Blockchain e o Futuro do Registro de Imóveis Eletrônico – Palestra I
Evento realizado pelo IRIB e pela Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário (ABDRI), no dia 31 de março de 2017, com o objetivo de discutir o potencial, os desafios e as oportunidades da tecnologia de blockchain. Acompanhe a síntese das principais ideias apresentadas em cada palestra
INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO LEGAL
Palestra proferida por Rosine Kadamani, advogada e cofundadora da Blockchain Academy, projeto para fomento de networking e promoção da tecnologia de blockchain.
Praticidade, rapidez, segurança, transparência e imutabilidade são os principais atributos da tecnologia de blockchain com infinitas possibilidades de aplicação em e-commerce, pagamentos globais, remessas, empréstimos de pessoas a pessoas, microfinanciamentos, votações, propriedade intelectual e securitização, entre outras.
O objetivo da primeira apresentação a respeito da tecnologia do bitcoin e do blockchain foi possibilitar o entendimento de conceitos tecnológicos a serem abordados nas palestras seguintes, bem como demonstrar a relevância dessa ferramenta tecnológica.
Rosine Kadamani comentou que a relação da sociedade com o dinheiro e o sistema financeiro de modo geral é baseada na confiança, ou seja, ao depositar o dinheiro no banco, confiamos que ele vai retornar a nós quando quisermos.
No entanto, embora as relações bancárias tenham sido desenvolvidas a partir da confiança, a história prova que os bancos são falíveis. A evidência mais recente disso foi a crise do subprime nos Estados Unidos, em 2008, quando os títulos que deveriam ter como lastro direitos sobre imóveis foram negociados sem lastro nenhum. A desestabilização nessas relações gerou profunda crise de confiança no sistema financeiro.
A consequência positiva desse momento dramático, que teve repercussão em praticamente todo o mundo, foi o lançamento de um sistema alternativo para realizar transações em ambiente eletrônico sem necessidade de validação pelo governo ou por instituições financeiras. Uma pessoa, ou um grupo de pessoas, com o pseudônimo de Satoshi Nakamoto, desenvolveu um protocolo para moeda digital, usando a criptomoeda bitcoin, que permite estabelecer confiança e fazer transações sem uma terceira parte.
Na prática, esse sistema é uma nova rede de tecnologia que visa dar suporte à transferência de valores usando validação feita por agentes descentralizados.
A identificação nessa rede se dá mediante um conjunto alfanumérico que permite ao usuário transferir a qualquer outro integrante da rede todos os bitcoins de sua carteira. Usado como instrumento de troca no ambiente eletrônico, o bitcoin tem características de moeda, mas não é uma moeda de troca em sentido legal. Ele não depende de emissão estatal para o seu uso nem é de aceitação obrigatória como as moedas, por exemplo.
Como se dá a validação descentralizada?
O validador do sistema é um personagem chamado minerador. Atualmente, já existem pelo menos três mil mineradores no Brasil. Trata-se de uma pessoa comum que baixa um programa de computador que lhe permite acompanhar todo o histórico de transações das carteiras. A validação do sistema ocorre a cada dez minutos e não faz diferença se há mais ou menos mineradores fazendo essa validação, o ritmo é sempre preservado. E para que esse ritmo se mantenha, quanto mais aumenta a competição entre os mineradores mais complexo se torna o sistema.
O minerador conta com o estímulo financeiro de duas fontes para a validação do sistema. A primeira vem do próprio sistema blockchain, que o recompensa com bitcoins a cada validação. A segunda fonte é a transação em si, o minerador recebe uma porcentagem sobre cada transação realizada de pessoa a pessoa.
Atributos do sistema: praticidade, rapidez, segurança, transparência e imutabilidade
Esse sistema é prático porque é acessível por celular; rápido porque qualquer transferência, ainda que entre países diferentes, não leva mais de dez minutos; seguro por conta do sistema de validação descentralizado; transparente, uma vez que as transferências realizadas e o saldo das carteiras são acessíveis a qualquer participante; e imutável, ou seja, no blockchain, rede de tecnologia que dá suporte ao bitcoin, não há estorno de transações. A devolução do valor de uma transferência feita por engano deve ser negociada diretamente com quem recebeu o valor.
Com a utilização massiva dos bitcoins, esses ativos se valorizaram conforme a regra básica da economia baseada em demanda e oferta. Embora um investimento de alto risco, com o valor dos ativos sofrendo variação a todo o momento, a tendência de alta se deve ao interesse cada vez maior nesse tipo de investimento.
Outra característica importante é a emissão do bitcoin ser limitada. Esse sistema tecnológico foi programado para a emissão de no máximo 21 milhões de bitcoins até o ano de 2140. A expectativa de escassez é um dos fatores que contribui para o grande interesse na aquisição desse ativo.
Outros tipos de blockchain
Ethereum é uma nova tecnologia do tipo blockchain com possibilidade de transferência de ativos por uma rede aberta, segura e transparente, que conta com uma validação totalmente descentralizada. Esse é o conceito de tokenização, em que se atribui um token a um ativo.
O Ethereum trouxe mais inteligência e sofisticação ao sistema, possibilitando a programação direta pela rede. O bitcoin é mais simples, apenas efetua transferências de uma pessoa a outra, enquanto no Ethereum, mais inteligente, é possível fazer a programação diretamente da rede.
A partir daí, surgiram outras soluções de rede similares, como o Hyperledger, que tenta unificar todas as abordagens de código aberto do blockchain existentes. [De acordo com a página oficial do Hyperledger, “o projeto está desenvolvendo um framework de blockchain de propósito geral, que possa ser utilizado em vários setores da indústria, dos serviços financeiros, varejo, fabricação e mais”].
Atualmente, já são mais de quarenta redes monitoradas não só por instituições financeiras, mas também por empresas que tentam explorar esses ativos por diversas fontes.
Aplicações
Há um mundo de possibilidades a explorar. O blockchain é uma rede básica de geração, uma infraestrutura que pode ser utilizada em e-commerce, pagamentos globais, remessas, empréstimos de pessoas a pessoas, microfinanciamentos e até mesmo na área de saúde, para armazenar dados relativos ao histórico de saúde das pessoas.
Existem também outras possibilidades de utilização em votações, propriedade intelectual e securitização.
Rosine Kadamani encerrou sua palestra lembrando que a conclusão mais relevante sobre a ferramenta tecnológica blockchain é o fato dela poder ser utilizada como ambiente de armazenamento de dados, por isso se diz que essa rede é um livro-registro (digital ledger), uma espécie de livro-razão de registro de transações financeiras.
Mais sobre blockchain
Don Tapscott, escritor e pesquisador canadense especializado em cultura digital, é coautor do livro A Revolução Blockchain: como a tecnologia por trás do Bitcoin está mudando o dinheiro, os negócios, e o mundo. A seguir, uma rápida síntese de suas ideias, que podem ser conferidas aqui.
A tecnologia de blockchain que está por trás do bitcoin representa a segunda geração da internet e vai transformar as empresas, a própria sociedade e a vida de cada pessoa individualmente.
A internet da informação, que conhecemos, disseminou o conhecimento. Mas quando se trata do tráfego de bens – dinheiro, ativos financeiros como ações e títulos, pontos de fidelidade, propriedade intelectual, música, arte, um voto, créditos de carbono e outros ativos – não é possível enviar uma simples cópia pela internet. Por isso, há grandes intermediários como bancos, governos, empresas de cartão de crédito e outras instituições financeiras para estabelecer a confiança na economia.
O problema é que enquanto um e-mail dá volta ao mundo, uma transferência de dinheiro pelo sistema bancário na mesma cidade pode levar dias. Com a tecnologia de blockchain, que para Don Tapscott representa a internet do valor, todo tipo de ativo poderia ser armazenado, movimentado, trocado e manipulado sem intermediários. Ele descreve essa tecnologia como um tipo de ledger (livro-razão; livro-registro) global, distribuído, executável em milhões de computadores e acessível.
O mais interessante de tudo é a tecnologia de blockchain subjacente ao bitcoin que permite que a confiança seja estabelecida não por uma grande instituição, mas pela criptografia e por um código inteligente.
Os ativos digitais não são armazenados num local centralizado, mas distribuídos em um registro global (global ledger) usando o nível mais elevado de criptografia. Quando uma transação é realizada, ela é registrada globalmente através de milhões e milhões de computadores. Para isso, existem os mineradores de bitcoin, pessoas espalhadas no mundo todo com um poder computacional dez a cem vezes maior que o Google. [Dados mais recentes indicam que o poder computacional da rede do bitcoin é 300 vezes maior que o do Google].
A cada dez minutos, um bloco é criado com todas as transações dos últimos dez minutos. É quando os mineradores entram em ação, competindo entre si, uma vez que o primeiro minerador a verificar a veracidade e a validar o bloco é recompensado com moeda digital (no caso do blockchain de bitcoin, com bitcoins). Finalmente, esse bloco se vincula ao bloco anterior e assim por diante, para criar uma cadeia de blocos (blockchain), e todos recebem uma marca de tempo que Tapscott compara a um selo de cera digital. Portanto, para piratear o bloco e pagar várias pessoas com o mesmo dinheiro, por exemplo, seria preciso piratear esse bloco e todos os blocos anteriores, toda a história comercial desse blockchain não apenas em um computador, mas em milhões de computadores, simultaneamente, com os níveis mais elevados de encriptação e enganar os recursos de cálculo mais potentes do mundo. Tapscott conclui que esse sistema é infinitamente mais seguro que os sistemas informáticos hoje disponíveis.
O blockchain de bitcoin é apenas um, mas há muitos.
O canadense Vitalik Buterin desenvolveu o blockchain Ethereum com a especial capacidade de criar contratos inteligentes. É um contrato que se autoexecuta, se encarrega da gestão, do desempenho e pagamento de acordos entre as pessoas. Hoje, o blockchain Ethereum tem projetos em andamento para fazer de tudo, segundo Tapscott, desde criar um substituto para o mercado de ações até criar um novo modelo de democracia em que os políticos sejam responsáveis perante os cidadãos.
Essa tecnologia pode provocar mudanças radicais em muitos setores, e um deles é o de serviços financeiros, por exemplo. A palestrante explicou que com um sistema financeiro de blockchain não haveria liquidação, uma vez que o pagamento e a liquidação são a mesma atividade.
Quanto às aplicações, Tapscott propõe metas tão ambiciosas como a prosperidade compartilhada e descreve cinco formas de democratizar a produção de riqueza, entre elas a titulação da propriedade e a proteção dos direitos relativos a imóveis mediante registros imutáveis. Citando Hernando de Soto, para quem a titulação da propriedade é o tema número um no que diz respeito à mobilidade econômica, observa que 70% das pessoas que possuem uma propriedade no mundo têm um título precário e muitas vezes são expulsas de suas terras por meio de grilagem até por governos corruptos. E sem um título válido de sua propriedade, a pessoa não pode usar essa garantia para obter crédito e planejar o futuro. Por isso, hoje as empresas estão trabalhando com os governos para inserir os títulos de propriedade regularizados em um blockchain. Uma vez ali, o título é imutável, não pode ser pirateado, o que cria as condições para a prosperidade potencial de milhões de pessoas.
Sérgio Jacomino, presidente do IRIB, observa que a utilização da cadeia de blocos para armazenamento dos títulos transformaria o Registro de Imóveis, que é um registro de direitos, em mero arquivo digital de documentos, o que contraria a modelagem institucional do Registro brasileiro, podendo enfraquecê-lo. Segundo ele, “a cadeia de blocos pode, eventualmente, ser constituída para efeitos de controle interno e mesmo correcional da trama registral, com um registro indelével de todos os lançamentos feitos em todas as matrículas.
Evidentemente, não se pensa em levar para a cadeia de blocos os próprios atos de registro na íntegra ou os títulos que lhe deram suporte, mas tão somente um código (hash) que pode certificar a higidez e indelebilidade do ato praticado em cada cartório”. Diz que a experiência internacional aponta para exemplos em que o blockchain está sendo utilizado para mero arquivamento de documentos, sem alterar substancialmente os sistemas registrais. Em alguns casos – como na ocorrência de sinistros, cataclismos, guerras, destruição do acervo – a cadeia pode ajudar a fazer a reconstituição. Perguntado se o blockchain poderia representar uma privatização dos registros com a sua captura por empresas privadas, respondeu que a essência de cadeia de blocos é seu caráter público. “O blockchain, na sua estrutura essencial, é ‘hiper-pública, no sentido de que não é de propriedade de ninguém e se acha pulverizada em milhões de computadores ao redor do mundo. Será tão privada quanto a própria internet. Para derrocá-la, seria necessário que todos os computadores do mundo saíssem da rede e com isso a internet fosse paralisada e deixasse de existir. Isso é virtualmente impossível”, concluiu.
Fonte: Fátima Rodrigo, jornalista
Em 2.5.2017
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