A aquisição de habitação na França: sistemas alternativos de propriedade
Chantal Moll de Alba
Sumario: I. Sistemas mistos compra-venda–arrendamento: 1 - O contrato de location-accession. 2 – Modelos específicos para aquisição de “habitações sociais”. – II. A propriedade separada do solo e da construção. – III. A “nova propriedade” – IV. “O usufruto locativo social”
Desde a Revolução Francesa, o Direito de Propriedade é um dos mais importantes do Direito francês. Tal como estabelece o artigo 544 do Código Civil francês, de 1804 (o chamado Code Napoléon), o direito de propriedade é o direito de usar e dispor das coisas da forma mais absoluta. Esta concepção de propriedade corresponde não só aos textos legislativos. Também a nível sociológico os franceses se qualificam, na sua maioria, pela propriedade, especialmente quanto à aquisição de moradia.
Os franceses, portanto, são muito afeitos à propriedade imobiliária. Sem embargo, a nível jurídico, têm-se estabelecido diversas formas de alternativas à propriedade. O legislador francês realizou ingente esforço técnico e criativo para idealizar novos modos de aquisição.
A análise destes sistemas jurídicos se reveste de especial interesse neste momento, em vista do atual problema de habitação e o espetacular aumento de seu preço na Espanha. Quiçá o modelo francês possa dar alguma pista aos juristas espanhóis para estabelecer novas vias jurídicas para a aquisição de habitações.
I – Sistemas mistos compra e venda–arrendamento
Na França estabeleceram-se alguns sistemas mistos que consistem numa combinação dos elementos da compra e venda e do arrendamento.
1. O contrato de location-accession
Conforme estabelece o artigo 1 da Lei de 12 de julho de 1984, relativo à location-accession, neste tipo de contrato o vendedor se compromete a transmitir a propriedade de um imóvel a um adquirente, com prévio pagamento parcelado ou com preço de venda postergado, bem como uma renda periódica durante o período de desfrute do imóvel. No contrato deve-se indicar a duração do mesmo e o prazo em que o adquirente poderá exercer sua opção para a aquisição da propriedade.
Trata-se, portanto, de uma espécie de arrendamento com opção de compra. A diferença é que os sujeitos são chamados de vendedor e adquirente. E, além disso, têm, em determinados aspectos, as obrigações decorrentes do contrato de compra e venda. Por sua descrição, esse contrato também poderia assemelhar-se à figura do contrato de compra e venda com pagamento postergado e reserva de domínio. A diferença seria que na location-accession a quantia que se paga periodicamente não corresponde apenas ao conceito do preço da compra e venda, mas também ao conceito de renda. De qualquer forma, o interessante é que na França existe uma regulamentação específica relativa a este tipo de contratos sobre bens imóveis, regulamentação que não existe na Espanha.
São vários os problemas inerentes a esta figura de contrato, em decorrência dos quais a sua utilização, na França, é escassa. O primeiro problema prático está na liberdade para fixar o financiamento. As partes decidem livremente que fração do pagamento, que se realiza periodicamente, se destina ao pagamento da renda e que parte se destina à quitação do preço da venda. Se a parte relativa à renda é muito superior à do preço, o comprador terá que pagar uma quantia muito importante quando efetivar a ação. E isto pode lhe desanimar. Se, pelo contrário, a parte destinada ao preço é muito elevada, então o vendedor assume um alto risco no caso de o adquirente, a final, decidir pela não compra, uma vez que o vendedor terá de devolver todas as quantias recebidas por conta do preço de venda. O adquirente terá desfrutado, portanto, de um imóvel pagando um arrendamento muito baixo.
O segundo problema consiste na falta de incentivos fiscais para este tipo de contratos.
2. Modelos específicos para a aquisição de habitações sociais
O contrato de location-attribution era também uma combinação do contrato de compra e venda e do arrendamento. Mas aplicava-se unicamente à aquisição de moradias sociais promovidas pelas Sociètès Coopèratives d’HLM”. Nesses contratos parcelava-se o pagamento da compra e venda e o adquirente podia efetuá-lo mensalmente, pelo tempo de duração do contrato.
Entretanto, o legislador francês eliminou esta modalidade porque queria evitar que estas organizações dedicadas à venda de habitação social se transformassem em entidades bancárias.
Atualmente existem, na França, três sistemas para se adquirir uma habitação social. Em primeiro lugar, pode-se recorrer à figura geral da location-attribution. Em segundo lugar, pode-se utilizar o sistema de “venda a termo”, isto é, a compra e venda à prazo com pacto de reserva de domínio. Finalmente, as organizações de habitação social podem simplesmente vender, aos atuais arrendatários de seus imóveis, os apartamentos, descontando do preço de venda os aluguéis pagos nos últimos cinco anos.
II – A propriedade separada do solo e da construção
Os autores franceses desenvolveram durante os últimos cinqüenta anos a possibilidade de admitir a propriedade do solo, separada da propriedade superficiária ([1]). Esta concepção teórica foi adotada para regular uma figura como o “arrendamento para construção” (“bail à constrution”). Com este contrato se pretende fomentar a construção tornando mais accessível a aquisição dos terrenos.
Mediante o arrendamento para construção, uma parte adquire um direito real e transmissível, sobre um terreno que pertence ao arrendatário (bailleur), obrigando-se a construir no terreno e a manter as construções, durante a vigência do contrato. O contrato pode ter uma duração entre 18 e 99 anos. Uma vez finalizado o contrato, a propriedade do todo corresponde exclusivamente ao proprietário do solo (bailleur) pelo jogo da acessão. O preço do arrendamento (bail) pode consistir no pagamento de uma renda periódica ou também num pagamento em espécie (entregar a utilização ou a propriedade de partes do imóvel construído).
Este esquema, muito útil ao fomento da aquisição, desde logo cria problemas à compra de habitações. Por isso, quando se utiliza o arrendamento para construção para a edificação de habitação, modifica-se um aspecto substancial. Ao finalizar o contrato, o jogo da acessão favorece o proprietário da construção e não o proprietário do solo. Desta forma, os adquirentes dos apartamentos que se vão construindo têm a tranqüilidade de que, ao final, serão proprietários do todo.
III. A nova propriedade
Esta figura foi inventada nos anos setenta. Mas não teve muito êxito. Estava idealizada para aquelas pessoas que queriam incrementar seu patrimônio e seu futuro importe hereditário a um custo pouco elevado. Para obter um preço inferior ao do mercado (com uma redução de 20 ou 25 por cento), o comprador adquiria o bem mas cedendo, ao vendedor, o direito de usufruto do edifício durante 15 ou 20 anos. Durante esse tempo, o comprador era tão só um nu-proprietário e o vendedor, como usufrutuário, podia, por exemplo, alugar o edifício.
Contudo, este sistema não funcionou por duas razões essenciais. Por uma parte, a vantagem econômica não era suficiente para os compradores e, por outra parte, o comprador, enquanto durasse o usufruto, não podia vender novamente o bem.
IV. l’usufruit locatif social
Apesar do fracasso da “nova propriedade”, nos últimos tempos tem-se utilizado o usufruto para a aquisição de habitação com notável êxito. Isto se deve, seguramente, a duas razões. Em primeiro lugar, à falta de habitações sociais na França. Nos últimos anos construiu-se pouca habitação social e, ademais, esta sempre se concentra em zonas de periferia urbana. Em segundo lugar, existe na França um grave problema com as pensões. São muitas as pessoas que, ante o perigo de uma quebra do sistema de Seguridade Social, desejam obter ganhos paralelos para melhorar ou complementar suas pensões.
O sistema consiste em dividir a venda em duas fases. Na primeira fase, o promotor vende a nua-propriedade do imóvel a aplicadores. O preço da transação é muito reduzido, podendo chegar a cinqüenta por cento do preço de mercado. Depois vende o usufruto temporal sobre esse imóvel a organizações de habitação social. A duração do contrato é de 15 a 20 anos.
Nesse período, o nu proprietário não tem obrigações financeiras relativas ao imóvel. Não o pode utilizar, mas não tem que pagar para sua manutenção. A organização dedicada à habitação social, como usufrutuária, pode alugar os apartamentos a inquilinos de baixa renda.
Ao término do contrato, a plena propriedade é atribuída ao aplicador que poderá começar a receber rendimentos de seu imóvel.
Este sistema é muito benéfico para todas as partes implicadas. O promotor pode obter valiosas subvenções públicas, pois durante 15-20 anos os imóveis que construa estarão destinados a ser habitação social. O comprador-aplicador, por sua parte, adquire, por baixo preço, um bem que poderá ser rentável a partir dos 15-20 anos. Por último, os locatários, pessoas de poucos recursos, podem desfrutar de apartamentos a um aluguel moderado, situados em zonas não necessariamente periféricas, senão inclusive centrais também.
* Chantal Moll de Alba é Doutora em Direito e Professora de Direito Civil da Universidade de Barcelona - [email protected]
** Este artigo se baseia fundamentalmente na conferência realizada pelo Prof. HUGES PERINET-MARQUET, da Universidade de Paris II, no Congreso Internacional “Mercado y Vivienda”, organizado pela Asociación Española de Derecho de la Construcción, de Barcelona, em 3 de outubro de 2003.
[1] Este tema da propriedade separada está explanado, extensamente, no livro La construcción en suelo ajeno: la posible separación de la propiedad inmobiliaria (A construção em solo alheio: a possível separação da propriedade imobiliária), de Chantal Moll de Alba Lacuve, Editorial Difusion Jurídica, Barcelona 2004.
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