MARIA HELENA LEONEL GANDOLFO: um ícone
IRIB presta homenagem a Maria Helena Leonel Gandolfo. Registradores demonstram seu carinho e admiração.
Conforme noticiado na edição anterior do Boletim do IRIB, foi com imenso pesar que informamos o passamento de Maria Helena Leonel Gandolfo, Registradora aposentada do 10º Registro de Imóveis de SãoPaulo/SP, jurista e membro atuante do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB), onde exerceu vários cargos e compôs diversas Diretorias, tendo sido, inclusive, uma de suas fundadoras.
Autora de vários artigos e do primeiro Caderno do IRIB de prática registral, no ano de 2002, intitulado “Matrícula – uma abordagem prática”, tema do qual (e dentre outros) tinha profundo conhecimento, considerando que foi uma das maiores estudiosas na transição do sistema das transcrições para o fólio Real, Maria Helena também escreveu artigos sobre o saudoso Gilberto Valente da Silva (“Remexendo a memória”) e sobre seu pai (“Meu pai, meu norte”). O imenso legado doutrinário deixado por Maria Helena pode ser acessado no IRIB Academia.
Como não poderia deixar de ser, o falecimento de Maria Helena causou comoção entre os Registradores de Imóveis e demais profissionais ligados ao Direito Registral Imobiliário. Diversas mensagens foram enviadas ao IRIB. O Quinto Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo/SP e Ex-Presidente do IRIB, Sérgio Jacomino, escreveu sobre a importância de Maria Helena para o Registro de Imóveis:
“MARIA HELENA LEONEL GANDOLFO
Revisitando as galerias de fotos do nosso IRIB, os rostos de tantos amigos e amigas passam rapidamente, como num flash animado por quadros complexos e inextrincáveis – conexões que se formam numa espécie de mosaico existencial. Com quantas pessoas cruzamos no curso de nossas vidas? Quantas delas nos marcam de modo indelével? Os encontros e desencontros são um mistério profundo que não nos é dado conhecer.
Nesta manhã fria penso que a vida é efêmera. As situações, cenários, rostos que se desenharam nesta longa jornada vão se esmaecendo e nos fica um sentimento de profunda e inconsolável solidão. Voltamo-nos para o passado, como quem busca dar sentido ao presente e nos fortalecer para os desafios do futuro. Lembro-me do Elvino, do Jether, do Carvalhaes, do Oliveira Pena, do Albergaria, do Fioranti... Tantos nomes, tantos lugares, tantos textos... tudo passa dançando na memória e no écran do meu computador, veloz, fugaz.
Lembro-me bem de Maria Helena figurando de modo indisputável nos encontros do IRIB. Acho que a primeira vez que nos cruzamos foi em Fortaleza, em 1996 (ou terá sido em Belo Horizonte, em 1997?). Eu estava animado com o admirável mundo novo da informática registral. Apresentaríamos um trabalho naquelas duas oportunidades e há uma cena de que me recordo muito bem. Falava animado sobre as maravilhas e os perigos da informática e de repente fui capturado pelo olhar atento de Maria Helena, sentada na primeira fileira. Os olhos atentos e fixos em mim, ela murmurava, baixinho, as últimas palavras que encerravam as minhas frases – como quem buscava fixar cada pensamento, sublinhando cada conclusão. Na verdade, ela intuía cada palavra final – como quem confirma as suas próprias conclusões. Estabelecíamos uma estranha comunhão.
Lembro-me, certa feita, de estar só em meu escritório registral em Franca (SP) lendo e apontando nótulas de estudos. Mal pude me conter quando me deparei com uma citação elogiosa do nome de Maria Helena no livro de Afrânio de Carvalho. Está lá, na nota 11 da página 119 da conhecida obra – ‘brilhante monografia’, como registrou para sempre o mestre e professor de todos nós. Havia outra citação de Maria Helena que há pouco recuperei e utilizei para criticar a aziaga reforma da Lei 6.015/1973: Cessão Fiduciária, que veio a lume em 19801. Afrânio se apoiaria na doutrina de Maria Helena para as suas próprias conclusões (nota 9, p. 147 da 3ª edição). Liguei excitado para Maria Helena e ela, surpresa, foi buscar o seu exemplar para conferir. E rimos, os dois presos ao telefone, excitados, como quem acha uma pequena joia preciosa nas águas de um caudaloso rio.
Lembro-me de outra passagem. Eu falava com ela uma vez mais ao telefone e usei uma expressão que a impressionara e deixara perplexa – síndrome do beliche dominial. Referia-me ao fenômeno de superposição de glebas no meio rural e o desafio do Registro de Imóveis de coordenar-se com o cadastro. O trabalho se acha por aí, dormitando num escaninho do Instituto. Ela me interrompeu e perguntou com uma sinceridade desconcertante: ‘de quem é a expressão?’. Parece que a ideia lhe causava forte impressão. Fiquei encabulado e não lhe respondi.
Não éramos amigos muito próximos. Ela pertencia a uma geração de registradores que construiu o Registro de Imóveis que nós, os mais jovens, recebíamos como valiosa doação de uma geração de veneráveis pioneiros. Havia uma relação de reverência com os nossos maiores. Entretanto, mesmo depois de aposentada, nunca deixei de honrar a grande registradora paulista, tendo-a convidado para proferir, ao lado de renomados juristas, um curso de introdução ao Direito Registral. Ela nos brindaria com uma linda palestra para jovens sobre a sistemática dos cartórios.
Ela topou participar do Café com Jurisprudência, iniciativa que havia nascido e vicejado no Quinto Registro de Imóveis de São Paulo, proferindo uma verdadeira aula prática sobre a sistemática e o funcionamento dos Cartórios. ‘Podemos apresentá-las não como palestra ou aula, mas simplesmente como um bate-papo’, disse, sentindo-se confortável com a iniciativa informal do projeto Café com Jurisprudência2.
Lembro-me de me ter encontrado com Maria Helena no Centro Cultural São Paulo, por ocasião do lançamento de um livro de Vange Leonel, sua querida filha. Eu e Vange trocamos algumas ideias sobre ‘As Sereias da Rive Gauche’. Ela foi cantora, compositora, letrista, escritora, uma mulher sensível e que cedo nos deixaria. O que ficou desse encontro imponderável é uma dedicatória de Vange no livro em que me formulava um repto – ‘Sérgio, voltemos aos clássicos!’. Voltemos, Vange, voltemos.
Nossos encontros foram rareando com o passar dos anos. Recebia notícias por intermédio de Ademar Fioranelli ou de Clenilse Vanz, minha querida secretária. A última vez que estivemos juntos foi nas exéquias de Vange. Solidariza-me com a registradora naquele momento tão duro e ela, sempre firme e serena, lançou-me um profundo e dolorido olhar. Não pude mais do que lhe dar um abraço e foi ali mesmo, em julho de 2014, que se deu nossa despedida.
Uma geração de notáveis registradores passa e deixa sua marca inscrita no grande livro do Registro de Imóveis brasileiro. O que nos reserva o futuro? Já não sei dizer. De alguma forma busco resgatar a memória de homens e mulheres que construíram este grande edifício institucional.
Maria Helena foi um ícone, um signo perene na construção desta grande obra institucional. Uma linda estrela que hoje se apaga, mas a sua luz nos acompanhará neste universo sensível até o último dia de cada um de nós.
_____________________
1 V. JACOMINO, Sérgio. Caução e Cessão Fiduciária. São Paulo: Observatório do Registro, acesso: https://wp.me/p6rdW-2yQ
2 Vide Boletim Eletrônico do IRIB n. 856, de 30/9/2003."
Nomes conhecidos pelos estudiosos da área, Ademar Fioranelli e Ulysses da Silva, também se manifestaram em carinhosa mensagem:
“DIREITO IMOBILIÁRIO PERDE GRANDE COLABORADORA
Foi com muito pesar que recebemos a notícia do desenlace, ocorrido dia 18 de julho, de nossa estimada companheira de luta, Maria Helena Leonel Gandolfo, ex-titular do 10.º Registro de Imóveis de São Paulo, incansável colaboradora do IRIB e uma das fundadoras da ARISP.
Em sua vida de registradora de imóveis, Maria Helena sempre esteve voltada para a eficiência do registro imobiliário, ciente, como sempre esteve, de que é função do registrador assegurar a legitimidade dos títulos apresentados e a segurança dos direitos reais imobiliários inscritos.
Assídua participante dos encontros do IRIB realizados por todo o Brasil, assim como das reuniões promovidas pela ARISP, Maria Helena enriqueceu o direito imobiliário com estudos que marcaram época, entre os quais podemos citar Reflexões Sobre a Matrícula 17 Anos Depois, apresentado em 1993, no encontro nacional de Blumenau-SC.
Maria Helena ressalta, nesse precioso estudo, a importância da criação da matrícula, introduzida pela Lei 6.015/73, assim como as dificuldades encontradas para a sua implantação. Somos, aliás, testemunhas dos esforços desenvolvidos nos encontros promovidos para tal fim, antes mesmo da entrada em vigor da lei, por iniciativa do então titular Primeira Vara de Registros Públicos, o saudoso Dr. Gilberto Valente da Silva, que contou com a colaboração de vários registradores e a inspiração de nossa querida amiga.
Nesta despedida, o que podemos a acrescentar é que a falta de nossa querida amiga será sentida por todos aqueles, como nós, que tiveram o prazer de conviver com ela, conhecer sua inteligência e a dedicação ao trabalho, mas, conforta-nos saber que seu espírito continuará vivo nos ensinamentos que deixou.
Ademar Fioranelli e Ulysses da Silva”
O Presidente do IRIB, Jordan Fabrício Martins, relembrou seu encontro com Maria Helena, cujo tema era a informatização dos Registros de Imóveis:
“1991.
Eu era completamente desconhecido e sem nenhuma história na atividade notarial e registral. Havia assumido uma titularidade no ano anterior, em Florianópolis, e antes disso trabalhara no Tribunal de Justiça catarinense.
Ansioso com a informática que dava seus primeiros passos de universalização no Brasil, peguei um avião rumo a São Paulo para visitar um dos poucos cartórios que já estavam se aventurando nesse universo paralelo.
Quem me apontou o endereço foi a consultoria jurídica do IRIB (leia-se Gilberto Valente da Silva).
Fui atendido por Maria Helena Leonel Gandolfo. Ela já era um mito, mas recebeu-me pessoalmente, com toda aquela pureza e virtude.
Alguns anos depois, meu software de gestão de processos estava pronto (basicamente a troca da máquina de datilografia pelo computador, e de algumas fichas por dados digitais, mas tudo bastante eficiente).
Perdermos uma pessoa magnífica. Não tive o privilégio de desfrutar de sua amizade pessoal, culpa exclusiva da minha timidez. Mas nunca esquecerei sua generosidade, sua entrega, a mim naqueles instantes tão fugazes, mas que se perenizaram. E sobretudo ao registro imobiliário do Brasil. Ela nunca soube, mas – assim como Elvino Silva Filho, Ademar Fioranelli e tantos outros – salvaram a minha rotina profissional, com tudo que nos ensinaram e ensinam, conscientes, mais do que ninguém, da importância do nosso trabalho para os direitos fundamentais das gerações presentes e futuras.”
O Vice-Presidente do IRIB, José de Arimatéia Barbosa, também manifestou sua admiração com a seguinte declaração:
“Conheci a colega Maria Helena em 1997, tão logo assumi a Serventia do Registro de Imóveis e Anexos na comarca de Alvorada d’Oeste-RO. Dela recebi inúmeras lições, muitas vezes por telefone e/ou fax, à época os mais avançados veículos e comunicações e, pessoalmente, em nossos eventos, quando lá estava ela ao lado do saudoso Dr. Gilberto Valente a nos atender nas dúvidas próprias de um neófito na atividade profissional.”
Maria Helena Leonel Gandolfo deixa inúmeras contribuições ao Registro de Imóveis. Mas, acima de seus ensinamentos doutrinários, Maria Helena deixa amigos e alunos que muito sentirão sua falta.
À Maria Helena Leonel Gandolfo, o IRIB gostaria de dizer: MUITO OBRIGADO!
Fonte: IRIB.
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