Carta do Presidente: Como decíamos ayer...
Sérgio Jacomino procura demonstrar, nesta carta dirigida aos registradores brasileiros, o perfeito encadeamento entre as iniciativas de criação do ONR e o trabalho desenvolvido há mais de 20 anos, tendo por objeto o estabelecimento de normas técnicas
O advento do ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico, embalado pela MP 759/2016, ora em fase de sanção presidencial, precipitou uma série de questionamentos, suscitou inúmeras dúvidas, empolgou os debates acerca de suas finalidades e abrangência.
Na Carta do Presidente intitulada O SREI - o Projeto Original do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o ONR, de 29/5/2017, procurei demonstrar que o ONR é, apenas e tão-somente, uma elaboração consequente às decisões tomadas pelo próprio Conselho Nacional de Justiça, com a aprovação dos estudos feitos pela LSI-Tec – Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológico e que redundaram na Recomendação CNJ 14/2014, de 2/7.
Participei de todo o processo de elaboração das normas técnicas baixadas pelo CNJ. Os estudos que serviram de base para a condução dos trabalhos são o fruto de uma longa trajetória de envolvimento e interesse na modernização do sistema registral pátrio.
Mas o processo não se iniciou aí. Gostaria de trazer à lembrança o pioneirismo do IRIB na busca de referências para a modernização dos serviços registrais imobiliários brasileiros. O resgate histórico pode lançar luzes e esclarecer muitas das dúvidas que agora agitam a categoria de registradores.
Há mais de 20 anos, em julho de 1997, na companhia do então presidente do IRIB, meu querido amigo Lincoln Bueno Alves, fomos recebidos pelo Prof. Dr. Melvin Cymbalista, diretor vice-presidente da Fundação Vanzolini (Escola Politécnica da USP), para a celebração de um protocolo de intenções entre a Entidade e o Instituto [1].
O que perseguíamos à época?
Vivíamos a febre da informatização desordenada dos cartórios de Registro de Imóveis do país. As serventias dos grandes centros urbanos lançavam-se à busca da melhor tecnologia disponível para dotar os seus serviços com o que havia de mais moderno no mercado. Instaurava-se uma babel tecnológica, com o risco de desvirtuamento do sistema registral.
Sentíamos a necessidade de estabelecer padrões que servissem de guia para a informatização segura dos cartórios de Registro de Imóveis. O objetivo da visita à Fundação Vanzolini foi “avaliar a possibilidade de celebração de um acordo de cooperação científica para o estabelecimento de critérios e normas técnicas para a informatização do Registro Imobiliário brasileiro”[ 2]. Objetiva-se, em suma, “colocar em bom rumo sistemático a modernização e aperfeiçoamento dos nossos serviços”.
Questões relacionadas com segurança, uniformidade, integridade e portabilidade de dados, “além de qualidade dos produtos e serviços, indicando os requisitos mínimos que os sistemas devam conter”, tudo isso foi ventilado no primeiro encontro entre o IRIB e a Fundação.
Normas técnicas
A culminância do processo deveria ser o estabelecimento de normas técnicas para a uniformização no processo de modernização e informatização dos Registros Imobiliários que seriam validadas, aprovadas e certificadas pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas).
Passado um ano, o IRIB noticiava que prosperava o acordo de cooperação científica com a Universidade, celebrado “com vistas à criação do ‘Selo de Qualidade USP-IRIB’” [3]. Nessa matéria lê-se:
“Há um uso crescente da Informática pelos Cartórios e Institutos de Registro Imobiliário. Esta informatização não se fez acompanhar de normas e critérios coerentes. Toda evolução tecnológica só é viável se adotadas normas e padrões por todos os usuários da nova tecnologia
A recente explosão de uso da Internet é um excelente exemplo disso, uma vez que o crescimento da rede só foi possível devido à adoção de padrões universais de transmissão de dados.
Na informatização do Registro Imobiliário, é evidente a necessidade de normas que permitam a troca de informações e que barateiem o seu registro, uma vez que todos os equipamentos e software deverão seguir os mesmos padrões.
Além das normas, critérios de avaliação das formas de registro, dos equipamentos e softwares necessários, do ponto de vista qualidade e eficiência, ajudarão a medir resultados e a escolher soluções” [4].
O objetivo era claro: “definir normas e critérios para informatização do Registro Imobiliário brasileiro”.
Em janeiro de 1999, estreando como coordenador de Informática do IRIB e da Anoreg, encaminhava correspondência a todos os registradores imobiliários do país conclamando-os à participação dos trabalhos. Destaque da correspondência:
“A era da informação colhe-nos a todos, cidadãos de um mundo integrado e interdependente. Interconexão é a palavra de moda. Informação e comunicação, imperativos econômicos. A utopia da aldeia global como fator de dominação econômica. Enfim, concordemos ou não com os rumos da chamada globalização, o fato é que neste fim de século a integração em escala global e a interconexão são uma realidade que não pode ser ignorada.
Mas a era da informatização impõe-nos um novo padrão cultural, que naturalmente se reflete nas nossas atividades profissionais. Qual serviço de notas ou de registro prescinde atualmente de um computador? Qual notário exerce hoje suas funções sem o aparelhamento técnico para reprodução e difusão de suas informações públicas? Você já ouviu falar do cybernotary? E dos documentos eletrônicos? Já lhe ocorreu que um belo dia, como tabelião bem informado, será chamado a autenticar uma assinatura digital?
Por outro lado, qual registro imobiliário, mormente nos grandes centros urbanos, funciona hoje sem o suporte de um microcomputador? Impressoras fazem parte do seu dia a dia, como carimbos e máquina de escrever foram os companheiros inseparáveis dos ‘cartorários’, como éramos chamados então. Os indicadores pessoal e real acham-se informatizados? E o controle de tramitação de títulos que instrumentam direitos reais contraditórios?
Mas a informatização traz consigo uma série enorme de inesperados problemas. Para enfrentar o desafio da informatização segura dos serviços notariais e de registro brasileiros o IRIB, em parceria com a ANOREG, está desenvolvendo o projeto de informatização dos cartórios em convênio com a Fundação Vanzolini, da Universidade de São Paulo (USP) já noticiado nos Boletins do IRIB e da ANOREG” [5].
Judiciário – o órgão regulador
Passado mais um tempo, exatamente no dia 7 de maio de 1999, o IRIB buscou o apoio da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo. Participaram dessa reunião os professores Melvin Cymbalista e Geraldo Cohen (Fundação Vanzolini), Lincoln Bueno Alves (presidente do IRIB), João Baptista Galhardo (diretor do IRIB), Sérgio Jacomino (diretor da Anoreg-SP) e Plínio Antônio Chagas, registrador de imóveis da Capital de São Paulo.
A reunião ocorreu na sala dos juízes auxiliares, estando presentes os doutores Marcelo Martins Berthe, Antônio Carlos Morais Pucci, Francisco Antonio Bianco Netto, Luís Paulo Aliende Ribeiro e Marcelo Fortes Barbosa Filho, representando a Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo.
Na condição de coordenador do projeto, dizia:
“O objetivo precípuo do convênio é proporcionar uma referência segura para todos os que, direta ou indiretamente, estejam envolvidos com a informatização dos serviços notariais e registrais - sejam eles os oficiais e notários, empresas de prestação de serviços, analistas de sistemas, juízes corregedores ou mesmo os usuários finais de sistemas” [6].
Os juízes corregedores externaram sua concordância com os objetivos traçados e propuseram o “acompanhamento dos técnicos da Fundação Vanzolini em trabalhos correcionais, secundados por representantes dos notários e registradores, haurindo, dessa experiência concreta, os elementos para a estruturação das normas técnicas” [7]. O mais interessante desse encontro foi a decisão de se criar um “laboratório” para compreensão das exigências técnicas que serão criadas pelas referidas normas.
Como se vê, desde os primórdios do projeto, buscávamos conciliar o apoio do Poder Judiciário, pela Corregedoria Geral da Justiça, atuando na regulação das iniciativas de modernização dos Registros de Imóveis e a “normalização” dos processos, por intermédio de um órgão técnico, composto de cientistas e registradores.
“Como decíamos ayer”
Rememorando: estabelecimento de critérios e normas técnicas para a informatização do Registro Imobiliário brasileiro, definição de padrões, requisitos de segurança, uniformidade, integridade, portabilidade, acesso por meios eletrônicos... tudo isso lhe soa familiar nos dias que correm? Acaso não são exatamente esses mesmos objetivos que animaram a criação do ONR?
Depois de um largo e penoso trabalho de prospecção e detalhamento do projeto IRIB/Anoreg/USP a iniciativa naufragou e caiu no limbo das preocupações corporativas[8]. Transcorreriam mais de duas décadas até que o mesmo tema fosse tangido.
Quais foram as razões do insucesso? Qual foi o fator preponderante que nos impediu de seguir avante com esse projeto tão importante? Terá sido uma resistência atávica às mudanças? Incompreensão? O que terá nos impedido de prosperar? [9]
O Registro de Imóveis brasileiro ainda se arrasta lentamente, com seus pesados livros e práticas registrais herdadas do século XIX. Convivemos em ambiente de sistemas híbridos, baseados, ainda, em modelos narrativos, inadequados ao ambiente de processamento de dados.
Em 1974, por ocasião do II Congresso do Cinder, realizado em Madri, Elvino Silva Filho verberava que decorridos mais de cem anos, os livros são os mesmos – referia-se aos pesados livros de registro que ainda hoje sobrevivem e acolhem averbações. Há quase meio século, lançava as sementes para a mudança sem que o ciclo se completasse até hoje [10].
A informatização, ao longo desses anos todos, não passou de mera transmigração de meios sem mudanças substanciais. Vivemos dependentes de uma regulação assimétrica, disfuncional, emparedados entre investidas estatistas e ameaças de captura dos serviços pela iniciativa privada. Seremos incapazes de dar uma solução institucional para o problema?
Gostaria de terminar esta carta portando a voz do grande registrador Elvino Silva Filho:
“Toda mudança, toda alteração de uma rotina exige intensa reflexão, exige planejamento, exige e requer, sobretudo, vontade de mudar para algo melhor e dinâmico do que se possui. E essa mudança provoca uma reação igual e diretamente contrária, por parte daqueles que desejam a inércia e a manutenção do status quo ante” [11].
Apesar das resistências, da inércia, dos preconceitos, apesar de tudo isso, o tempo não para.
Como dizíamos ontem: o IRIB é a casa do registrador imobiliário. A nós compete selar o nosso destino.
São Paulo, 13 de junho de 2017.
SÉRGIO JACOMINO
Presidente
________________________
[1] V. JACOMINO. S. Protocolo de Cooperação Cientifica USP-IRIB in Boletim do IRIB, n. n. 242, julho de 1997. Acesso: https://goo.gl/qgQsu6.
[2] Id. Ib.
[3] V. São Traçadas as Normas Técnicas para a Informatização do Registro Imobiliário in Boletim do Irib n. 253, de junho de 1998. Acesso: https://goo.gl/iG66rJ.
[4] Idem, ibidem.
[5] JACOMINO. S. Algumas Notas e Registros Na Internet - Selo de Qualidade USP-IRIB-ANOREG. Acesso: https://goo.gl/qZJaoq.
[6] A matéria foi publicada no Boletim Eletrônico do IRIB n. 78, de 13/5/1999. Acesso: https://goo.gl/R9AeNO.
[7] Idem, ibidem.
[8] Para uma visão panorâmica dos termos do projeto consulte: (a) Minuta de Contrato para Concessão de Selo de Boas Práticas de Informática em Cartórios de Registro e Imóveis e Regulamento Técnico do Selo de Boas Práticas de Informática em Cartórios de Registro de Imóveis, 2001. Acesso em https://goo.gl/wkCqXM e (b). Norma de Boas Práticas de Informática em Cartórios de Registro de Imóveis, 2001. Acesso: https://goo.gl/6g0KK2.
[9] Em palestra proferida no XXIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil (Belo Horizonte, 1997) já apontava estes mesmos objetivos. V. vídeo em https://youtu.be/AyH4ABB3ezI.
[10] Diz que “não poderíamos deixar de nos referir, também, à utilização de computadores, uma vez que os Registros de Imóveis, além de serem os repositórios dos imóveis e das pessoas dos titulares de direito sobre eles, devem possibilitar precisas informações sobre esses dois dados ou elementos”. SILVA FILHO. Elvino. A unidade imóvel e a mecanização dos registros no Brasil. In Revista de Derecho Registral. Buenos Aires: Cinder, 1976, n. 5, p. 93.
[11] Idem, ibidem, p. 96.
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