Em 05/09/2010

Função promocional do direito registral imobiliário: buscando as luzes de Norberto Bobbio


Por Luciano Lopes Passarelli


Em sua obra “Da Estrutura à Função”1, Norberto Bobbio trata do tema “função promocional do direito”, que consiste na

Luciano Lopes Passarelli“[...] ação que o direito desenvolve pelo instrumento das ‘sanções positivas’, isto é, por mecanismos genericamente compreendidos pelo nome de ‘incentivos’, os quais visam não a impedir atos socialmente indesejáveis, fim precípuo das penas, multas, indenizações, reparações, restituições, ressarcimentos, etc, mas sim a ‘promover’ a realização de atos socialmente desejáveis”2.

Diz-nos o mestre de Turim que vivemos uma época na qual o Estado tem assumido cada vez mais uma postura garantista e dirigista, e consequentemente o direito tem sofrido metamorfoses, passando de um viés em que servia para exercer um controle social para passar a ser um instrumento de “direção social”.

Observa o autor que nas constituições liberais clássicas, o principal papel do Estado é o de tutelar e garantir; nas constituições pós-liberais, ao lado daquelas funções, aparece a de promover.

O direito deixa assim uma função passiva, mais preocupada em desfavorecer as ações nocivas do que em favorecer as vantajosas, e passa para um controle ativo, mais preocupado em favorecer as ações desejáveis do que em desfavorecer as nocivas.

Por isso aduz Bobbio que uma teoria do direito que não contemple, nos dias de hoje, esse aspecto diretivo do direito, continuando a pautar-se apenas pela sua função tradicional puramente protetora dos interesses eleitos pelo legislador, e repressiva, relativamente às ações que se opõem a esses interesses, será uma teoria lacunosa e inadequada.

Daí que não seria mais o caso de estudar o direito de um ponto de vista exclusivamente estruturalista, como fez Kelsen em sua Teoria Pura do Direito, mas, sem deixar de lado essa visão estruturalista, torna-se necessário agregar a ela uma visão funcionalista, ou uma “teoria funcionalista do direito”. Não se trata de repudiar a estrutura, mas sim de complementá-la com uma explicação funcional do direito, que está ausente em Kelsen.

Assim, Bobbio vê o “Estado Castigador” evoluindo para tornar-se, também, um Estado promotor de condutas. A idéia de uma função promocional do direito surgiu de uma leitura de Kelsen contraposta com a concepção sociológica de Jhering. É deste último a expressão Lohnrecht, cunhada em oposição a Strafrecht, ou Direito Penal.

Bobbio esclarece que foi difícil traduzir Lohnrecht, e ele acabou optando pela expressão “direito premial”. Aqui o direito deixa de apenas proibir ou permitir, mas passa também a promover comportamentos através de estímulos e desestímulos. Trata-se de uma “dimensão positiva” das sanções, que assume a forma de incentivos e prêmios.

Aliás, ele afirma que a idéia de um “direito premial” existia e era muito forte em Roma, mas que perdeu-se com o tempo, ao ponto de muitas vezes nos causar estranheza.

Tudo, como se disse, sem negar o papel tradicional do direito, mas sim complementando-o. Por isso Bobbio aduz que podem haver: “a) comandos reforçados por prêmios; b) comandos reforçados por castigos; c) proibições reforçadas por prêmios; d) proibições reforçadas por castigos”3.

A técnica do encorajamento visa tornar os atos obrigatórios particularmente atraentes, e os atos proibidos particularmente repugnantes.

Bobbio nos alerta para não estranharmos a expressão “sanção positiva”, posto que

[...] na literatura filosófica e sociológica, o termo ‘sanção’ é empregado em sentido amplo, para que nele caibam não apenas as conseqüências desagradáveis da inobservância das normas, mas também as conseqüências agradáveis da observância, distinguindo-se, no genus sanção, duas species: as sanções positivas e as sanções negativas.4

O direito premial – ou o direito em sua função promocional – vale-se de sanções positivas porque lhe interessam principalmente os comportamentos socialmente desejáveis, sendo seu fim levar a realização destes até mesmo aos recalcitrantes.

O direito repressivo utiliza a fórmula deôntica “se fazer A, deves B”. O direito promocional vale-se da fórmula “se fazes A, podes B”.

Tradicionalmente a sanção jurídica é garantida pela ameaça de colocar em movimento o aparato executivo dotado de meios coativos que são ou tendem a ser irresistíveis, e depois por efetivamente colocá-lo em movimento. Isto já havia sido percebido por Kelsen, para quem o direito é uma técnica específica de organização social, cuja especificidade consiste no uso dos meios coercitivos para induzir os membros do grupo social a fazer ou a não fazer alguma coisa, tratando-se, então, de um ordenamento coativo.

No entanto, Bobbio visualiza um fenômeno que chama de “controle antecipado”, que é o deslocamento da reação social do momento subseqüente para o momento precedente ao comportamento ou evento não desejado. Em outras palavras, da repressão à prevenção.

Por certo que a função repressiva do direito tem também uma função preventiva, devido ao seu valor intimidativo, mas, no dizer de Bobbio, “é preciso fechar o estábulo antes que os bois fujam”5.

Bobbio recorre à útil analogia com a medicina preventiva, que prefere evitar que a doença se instale a ter que tratá-la. Assim, por que disponibilizar um imenso aparato para julgar e punir comportamentos desviantes, se é possível criar condições sociais que influam nas causas que determinam o conflito?

Assim como a medicina promete uma vantagem pela prática de certos comportamentos preventivos (como exercícios físicos e boa alimentação, que evitarão doenças), o direito promocional promete certas vantagens jurídicas para quem comportar-se da forma desejada.

Assim, se o homem encontra-se inerte, passivo, indiferente, o direito deve estimulá-lo, provocá-lo, solicitá-lo, exercendo desta forma um papel de direção social.

O direito tem, sabemos, um função muito importante de manutenção da ordem constituída, mas também tem a função de mudá-la, adaptando-a às novas exigências sociais.

Pois bem.

Por tudo o quanto até aqui se disse, exsurge cristalina a conclusão de que notários e registradores são, por excelência, no âmbito dos negócios jurídicos em geral, os grandes agentes da função promocional do direito.

Por primeiro, os notários e registradores exercem seu labor justamente colimando alcançar a paz social pela via preventiva. Ora, a lide é certamente uma patologia. Uma sociedade na qual a lide prevaleça certamente é uma sociedade doente.

Os notários e registradores, emprestando aos negócios jurídicos os atributos da publicidade, autenticidade, segurança e eficácia (art. 1º da Lei Federal 8.935/94), atuam para prevenir que esses negócios desbordem em lides e, se chegarem a isso, fornecem ao Judiciário ferramentas para de forma mais fácil e melhor decidir as demandas.

Especificamente no caso do Registro de Imóveis, a publicização das situações jurídicas imobiliárias nos seus álbuns tem inegável poder preventivo, evitando o surgimento de demandas oriundas de tais relações.

É que, corretamente publicizado o status júris dos imóveis, ninguém poderá alegar desconhecimento sobre os bens, direitos e respectivos titulares envolvidos. Ao contrário, a clandestinidade dessas informações pode levar a erros, fraudes, e um sem número de situações decorrentes dessa assimetria informacional.

O direito registral imobiliário, ao promover que todos publicizem suas situações jurídicas imobiliárias, dentro, é claro, dos marcos legais previstos para tanto, promove a paz social e prepara o terreno para uma melhor solução jurisdicional, se por exceção essas relações desbordarem para lides.

E o direito registral tem previsão legal nesse sentido?

Bem, o registro é obrigatório (artigo 169 da Lei de Registros Públicos), e aquele que não registra seu título não adquire a propriedade nos negócios inter vivos (artigo 1.245 do Código Civil). Nas aquisições causa mortis ou nos registros meramente declaratórios, sem o registro não haverá oponibilidade erga omnes nem disponibilidade do bem (artigo 176 da Lei de Registros Públicos).

Assim, o direito registral promove sim a publicização das relações jurídico-reais, com o claro fim de dar concretude à função sócio-econômico-ambiental da propriedade.

Em que sentido? Não apenas punindo o desidioso, ao não amparar o seu direito não-registrado (artigo 1.245 do Código Civil), ou não lhe reconhecendo eficácia erga omnes ou disponibilidade (artigo 176 da Lei de Registros Públicos) mas, de outra parte, justamente protegendo o adquirente diligente, constituindo o seu direito, ou reconhecendo-lhe a eficácia contra terceiros, e conferindo-lhe a possibilidade de dispor do bem. Entramos aqui na seara da “boa-fé registral”.

E aqui chegamos ao ponto preocupante deste texto.

Se o direito registral imobiliário tem, afirmo eu, a função promocional de estimular os adquirentes a registrarem seus títulos, em ordem a dar a conhecer a toda a coletividade o status júris dos imóveis, dando concretude à função sócio-econômica-ambiental da propriedade imobiliária, jamais o Poder Judiciário poderia prestigiar títulos não registrados.

Isso vai na contramão de todos os esforços em busca da paz social nesta área.

Ora, como é possível prestigiar em sede de Embargos de Terceiro o adquirente que, descumprindo seu dever de registrar o título (artigo 169 da Lei de Registros Públicos), deixa o aparato judicial estatal movimentar-se durante longos períodos, com imensos dispêndios de energia, funcionários, custas, etc, para então aparecer de surpresa brandindo seu “pedaço de papel” e, desta forma, frustrando um longo processo de execução?

E o credor que não providencia a notícia do ajuizamento da execução (artigo 615-A do Código de Processo Civil) ou deixa de registrar sua penhora (embora sobre isso em boa hora tivemos a superveniência da Súmula 375do Superior Tribunal de Justiça), pode pretender reconhecimento de fraude à execução, prejudicando o terceiro adquirente que confiou no registro imobiliário?

Poderíamos pensar em outros exemplos, mas o que se afirmar aqui é que o Judiciário deveria ser o guardião maior do papel social e econômico do registro imobiliário, em sua função promocional da paz jurídica nas relações reais imobiliárias.

Isso vale para todos. A Justiça do Trabalho, por exemplo, se desconsiderar o registro imobiliário, em prejuízo da boa-fé registral dos terceiros adquirentes, pode estimular que os proprietários mantenham suas aquisições na clandestinidade, para fugir da execução, e assim os reclamantes ficarão de todo modo “a ver navios”, já que não encontrarão nunca patrimônio penhorável.

Temos, ao contrário, que fortalecer o sistema, prestigiando o que registra seu título, garantindo-lhe a “sanção positiva”, o incentivo, o prêmio, de que sua postura será prestigiada e seu registro não será solenemente desconsiderado.

Que as lições lúcidas e atuais do grande mestre de Turim não caiam em ouvidos moucos.

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1BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri : Manole, 2007.

2Idem, p. XII.

3Idem, p. 6.

4Idem, p. 7.

5 Idem, p. 36.

* Luciano Lopes Passarelli é Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas de Batatais/SP; Mestre e Doutorando em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP; Professor de cursos de Especialização em Direito Civil, Notarial e Registral e Coordenador Editorial do IRIB

 

Fonte: InfoIRIB



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