Em 23/08/2018
Clipping – Artigo - Reflexões sobre cobrança de IPTU em áreas públicas – por Aline Lícia Klein e Maria Angélica de Souza Dias Ribeiro
Muitas concessionárias de serviços públicos foram surpreendidas, esse ano, com a cobrança de IPTU sobre imóveis públicos utilizados no âmbito de suas concessões
Muitas concessionárias de serviços públicos foram surpreendidas, esse ano, com a cobrança de IPTU sobre imóveis públicos utilizados no âmbito de suas concessões (por exemplo, no caso das concessionárias de rodovias, IPTU sobre as faixas de domínio e o próprio leito das rodovias).
Já é conhecida a sanha arrecadatória do fisco brasileiro que tem por tendência alargar interpretações conforme lhe convém.
A cobrança de IPTU sobre imóveis públicos que estão sendo utilizados por concessionárias de serviços públicos indicia-nos, no entanto, algumas municipalidades estão interpretando equivocadamente a extensão do entendimento do Supremo Tribunal Federal proferido em dois julgamentos (REs 594.015 e 601.720), ocorridos no ano passado, com repercussão geral reconhecida, em que foi afirmada a possibilidade de cobrança de IPTU sobre áreas públicas utilizadas por particulares mediante concessão.
Um dos casos (RE 594.015) analisados envolvia a cobrança do IPTU sobre o terreno no porto de Santos pertencente à União, cedido à CODESP (também imune) e por ela arrendado à Petrobras. O outro caso (RE 601.720) também envolvia a cobrança do IPTU sobre imóvel pertencente à INFRAERO cedido a uma concessionária de veículos no Rio de Janeiro.
Tanto no caso da Petrobrás, quanto no caso da concessionária de veículos, o STF afastou a imunidade recíproca (art. 150, inciso VI, alínea “a”, da CF/88) para fins de cobrança do IPTU sobre esses imóveis cedidos aos particulares sob o fundamento de que esse benefício não deveria alcançar imóveis públicos ocupados por empresas que exercessem atividades econômicas com fins lucrativos.
Sem prejuízo de uma oportuna discussão sobre os muitos pontos polêmicos tratados nessas decisões do STF, fato é que esses dois julgados representaram uma grande reviravolta na jurisprudência anterior do Tribunal que há muito estava pacificada no sentido de que descabia a cobrança do IPTU sobre imóveis públicos, ainda que cedidos a particulares.
Ainda que outros aspectos desses julgados possam ser discutidos, ressalta-se uma questão bastante relevante: tais decisões não trataram de bens públicos cedidos em contratos de concessão de serviço público, mas sim de imóveis públicos cedidos a particulares em contratos de concessão de uso ou de arrendamento de bens públicos.
Nesse sentido, cabe esclarecer que os contratos de concessão de uso de bem público não são equivalentes aos contratos de concessão de serviço público.
Um dos principais pontos levantados pelo STF para embasar as decisões ora tratadas foi o impacto, sob a ótica concorrencial, do reconhecimento da imunidade na exploração do bem cujo uso foi cedido pelo poder público ao particular.
Nesse sentido, foi colocado que, caso se reconhecesse a imunidade recíproca sobre imóveis utilizados por empresas que concorrem em sua atividade econômica com outros particulares, estaria sendo afetado o regime da livre concorrência por estar-se conferindo a uma pessoa jurídica de direito privado vantagem que não existe para os seus concorrentes. Esse equilíbrio da concorrência de mercado foi, sem dúvida, um dos pilares das decisões dadas pelo STF.
Ocorre que, se adotado o argumento concorrencial em questão para fins de cobrança de IPTU das concessionárias de serviço público, é inequívoca a sua não aplicação, pois envolve situação absolutamente distinta das concessões de uso de bens analisadas.
As concessionárias de serviços públicos ocupam áreas públicas necessárias à prestação de serviços públicos. A posse do bem no âmbito do contrato de concessão de serviço público está relacionada à prestação de um serviço público e não ao uso e/ou exploração privada. A posse do bem público é transferida ao particular precisamente porque o seu uso é necessário para a adequada prestação do serviço público que foi delegado ao concessionário. O uso do bem público pelo particular, nesse caso, é condição essencial para se atingir a finalidade visada pelo contrato. Sob outra perspectiva, é meio necessário para se propiciar a prestação satisfatória do serviço público.
Assim, sob esse aspecto, existem dois pontos essenciais que diferenciam as situações das concessionárias de serviços públicos dos casos que foram julgados pelo STF: a afetação ao serviço público a que está vinculado o imóvel cujo uso foi cedido e a circunstância de que a concorrência nos serviços públicos usualmente é pelo mercado e não no mercado.
Os casos analisados pelo STF envolveram situações em que, no entender daquele Tribunal, os bens estavam sendo explorados em atividades privadas para a obtenção de lucros pelos particulares.
No caso de concessionárias de serviços públicos, o fundamento da imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, “a”, da CF/88 para fins de afastar a cobrança de IPTU sobre o imóvel a ela cedido está vinculado, essencialmente, à sua afetação à prestação do serviço público. A posse do imóvel pela concessionária é inerente à prestação do serviço público. Portanto, não se trata de um imóvel explorado para fins particulares.
Além disso, no transcorrer do contrato de concessão de serviço público a concessionária explora aquele bem imóvel com vistas à adequada prestação do serviço público que, uma vez ganha a licitação, não está sujeita ao regime da livre concorrência.
Se o serviço é público e deveria, em um primeiro momento, ser prestado pelo Estado, a sua eventual transferência ao particular por meio de uma concessão de serviço público não desnatura o caráter público do imóvel a ela atrelado.
Nesse sentido, a eventual exigência de IPTU sobre imóveis públicos cuja posse foi cedida ao particular no escopo de um contrato de concessão de serviço público é absolutamente ilegal e inconstitucional e frustra, naturalmente, o interesse público que deveria nortear os contratos de concessões de serviços públicos e a garantia da imunidade recíproca assegurada pela Constituição.
Por fim, considerando que uma eventual exigência de IPTU sobre imóveis cedidos no âmbito das concessões de serviço público já em curso configura uma autêntica exação nova, cujo custo não foi computado à época das licitações, há um evidente risco de uma avalanche de pedidos de reequilíbrio no âmbito dos contratos de concessão em face do desequilíbrio na sua matriz econômico-financeira. Com isso, em última análise, estará sendo ferido o próprio princípio da modicidade tarifária que norteia as concessões de serviço público.
Aline Lícia Klein, doutora em Direito do Estado pela USP, é sócia do Porto Lauand Advogados; Maria Angélica de Souza Dias Ribeiro, mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, é advogada associada da área tributária do Porto Lauand Advogados
Fonte: Estadão
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