Artigo - O Imposto sobre Bens e Serviços proposto na reforma tributária da PEC 45 - Por Sergio André Rocha
A análise neste texto terá como ponto de partida três dos quatro pilares de uma reforma tributária ideal que foi apresentada no primeiro artigo sobre reforma publicado na Conjur.
Preâmbulo
Considerando os avanços do debate sobre a reforma tributária, é importante apresentamos uma análise crítica de uma das principais propostas sob análise: a criação do chamado Imposto sobre Bens e Serviços (“IBS”).
Nossa análise neste texto terá como ponto de partida três dos quatro pilares de uma reforma tributária ideal que apresentei no primeiro artigo sobre reforma publicado na Conjur. Ou seja, examinaremos o IBS da perspectiva do federalismo fiscal, da simplificação do Sistema Tributário Nacional e da justiça. O quarto pilar, que é a projeção para o futuro, se entrelaça com a questão da digitalização da economia, e será objeto de um artigo específico. Como há mais de uma proposta de criação de um IBS, nos dedicaremos neste artigo ao imposto mais amplo, que é o da Proposta de Emenda Constitucional no 45/19 (“PEC 45”).
Um comentário preliminar, que não desenvolverei neste texto, é sobre o nome do imposto. Por que chamá-lo de IBS, quando, e isso ninguém esconde, trata-se de um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) copiado de experiências estrangeiras? Por que não chamar de IVA, usando a nomenclatura usual nos países que têm este tipo de tributo? O nome “Imposto sobre Bens e Serviços” repete os erros da nossa tradição tributária conceitual. Por mais que se tenha pretendido uma base ampla, sempre haverá atividades econômicas não tributadas. Por exemplo, no âmbito do IBS da PEC 45 não há tributação de atividades econômicas financeiras, que hoje sofrem a incidência do PIS e da COFINS. Será que faz sentido isso? Deixo essas questões preambulares para reflexão.
1. IBS e Federalismo Fiscal
Dedicamos nosso terceiro artigo na Conjur ao tema do federalismo fiscal e o IBS. A questão federativa traz consigo o debate sobre a falta de transparência do desenho institucional do imposto.
Com efeito, muito do funcionamento do IBS e do seu Comitê Gestor será definido pela Lei Complementar, cujo texto é desconhecido e não está sendo objeto de discussão. Sem entender exatamente como funcionará o IBS e como será a governança do Comitê Gestor é difícil apresentar uma conclusão assertiva sobre a sua compatibilidade com o sistema federativo brasileiro.
Deixando esta questão de lado, a controvérsia federativa se centra na extinção do ICMS e do ISS, na limitação da competência dos entes subnacionais à fixação de alíquotas (artigo 152-A, § 2º), na uniformidade da alíquota para todos os bens, tangíveis e intangíveis, serviços e direitos (artigo 152-A, § 1º, VI) e na vedação à concessão de benefícios fiscais em geral (artigo 152-A, § 1º, IV).
Parece-nos que a extinção do ICMS e do ISS, assim como as limitações impostas pela PEC 45, não seriam, em abstrato, inconstitucionais. Com efeito, cremos que a redação do artigo 60, § 4º, inciso I, da Constituição Federal respalda esta interpretação, ao estabelecer que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir [...] a forma federativa de Estado”. (Destaque nosso)
Não cremos que a criação do IBS, nos moldes da PEC 45, possa ser considerada, em abstrato, uma medida de abolição da forma federativa de Estado. Contudo, isso pode acontecer em concreto, a depender do desenho institucional do imposto na lei complementar, especialmente no que se refere ao funcionamento do Comitê Gestor.
2. IBS e Simplificação
Talvez a principal justificativa por trás da criação do IBS seja a simplificação do Sistema Tributário Nacional. Tratamos da complexidade do modelo tributário brasileiro no quarto artigo publicado na Conjur. Entendo que há duas abordagens à questão da simplificação que seria trazida pelo IBS: (i) este imposto realmente será mais simples do que os atuais? e (ii) quando será sentida a simplificação prometida pelo IBS?
Como todos os temas ultracomplexos, não há uma reforma tributária perfeita. Não só não é possível uma reforma que corrija todas as distorções e complexidades do sistema atual, como as mudanças gerarão novas distorções e complexidades. Portanto, não podemos olhar para o IBS como uma espécie de solução de todos os problemas. Há diversos pontos em aberto sobre como se daria a fiscalização, a cobrança e como seriam solucionadas as controvérsias.
Entretanto, é inegável que a substituição de cinco tributos por um é uma medida de simplificação. Esta conclusão é tão intuitiva que não requer maior elaboração teórica.
Há, porém, uma questão que não pode deixar de ser considerada. Esta conclusão considera que a instituição do IBS e a transição sejam feitas da maneira proposta. Qualquer alteração futura nas regras de transição, seja prolongando o prazo inicial de dez anos, seja até mesmo mantendo todos ou alguns dos tributos atuais como fonte adicional de arrecadação, transformará o IBS em um desastre.
Em adição ao tema da simplificação trazida pelo IBS, a questão temporal é bastante relevante. Fala-se muito que a aprovação da PEC 45 melhoraria o ambiente de negócios no Brasil, trazendo impactos positivos que poderiam ajudar o país a sair da crise econômica em que se encontra.
Ora, se é verdade que o IBS tem um papel simplificador, é importante que fique bastante claro que ele não traz nenhum impacto positivo no ambiente de negócios no curto prazo. Pelo contrário. Nos primeiros dois anos de vigência do IBS, quando ainda não se terá nem mesmo ideia de sua alíquota potencial, o que haverá para o empresário e o investidor é incerteza.
Além da indefinição inicial, a instituição do IBS e a sua coexistência com ICMS, ISS, IPI, PIS e COFINS, tornará o sistema ainda mais complexo. Além de lidar com todos os problemas atuais os contribuintes terão um novo tributo.
Esses comentários não são uma crítica ao prazo da transição, nem um argumento contrário ao IBS. O que estamos sustentando é que devemos decidir, de forma consciente, como sociedade organizada, se queremos este modelo que, no longo prazo, promete uma simplificação do Sistema Tributário Nacional, mas que, no curto e médio prazos, gerará maior complexidade e incerteza. É uma escolha válida fazer a obra da casa inteira morando nela, mas tem que ser consciente. Primeiro virá a tempestade, depois, espera-se, a calmaria (embora nada garanta quando e se realmente parará de chover).
3. IBS e Justiça Tributária
3.1. IBS e Carga Tributária
Certamente a maior reclamação dos contribuintes em relação ao Sistema Tributário Nacional é a supostamente alta carga tributária brasileira. Temos insistido que a carga tributária não é alta nem baixa em abstrato. Ela é alta ou baixa considerando as atividades desenvolvidas pelo Estado.
Não há como negar que a Constituição Federal de 1988 foi ousada ao estabelecer um sistema de seguridade social que, até onde sabemos, não encontra paralelo em outro país em desenvolvimento ou emergente. Naturalmente, este sistema custa dinheiro, e não é pouco.
Este não é o espaço para debater a carga tributária em si. A questão, considerando a premissa de que não deveria haver um aumento de tributos, é se o IBS teria o potencial de ir contra este objetivo.
Parece-nos que a resposta a esta questão só pode ser positiva, por duas principais razões.
Em primeiro lugar, não se pode desconsiderar totalmente um cenário onde, ao fim do período de transição do IBS, fiquemos com todos ou alguns dos tributos antigos (ICMS, ISS, IPI, PIS e COFINS), mais o IBS. A história da tributação mostra que tributos transitórios tendem a durar além do seu prazo de vigência. Talvez o exemplo mais notável dessa resiliência seja o próprio Imposto de Renda que, tendo nascido na Inglaterra como um imposto extraordinário para financiar a guerra contra Napoleão, não só se perenizou como se expandiu pelo mundo. O cenário considerado neste parágrafo não parece provável, mas tampouco pode ser considerado impossível.
De outra parte, uma vez que a PEC 45 prevê a possibilidade de que União, Estados e Municípios estabeleçam sua própria alíquota de IBS, é possível, sim, que a carga tributária de determinadas operações com mercadorias, serviços e intangíveis seja maior do que a atual. O fim da concessão de benefícios fiscais e a tributação no destino fariam com que os Estados e Municípios tivessem uma maior liberdade para a majoração de alíquotas. Afinal, a pessoa dificilmente mudaria com a família para gozar de uma alíquota de IBS mais baixa no consumo.
Portanto, da perspectiva de carga tributária o que faz o IBS é garantir que ela será pelo menos igual à atual. Contudo, é possível que ela aumente.
3.2. IBS e Regressividade Tributária
Como comentamos em nosso primeiro artigo, parece ser um consenso que o Sistema Tributário Nacional é injusto e que tal injustiça decorre, ao menos em parte, de sua regressividade, ou seja, da cobrança de uma mesma carga tributária de contribuintes com capacidades econômicas distintas.
Nesse aspecto, o IBS pode se tornar bastante injusto. Ele tem potencial para se tornar um superimposto regressivo que atingiria em cheio a classe média e os mais pobres.
Conforme a crise do Imposto de Renda se acentua, parece haver uma preferência pela praticabilidade em detrimento da justiça, com o crescimento dos tributos sobre consumo. Estes são mais fáceis de arrecadar e incidem sobre uma base menos móvel. Um tributo como o IBS tem que ser contido. O ideal seria que tivesse uma alíquota máxima prevista na Constituição para evitar a expansão da regressividade fiscal.
3.3. O IBS Consolida como Tributação sobre Consumo a Parcela de Desvinculação de Receitas da União
Se o IBS é um tributo potencialmente injusto, a meta deveria ser reduzir a sua carga. Veja-se que não estamos nos opondo ao IBS. O que estamos sustentando é que a meta deveria ser reduzir a sua participação na arrecadação total, não criar um Godzilla tributário regressivo.
Por exemplo, pela PEC 45 o IBS consolidará, na sua formação, a Desvinculação de Receitas da União que libera 30% das receitas tributárias vinculadas. Esta receita não deveria vir da tributação do consumo, mas da tributação da renda.
3.4. O IBS não tem um Mecanismo para a Diferenciação dos Consumos
Um aspecto importante é a falta de um mecanismo de diferenciação do consumo no IBS. Atualmente, para o ICMS e o IPI, tal instrumento é a seletividade, em função da essencialidade do que se consome.
Não há dúvidas quanto ao fato de que a seletividade é complexa e mal utilizada atualmente, principalmente no ICMS. Entretanto, ela tem o potencial de assegurar que os mais pobres e a classe média paguem menos tributos sobre consumos essenciais. A utilização de um modelo de seletividade, padronizado nacionalmente e limitado a consumos essenciais, não geraria maiores complexidades ao tributo e asseguraria uma repartição mais justa do encargo tributário.
Vem sendo dito que a seletividade não é a forma ideal de justiça no âmbito da tributação do consumo, que tal objetivo é melhor alcançado pela transferência direta de recursos para os mais pobres. Será que é isso mesmo?
3.5. O Mecanismo de Transferência de Recursos é Insuficiente e não pode ser Garantido
Vários especialistas, baseados em dados empíricos, sustentam que é possível uma maior proteção dos mais pobres adotando-se políticas de retorno financeiro do tributo pago, ao invés de um mecanismo como a seletividade. Afinal, como tributos sobre consumo não são pessoais – não conseguem ter em conta a situação pessoal do consumidor –, a redução da tributação para beneficiar os mais pobres acaba por beneficiar, igualmente, os mais ricos.
O argumento parece fazer sentido, mas traz uma armadilha.
Em primeiro lugar, políticas de transferência são incertas e podem ser contingenciadas em momentos de crise. Portanto, se a premissa é não onerar quem não deveria pagar, essa finalidade é assegurada não se tributando na origem.
Por outro lado, há que se definir a quem seria dada a devolução. Fala-se em utilizar os programas sociais como parâmetro. Contudo, os programas sociais, na visão do autor, não alcançam os pobres. Alcançam aqueles que estão mais próximos da miséria ou da pobreza extrema.
O Bolsa Família, por exemplo, é dado a famílias extremamente pobres (renda mensal individual inferior a R$ 89,00) ou consideradas pobres (renda mensal individual entre R$89,00 e R$ 178,00). Mesmo que sejam incluídas faixas superiores de renda, metade dos brasileiros tem renda per capta inferior a um salário mínimo.
Todo o discurso binário que temos ouvido, que separa os brasileiros entre pobres e ricos é absurdo. A realidade, não só na questão da renda, não é binária. Uma família de quatro pessoas com duas crianças e uma renda mensal de R$ 5.000,00, que luta com dificuldade para pagar uma mensalidade em uma escola privada, é rica? Este discurso só favorece aos verdadeiramente ricos, que acabam, com base nesse discurso, tendo um argumento para dividir a carga tributária com os mais pobres e a classe média.
E os realmente ricos, que estão tomando carona na tributação mais baixa? Tenho insistido que até agora não temos uma proposta de reforma tributária em tramitação. Temos propostas de reforma da tributação do consumo. Ora, a saída para a tributação dos mais ricos está na reforma do Imposto de Renda. Se este tributo realizasse seus objetivos de progressividade não seria exatamente um problema que os mais ricos não pagassem IBS ao comprarem arroz e feijão.
Não se pode perder de vista que a PEC 45 fala em devolução parcial do IBS para contribuintes de baixa renda, e não em devolução integral. Ou seja, pasme-se, mesmo para os miseráveis e extremamente pobres não se considera a devolução integral do imposto.
4. Conclusão
Considerando os comentários acima, é possível concluir que o IBS tende a simplificar o Sistema Tributário Nacional no longo prazo, mas gerará insegurança e complexidade no curto prazo. Portanto, ao se optar por este modelo deve-se ter em conta este fato. Não parece que o IBS proposto na PEC 45 seja abstratamente inconstitucional por violar o pacto federativo. Entretanto, ele poderá ser inconstitucional em concreto, a depender do seu desenho institucional, especialmente no que toca ao funcionamento do Comitê Gestor. Por fim, o IBS é um imposto potencialmente injusto, e o desenho proposto na PEC 45 pode agravar a injustiça. Isso não significa que ele deva ser descartado, mas que deve ser contido (sua alíquota não deveria ser superior a um patamar de 20%/25%). Idealmente, deveria ser inferior a 20%. Além disso, parece-nos muito importante que seja resgatada a tributação diferenciada de consumos considerados essenciais.
Sergio André Rocha é professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e livre-docente em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP).
Fonte: ConJur
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