Em 23/04/2018

CGJSP - TABELIÃO DE NOTAS. PROCURAÇÃO. IDOSO. CAPACIDADE - MANIFESTAÇÃO DE VONTADE. FÉ PÚBLICA NOTARIAL.


Lavratura de procuração a pessoa idosa, com dificuldade de visão - poderes outorgados a pessoa sem vínculo de parentesco - Limitação do poder da apuração do notário - Critério etário que não pode significar impedimento ao ato - Recurso desprovido.


CGJSP - RECURSO ADMINISTRATIVO: 0055909-62.2016.8.26.0100
LOCALIDADE: São Paulo DATA DE JULGAMENTO: 02/03/2018 DATA DJ: 16/03/2018
UNIDADE: 1
RELATOR: Geraldo Francisco Pinheiro Franco
LEI: EI - Estatuto do Idoso - 10.741/2003 ART: 2
LEI: LNR - Lei de Notários e Registradores - 8.935/1994 ART: 31 INC: I, II
LEI: EI - Estatuto do Idoso - 10.741/2003 ART: 96
LEI: CF - Constituição da República - 1988 ART: 5
LEI: CC2002 - Código Civil de 2002 - 10.406/2002 ART: 1.641 INC: II

Tabelião de Notas - Recurso administrativo – Pedido de providências – Ausência de indícios de infração disciplinar prevista no art. 31, I e II, da Lei nº 8.935/1994 a ensejar instauração de processo administrativo disciplinar – Lavratura de procuração a pessoa idosa, com dificuldade de visão - poderes outorgados a pessoa sem vínculo de parentesco- Limitação do poder da apuração do notário - Critério etário que não pode significar impedimento ao ato- Recurso desprovido.

ÍNTEGRA

PROCESSO Nº 0055909-62.2016.8.26.0100 - SÃO PAULO - O. R. S. - REPRESENTADA PELA CURADORA S. R. P. P. - ADVOGADA: MARCIA ELOISA NUNES GIUZIO, OAB/SP 128.730. - (82/2018-E) - DJE DE 16.3.2018, P. 2.

Tabelião de Notas - Recurso administrativo – Pedido de providências – Ausência de indícios de infração disciplinar prevista no art. 31, I e II, da Lei nº 8.935/1994 a ensejar instauração de processo administrativo disciplinar – Lavratura de procuração a pessoa idosa, com dificuldade de visão - poderes outorgados a pessoa sem vínculo de parentesco- Limitação do poder da apuração do notário - Critério etário que não pode significar impedimento ao ato- Recurso desprovido.

Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça:

Trata-se de recurso interposto por ODILA RIBEIRO DA SILVA, representada por sua curadora Shirley Ribeiro Pinto Pierzynski, contra r. sentença de fl. 284/288, que determinou o arquivamento do pedido de providências movido por em face do 1° Tabelião de Notas da Capital.

Segundo a recorrente, é de rigor a abertura do processo administrativo disciplinar, diante das manifestas irregularidades ocorridas na serventia extrajudicial, quando da lavratura de procuração na qual a recorrente figurava como outorgante, e, como outorgada, Lívia Marinete Pereira, tendo em vista a idade, condições pessoais da outorgante e ausência de vínculos familiares com a outorgada, causando-lhe prejuízos.

A D. Procuradoria de Justiça opinou pelo desprovimento do recurso.

É o relatório.

Opino.

O presente expediente administrativo foi instaurado a partir de comunicação encaminhada por esta Eg. Corregedoria Geral, após informação prestada pelo D. Juízo da 35ª Vara Cível do Foro Central desta Comarca, envolvendo supostas irregularidades quando da lavratura de procuração e de escritura pública de compra e venda, ambas do 1º Tabelião de Notas da Capital.

Objetivamente, verifica-se que, em 20/07/2015, a recorrente outorgou procuração, por instrumento público, lavrada perante o 1º Tabelião de Notas da Capital.

E 21/10/2015, mencionada procuração foi utilizada pela outorgada para que vendesse imóvel da propriedade da outorgante à cunhada da outorgada, onde então residia, lavrando-se a respectiva escritura junto à mesma Serventia Extrajudicial.

Tais negócios jurídicos, todavia, deram azo à instauração de dois processos perante a 35ª Vara Cível do Foro Central, os autos n° 1115886-02.2015.8.26.0100 e n° 1132237-50.2015.8.26.0100, buscando a declaração de nulidade dos negócios jurídicos objetos dos instrumentos públicos.

Houve ainda propositura de ação de interdição da outorgante, distribuída à 3ª Vara de Família e Sucessões do Foro Central, sob o n° 1115886-02.2015.8.26.0100.

A decisão recorrida foi tecnicamente precisa ao reconhecer os fatos relevantes para a apuração, em especial quanto à inexistência de elementos concretos a ensejar a instauração de processo administrativo disciplinar.

O feito foi amplamente instruído; não haveria outras provas a serem produzidas na hipótese de eventual instauração de processo administrativo disciplinar.

Foram ouvidas em Juízo as partes interessadas, as testemunhas dos atos notariais realizados, bem como a preposta que as realizou (fls. 230/241).

Os fundamentos de invalidade dos negócios jurídicos dizem respeito à idade da outorgante, à época, com 93 anos, sua incapacidade de compreensão do ato, a ausência de prazo para a procuração e também a falta de vínculos consanguíneos entre outorgante e outorgada.

Bom se diga, desde já, que parte dos fundamentos da recorrente se batem no fato dela ter se visto “diretamente lesada” (fl. 299) com a lavratura dos referidos atos.

Contudo, o fato de a recorrente ter sido lesada com a lavratura dos atos não pode ser considerado como elementar da hipótese de incidência da responsabilidade disciplinar.

Ou seja, embora a tipicidade disciplinar não seja tão restrita quanto à penal, a ocorrência de dano ao usuário não é parte integrante das suas elementares.

Nunca é demais lembrar que a responsabilidade penal, civil e administrativa são, em regra geral, autônomas.

Independentemente da ocorrência ou não de dano, em matéria censória, o enfoque é outro: é preciso haver subsunção do fato à hipótese prevista como infração disciplinar, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade.

Na hipótese, o fato da outorgante contar, à época, com 93 anos de idade não a fazia incapaz, por si só, para os atos da vida civil.

Aliás, a Lei nº 10.741/2003 assegura ao idoso todos os direitos inerentes à pessoa humana, não sendo possível privá-lo do acesso a todos os atos da vida civil, ressalvado manifesto risco de ofensa ou abuso contra a sua pessoa, nos termos do art. 2° do referido diploma:

Art. 2o O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.

A mesma lei ainda veda a discriminação ao idoso, seja sob qual fundamento for:

Art. 4o Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei.

É verdade que o § 1° do referido artigo dispõe que: “É dever de todos prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso”. Contudo, essa prevenção ao risco somente poder ser levada a efeito quanto houver, de fato, manifestos e fundados motivos para se negar o acesso do idoso à lavratura de atos que apenas instrumentalizam sua declaração de vontade.

Se o cartão de assinatura (fl. 300) informa que a outorgante não assina por dificuldade em escrever, isso não a impossibilita de outorgar mandatos, também sob o mesmo fundamento, até porque o ato foi lavrado por instrumento público. E para essa hipótese existe a assinatura a rogo, que foi o que ocorreu.

E não há nada nos autos que comprove que a vontade da outorgante não era aquela declarada, ou seja, que ela não queria outorgar aquela procuração para aquela determinada pessoa e com aqueles determinados poderes.

Fosse assim, entraríamos no terreno perigoso do relativismo, pois dificilmente saberíamos dizer então qual é a idade limite para que se outorgue procuração livremente, não se sabendo se aos 90, 95, 85 anos ou outra idade qualquer.

Qualquer escolha que não fosse fundada em critérios previstos em lei significaria diferenciação injustificada e inconstitucional, por ofensa ao art. 5° da Constituição Federal, e poderia, em tese, caracterizar o tipo penal do art. 96, do Estatuto do Idoso.

E nem se diga que, por ter a outorgante parente consanguíneo (irmãos e sobrinhos), o Tabelião teria responsabilidade disciplinar por não dar preferência a eles.

Não existe qualquer disposição legal dando preferência a parentes, no momento de outorga de mandatos. Ora, o outorgante outorga poderes a quem ele quiser, de acordo com seu grau de confiabilidade no fiel cumprimento dos poderes outorgados.

É comum, inclusive, que pessoas tenham mais afinidade e confiança com amigos sem vínculo de sangue do que em relação a parentes em linha reta ou colateral.

Também não há que se falar em instauração disciplinar porque a procuração foi outorgada sem prazo. O Item 131 das Normas de Serviço traduz uma recomendação que, é claro, deve ser seguida, mas especialmente quando insinuado risco concreto de comprometimento patrimonial do idoso, o que não estava claro na hipótese.

Ademais, o referido Item limita o prazo a 1 ano e a um negócio jurídico determinado, o que não faria qualquer diferença no caso, já que a escritura de compra e venda foi lavrada no dia seguinte e bastaria então que se fizesse com poderes específicos para a venda de imóvel.

Repita-se, as regras normativas acima descritas são cautelas que devem ser tomadas e observadas, mas a sua ausência, por si só, não podem servir para punir, quase que automaticamente, o Tabelião, sob risco de má interpretação dos institutos que dão fundamento à responsabilidade disciplinar administrativa.

A recorrente formula várias indagações sobre os atos lavrados; se é normal lavrar procuração com poderes para promover despejos e cobranças, se a outorgante não tinha inquilinos, se é normal outorgar poderes para rescisão trabalhista, se a idosa não possui empresa nem empregados, e se é normal outorgar poderes para requerer inventário a terceiros, já que a idosa tem familiares diretos que poderiam fazê-lo.

Contudo, diz o art. 31, I e II, da Lei nº 8.935/1994, que:

Art. 31. São infrações disciplinares que sujeitam os notários e os oficiais de registro às penalidades previstas nesta lei:

I a inobservância das prescrições legais ou normativas;

II a conduta atentatória às instituições notariais e de registro;

Já o item 1.3, do Capítulo XIV, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça tem a seguinte redação:

1.3. É seu dever recusar, motivadamente, por escrito, a prática de atos contrários ao ordenamento jurídico e sempre que presentes fundados indícios de fraude à lei, de prejuízos às partes ou dúvidas sobre a manifestação de vontade.

Uma vez manifestado pelas partes a intenção de efetivarem o ato notarial sob a responsabilidade legal do notário, ele passa a ter o dever legal de atuação, somente podendo se recusar a fazê-lo em casos de impedimento legal, físico ou ético, dúvida quanto à identidade ou capacidade das partes, dentre outras hipóteses restritas.

Se não há impedimento legal manifesto, não cabe ao notário se recusar a pratica do ato, seja por achar que determinada pessoa não represente uma boa procuradora, seja por entender que os poderes conferidos deveriam ser mais ou menos amplos.

Cabe, sim, o aconselhamento jurídico, a qualificação do ato pretendido e a orientação das partes quanto a eventual invalidade ou ineficácia do ato, o que, pela prova trazida, ocorreu na hipótese.

Recusar-se a fazê-lo, sem que haja impedimento legal absoluto, não seria lícito.

E a ausência de critério legal para a recusa é que retira a culpa do ato do notário, ou mesmo a existência de ato contrário à normatização correicional, que justifique a instauração de procedimento administrativo disciplinar.

No dizer da doutrina:

Em ambos os quadros [dolo e culpa em sentido estrito] a culpa é um mal, porque sempre implica uma desordenação voluntária relativa aos fins exigíveis da conduta humana. É exatamente porque se poderia e deveria agir de outro modo, para assim cumprir os fins a que se tinham por devidos, que alguém pode dizer-se culpado em dada situação concreta. Se, pois, a culpa pressupõe a possibilidade de ter agido de outra maneira, são seus pressupostos indispensáveis (i) a contingência da ação e (ii) a liberdade de agir ou não agir, bem como a liberdade de agir de um modo ou de outro. Assim sendo, não há culpabilidade possível quanto não haja contingência na conduta e liberdade no exercício (a de agir ou não agir) e de especificação (a de eleger os meios de agir).

Além disso, não é vedado seja testemunha do ato quem faça tratamento psicológico ou psiquiátrico, o que não retira a capacidade civil da pessoa natural, como foi o caso da Sra. Maria de Fátima Ribeiro.

É claro que a repercussão dos atos lavrados na serventia gerou (ou pode ter gerado) prejuízos a terceiros, mas isso é matéria de competência da esfera criminal e civil, não administrativa, pois tal repercussão diz respeito à conduta dos supostos fraudadores, esses sim, caso tenham agido com culpa ou dolo, devem ser responsabilizados.

O que não se pode é usar os prejuízos materiais como fundamento para apuração disciplinar do Tabelião.

A instrução feita pelo MM° Corregedor Permanente foi exaustiva na prova a ser produzida, não havendo, ao longo dos depoimentos e documentos colhidos, qualquer prova de vínculo determinante entre a atividade da escrevente e a suposta fraude levada a efeito.

Há, inclusive, imagens da outorgante ingressando na serventia extrajudicial (fls. 182/184), mas sem detalhes quanto à lavratura do ato.

A própria sobrinha da recorrente, em suas declarações, confessou que a sua tia já havia outorgado procuração anteriormente e que, à época, ela entendeu perfeitamente a amplitude dos poderes que seriam conferidos.

A sobrinha também confessa o motivo pela qual a idosa não outorgou a procuração para ela: elas haviam brigado. Natural, assim, que a idosa preferisse outorgar procuração para outra pessoa sem vínculo de consanguinidade.

Isso se colhe do seguinte trecho de seu depoimento (fl. 231/232):

Que em março de 2015 a Sra. Odila outorgou uma procuração para a depoente. Que o cartório foi bem rígido ao explicitar a Sra. Odila as consequências de outorgar uma procuração. Nesta ocasião a Sra. Odila tinha entendimento. Que depois disso a tia da depoente foi melhorando. Que após uma viagem da depoente, houve um desentendimento entre a Sra. Odila e a depoente porque a Sra. Odila achou que ela teria vendido seu gato e a depoente se afastou de sua tia. Que nesta oportunidade lavrou um termo de devolução de algumas coisas de sua tia que estavam na sua posse. Que a depoente somente tomou contato novamente com a Sra. Odila quando uma prima informou que a tia estava morrendo, internada no hospital São Camilo. Que a depoente foi impedida de visitar a tia.

De sua parte, a escrevente que praticou o ato afirmou que compareceram a outorgante, outorgada e testemunhas, lembrando-se que se tratava de pessoa idosa. Nada disse que pudesse levar à conclusão de que teria praticado falha manifesta no atendimento e orientação das partes (fl. 235/236).

A testemunha Jacinta Alves de Medeiros declarou as circunstâncias do ato, além do motivo pelo qual a outorgante não preferiu entregar os poderes para algum parente, já que ela “comentava já há algum tempo sobre a procuração. Que queria fazer a procuração para Lívia porque não queria deixar nada para a família.” (fl. 237).

Quanto a esse desentendimento com a família, a própria recorrente, como dito, confessa que ele existia, o que explica o fato da outorga ter sido feita em favor de terceira pessoa.

A mesma testemunha também asseverou:

Que varias perguntas foram feitas para Dona Odila no sentido de porque queria lavrar uma procuração para Lívia. Que Dona Odila estava totalmente lúcida. Que Dona Odila assinava documentos na ocasião. Que a Dona Odila assinou a procuração. Que a Dona Odila estava muito tranquila naquela situação e ficou muito feliz com o ato. (fl. 237).

Tais circunstâncias foram repetidas também pelas demais testemunhas (fl.238/240), que confirmaram a higidez do ato notarial, ressalvadas algumas pequenas contradições, naturais em depoimentos de testemunhas.

Essa é a prova da apuração administrativa, o que afasta a necessidade de procedimento disciplinar específico.

Não é demais lembrar que a função notarial comporta certa independência e discricionariedade. Por outro enfoque, também não lhe é permitido se negar à prática do ato notarial apenas com base em impressões pessoais.

Além disso, apesar do notário ser um aconselhador, ao mesmo tempo ele está vestido de neutralidade, não podendo tomar posição e assumir o que está reservado à liberdade de declaração de vontade das partes.

Assim, a prestação notarial é de caráter obrigatório e não pode ser recusada, ressalvadas as hipóteses legais de impedimento subjetivo, nulidade e manifesta impossibilidade física ou mental.

Como dito, a recusa à lavratura do ato tão somente em função da idade ou falta de vínculos de parentesco poderia caracterizar indevida distinção de tratamento, com base exclusivamente no critério de idade e direito de opção da outorgante, em violação ao art. 5º da Constituição Federal.

Ausente impedimento legal para o ato que se realizava, ou seja, ausente a ilicitude absoluta do objeto em si, eventual responsabilidade administrativa do notário pela lavratura do ato caracterizaria o reconhecimento da culpa pela falta de consideração de elementos que, em linhas finais, ligam-se apenas à eficácia legal do ato, seja por nulidade absoluta, seja por nulidade relativa.

A fé pública do instrumento notarial não diz respeito, como regra geral, ao conteúdo da vontade declarada pelas partes, mas sim quanto à existência da declaração em si e, naturalmente, seus efeitos.

Exigir-se-ia do notário a prévia apuração da veracidade das declarações dos comparecentes, a fim de se verificar a existência ou não de ato simulado ou anulável por erro ou dolo, o que, no sistema brasileiro, não se admite.

Não poderia o notário afirmar fraude à lei ou vício na manifestação de vontade tão somente com base na idade avançada, dificuldades de visão e inexistência de vínculo de parentesco entre as partes, sem que ultrapassasse os limites legais de sua atuação, já que não há vedação legal para a ocorrência de nenhuma dessas circunstâncias.

Eventual nulidade ou ineficácia declarada por iniciativa de qualquer interessado não significa o reconhecimento de culpa do notário. O objeto era lícito, as partes, ao menos ao tempo de sua prática, eram capazes e a forma estava sendo observada.

O elemento subjetivo, aqui, não pode ser relegado a um segundo plano, certo que:

O agente deve ter praticado o ato tido por ilícito com a intenção de realizar a conduta ou, ao menos, faltando com o deve de cuidado na vigilância dos atos praticados por seus funcionários ou mesmo por ter dado orientações errada ou incompatíveis com a boa e leal prestação da função pública.

Em situação semelhante, a Câmara Especial deste E. Tribunal decidiu neste sentido, nos autos do Recurso Administrativo n° 0048142-07.2015.8.26.0100, em trecho do voto do E. Relator Desembargador SALLES ABREU:

Não se exige deste a investigação da veracidade das declarações, nem de eventual ineficácia por conta de nulidade a ser arguida e demonstrada por terceiro interessado. A possível existência de fraude, quando vinculada ao aspecto subjetivo da manifestação de vontade, como no caso de reserva mental, não permite a interferência do notário, por significar um julgamento da vontade final e dissimulada pela vontade declarada. A fraude apta à recusa de lavratura do ato é objetiva, verificável entre o objeto da declaração e o ordenamento jurídico, e não em relação à causa ou intenção das partes, isentos da investigação pessoal do notário. Nem se diga, em complemento, que a escolha do regime de bens para a união estável que seja vedada ao cônjuge idoso, aceita pelo notário no ato declaratório, caracterizaria sua culpa administrativa a justificar a punição impugnada. A uma porque a declaração de como desde o passado teriam os companheiros estabelecido o regime de bens não estaria impedido pela existência de um regime legal. É que, diversamente do casamento, o regime de bens declarados na escritura declaratória de união estável tem efeito ex tunc, refletindo algo que já é quanto à relação patrimonial escolhida pelos companheiros, desde quando iniciada a convivência, enquanto no casamento o regime de bens tem efeitos ex nunc. Não caberia ao notário, assim, questionar algo que já é, conforme a declaração dos interessados, embora orientando-os quanto à possível ineficácia da escolha dos companheiros. A duas porque de duvidosa constitucionalidade o dispositivo que impõe regime legal de bens aos cônjuges maiores de 70 anos (art. 1.641, II, CC) autorizando a pretensão ao afastamento pelos companheiros, os quais poderiam buscar a manutenção da eficácia externa em caso de questionamentos por terceiros.  Por tais ângulos, não se vê, por parte do apelante, cometimento de ilícito administrativo culposo, seja pela inevitabilidade do ato pretendido pelos declarantes, seja pela ausência de quebra de um dever legal a caracterizar conduta culposa. E sem tal conduta culposa, não há que se falar em responsabilidade disciplinar. A responsabilidade disciplinar administrativa do notário ou do registrador não pode prescindir da verificação de conduta dolosa ou culposa do imputado.

Assim, tendo em vista que o pedido de providências esgotou totalmente a prova, após fiel apuração dos fatos, tem-se que o ato notarial realizado não exige a instauração de processo administrativo disciplinar, por não poder ser qualificado como culposo, especialmente à míngua vício ou divergência entre a vontade declarada e a vontade querida dos declarantes.

Ante o exposto, o parecer que, respeitosamente, submeto à elevada apreciação de Vossa Excelência é no sentido de negar provimento ao recurso.

Sub censura.

São Paulo, 27 de fevereiro de 2018.

Paulo Cesar Batista dos Santos
Juiz Assessor da Corregedoria

DECISÃO

Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria, por seus fundamentos que adoto, para negar provimento ao recurso.

São Paulo, 02 de março de 2018.

GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO
Corregedor Geral da Justiça

 



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