo sua conveniência, os riscos envolvidos na aquisição do bem ou na sua aceitação como garantia real. Essa é a ideia da redução na assimetria de informações: tendo alienante e adquirente, tanto quanto possível, conhecimento das circunstâncias jurídicas que afetam o negócio, poderão discutir as suas condições com mais previsibilidade e segurança.

As normas do extrajudicial de muitos tribunais seguem exigindo que, quando da lavratura de uma escritura pública, as partes apresentem ao tabelião uma série de certidões, por exemplo, dos feitos ajuizados. Essas exigências devem permanecer?

A determinação da exigência dessas certidões pelos tabeliães é matéria da disciplina administrativa de sua atividade, pelo que me parece prudente que as sigam exigindo até que sobrevenha modificação nas normas de seus respectivos estados. No entanto, a questão principal nesse tema é outra: suponha-se que um certo adquirente dispense quaisquer certidões, e que em uma delas – por exemplo, a de feitos cíveis correndo na comarca de domicílio do alienante – constasse a existência de uma ação judicial que pudesse repercutir na aquisição, mas que não constara da matrícula do imóvel. Estará o adquirente protegido? Parece-me que, pelo espírito da lei e clareza do que diz o artigo 54, sim. No entanto, alguém poderia objetar: estava de boa fé quem dispensou as certidões? Parece-me que, nesse ponto, essa discussão não se coloca. Diz o artigo 54, caput, que os negócios jurídicos são eficazes em relação a todas as circunstâncias mencionadas nos seus incisos I a IV, desde que essas não tenham sido inscritas. Ou seja, quem pretendia ter direitos sobre o imóvel com base nessas circunstâncias, podia leva-las ao registro, e não o fez, não poderá opô-las a qualquer terceiro. Vejo aqui uma situação distinta daquela prevista no parágrafo único, que é mais abrangente, mas mais rigorosa, ao exigir a boa-fé do adquirente. Assim, o fato de alguém dispensar as certidões não deverá implicar a perda da proteção deferida pela lei. 

Fonte: Assessoria de Comunicação do IRIB

Em 24.2.2017



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