Em 29/08/2019

“A Lei Geral de Proteção de Dados em debate – proteção de dados e os Registros Públicos” – Entrevista com Dr. Ivan Jacopetti do Lago


Sérgio Jacomino, Presidente do IRIB, convidou o Dr. Ivan Jacopetti do Lago para uma pequena entrevista.


A Escola Paulista da Magistratura (EPM), em parceria com o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (Irib) e a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo (Arpen/SP) promovem, nos próximos dias 2 e 3 de setembro de 2019, o evento “A Lei Geral de Proteção de Dados em debate – proteção de dados e os Registros Públicos”, com a participação de juristas e especialistas no tema da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709, de 14/8/2018).

Para esta edição, Sérgio Jacomino, Presidente do IRIB, convidou o Dr. Ivan Jacopetti do Lago para uma pequena entrevista. Dr. Ivan Jacopetti do Lago participará do módulo “Ontologia registral – sujeitos de direito e suas representações nos Registros Públicos, buscando uma definição ontológica de pessoa registral e estabelecendo um contraste com a pessoa natural. Qual o papel dos Registros Públicos na revelação do dinamismo das mutações jurídico-pessoais?”

Ivan Jacopetti do Lago é bacharel, mestre e doutor pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CENOR e pela Universidade Autonoma de Madri (CADRI 2015). Diretor de Relações Internacionais do IRIB e Coordenador da Revista de Direito Imobiliário - RDI. Diretor da Uniregistral. Oficial do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos de Paraguaçu Paulista - SP.

Sérgio Jacomino: Sem delongas, vamos direto ao ponto: como conciliar o conceito tradicional de ampla publicidade registral com a tutela da privacidade? Estes não são binômios tensivos? Como conciliar e balancear esses conceitos na perspectiva da LGPDP e LRP?
Ivan Jacopetti do Lago:
É preciso calibrar, e, de certo modo, “testar os limites” do que seria a publicidade registral. O pedido incondicionado previsto pelo artigo 17 da Lei 6.015 diz respeito a “certidão do registro” – o que, penso, deve ser interpretado como certidão de um registro específico dentre aqueles inscritos no cartório. Já o fornecimento “das informações solicitadas” – meio muitíssimo mais abrangente de exercício da publicidade, e que não conta com o permissivo expresso de seu caráter incondicional  – deverá ser compatibilizado com a LGPD, e, para isso, me parece, é fundamental a compreensão de que a finalidade dos dados recebidos pelo registro de imóveis é a criação de titularidades reais e publicitação da situação jurídica dos imóveis. O fornecimento não consentido dos dados em âmbito estranho a esta finalidade, me parece, é ilegítimo.      

SJ: A LGPDP igualmente alude ao consentimento como “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada”. O inc. I do art. 7º prevê que o tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado “mediante o fornecimento de consentimento pelo titular”. Como colher a manifestação de vontade? Pode-se cogitar uma presunção legal de que os dados mantidos nos Registros Públicos são, por definição, insuscetíveis de apropriação e posterior tratamento (inc. X do art. 5º)? 
IJL: Acho que isto deve ser lido em harmonia com o artigo 7º, parágrafo 4º, da LGPD, que dispensa a exigência do consentimento do titular para os dados que ele próprio tornar manifestamente públicos. Ora, levar um título ao registro é exatamente dar publicidade aos dados nele contidos. Por outro lado, o mesmo parágrafo resguarda a observância dos demais princípios mencionados na lei, pelo que, ainda assim, os princípios mencionados no parágrafo 3º, por exemplo  - finalidade, boa-fé, interesse público – deverão ser respeitados.

 SJ: A tecnologia baseada em ontologia digital permite a definição de tipos, classes e propriedades de entidades formais para o fim de se buscar o inter-relacionamento não só interno, mas com elementos produzidos em fontes externas. Com base nessa tecnologia, os registradores podem combinar dados produzidos alhures para aperfeiçoar a informação registral (geolocalização, bases gráficas, biometria, timestamping, CPF/CNPJ, dados intrassistêmicos das especialidades etc.).  Se é defensável a utilização de dados produzidos alhures, a inversa será justificável? (isto é: os Registros Públicos podem compartilhar dados com outras instâncias públicas ou privadas? Inclusive monetizando-os?).
IJL: Este é um ponto complicado. Poderia um registrador emitir uma certidão que de algum modo contemplasse estes dados externos? Me parece que, na atual conformação do sistema brasileiro de registro, não. Poderia então fornecer informações não certificadas que envolvessem estes dados externos? As informações, propriamente, me parecem que não; mas poderia ele utilizá-las, por exemplo, para realizar buscas, e encontrar registros específicos, ficando bem claro que o resultado deste cruzamento de dados - e a informação assim produzida pelo registrador – não estaria revestido pelo princípio da legitimação. Novamente, o fornecimento destas informações pelo registro não pode ser incondicionado, devendo-se respeitar os princípios da LGPD.

SJ: Os registradores públicos lidam com dados sensíveis que exsurgem ou recrudescem com vigor na pós-modernidade. O direito à autodeterminação da personalidade, derivado do princípio da dignidade humana, representam novas realidades que batem à porta. Temas como identidade de gênero, identidade autopercebida, mudança de agnomes indicadores de gênero, mudança de sexo etc., são situações fáticas e jurídicas que repercutem na publicidade registral. É possível construir a ideia de que a publicidade registral deva ser mitigada segundo critérios estabelecidos pelo registrador ou pelo interessado em homenagem ao princípio de proteção aos dados pessoais? É cabível a ideia de publicidade relativa controlada externamente pelos próprios titulares? 
IJL: Acho que aqui cabe a pergunta – por que estes dados estão no registro de imóveis? Muitos deles, como, por exemplo, os nomes, ali estão apenas para realizar a determinação subjetiva do titular do direito sobre o imóvel; já outros, como o estado civil, vão além, repercutindo na própria situação jurídica do bem. Parece-me muito claro que o exercício da publicidade pela cópia chapada da matrícula já é anacrônico, incompatível com as exigências da LGPD. Há dados pessoais nos registros que são redundantes, quanto à determinação subjetiva, e que não repercutem na situação jurídica do imóvel, pelo que, se, por um lado, permanecerão indefinidamente no registro, por outro não deveriam ser tornados públicos pelo registrador sem uma razão específica.  

SJ: Na internet é comum a assunção de identidade múltipla (nicknames ou alternate names)[1], sem qualquer intenção de fraude ou de provocar danos a terceiros. Muitas pessoas são conhecidas por seus heterônimos. É possível pensar nos RP´s assimilando a ideia de tutela e guarda dessa heteronomia como expressão de identidades livremente autodeterminadas? 
IJL: Creio que para o registro de imóveis, o que importa é a determinação do sujeito de direitos que detém as várias titularidades nele contidas. Se o uso destes heterônimos não impedir o conhecimento por terceiros de quem é o sujeito de direitos – porque, por exemplo, o registro de pessoas permite esta vinculação, ou mesmo porque há um elemento unificador, como um número de documento - em princípio ele é compatível com o registro imobiliário. Por outro lado, com isso caminhamos para um futuro com aparência de “distopia de ficção científica”, em que, no fundo, todas as pessoas são números.

SJ: O direito é linguagem e o Registro Público manifestação e irradiação dessa realidade jurídica produzindo efeitos erga omnes. A difusão e cognoscibilidade desses signos se aperfeiçoa por meio de uma semiologia bem determinada e legalmente definida. A pessoa é titular de direitos e obrigações. Uma coisa é a pessoa em si, outra é sua projeção pelos instrumentos registrais. Qual a importância do conceito da “pessoa registral” para a publicidade dos Registros Públicos? Em que medida esses elementos podem ser trabalhados para uma determinação mais precisa dos bens e sua atribuição aos seus titulares? 
IJL: Novamente, o elemento unificador é o “sujeito de direitos”, que pode aparecer no registro em diversas representações – com ou sem um sobrenome, com um RG de um ou outro estado, com um estado civil A ou B, ou mesmo, atualmente, com um sexo X ou Y. Mas, para mim, esta pluralidade de pessoas registrais é uma situação, de algum modo, patológica. Cabe ao registrador encontrar, por traz destas representações, o elemento unificador, e situações haverá que os meios de cognição de que dispõe não serão suficientes, demandando uma retificação judicial.  

SJ: O Registro Público por antonomásia é um sistema de publicidade jurídica. A plena eficácia do direito depende da inscrição, nos casos de inscrição constitutiva. Parte e contraparte de um mesmo fenômeno, é possível repensar o modelo tradicional de constituição e adjudicação de direitos a partir do impacto das novas tecnologias nas atividades? O Registro Público pode ser repensado a partir de seus meios? O “meio é a mensagem”? 
IJL: Creio que nos sistemas de registro de direitos já vamos além da publicidade, e passamos para a própria criação da titularidade real. A publicidade é ferramenta desta criação, já que sem ela a oponibilidade erga omnes é impossível. Há meios melhores e piores de publicidade, sob o ponto de vista tecnológico; e há meios mais e menos compatíveis com a proteção de dados pessoais. No entanto, a melhor publicidade, sob o ponto de vista tecnológico, não produzirá um bom sistema de registro, se as informações tornadas públicas não passarem por um prévio crivo de legalidade. Ter-se-á aquilo que a doutrina estrangeira denomina “rubbish in, rubbish out”, ainda que embalado em um pacote moderno.   

SJ: Como lidar com a tutela da privacidade quando os próprios cidadãos voluntariamente entregam seus dados pessoais para as redes sociais?
IJL:  A solução tem sido a obtenção de consentimento expresso do titular por via eletrônica, o qual de maneira geral é outorgado de maneira irrefletida pelos usuários. Por outro lado, aqui também teríamos uma situação em que alguns dados são tornados manifestamente públicos por seu próprio titular. O importante, em todo caso, é o reconhecimento pelo responsável pela rede social que este consentimento poderá ser revogado a qualquer tempo pelo titular, pelo que deverá estar preparado para receber esta revogação, bem como para implementar os efeitos práticos desta revogação – por exemplo, remover da rede certos conteúdos.



 



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