Blockchain e o Futuro do Registro de Imóveis Eletrônico – Palestra IV
Evento realizado pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) e pela Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário (ABDRI), no dia 31 de março de 2017, com o objetivo de discutir o potencial, os desafios e as oportunidades da tecnologia de blockchain. Acompanhe a síntese das principais ideias apresentadas em cada palestra
NOÇÕES E PERSPECTIVAS PARA O REGISTRO IMOBILIÁRIO
Palestra proferida por Daniel Lago Rodrigues, oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas da Comarca de Taboão da Serra, SP. Diretor de Relações Institucionais do IRIB. Secretário-Geral da Academia Paulista de Direito Registral. Mestre em Direito Processual pela PUC Minas, e mestre em Direito Internacional pela Universidade Metodista de Piracicaba.
Blockchain não seria de fácil implantação no Registro de Imóveis brasileiro cujo sistema jurídico visa à constituição de direitos. Seu uso estaria restrito a banco de dados e à validação eventual de documentos públicos.
Como funciona a tecnologia do blockchain, de que maneira poderá ser implantada e até que ponto poderá impactar a atividade registral são algumas das questões que suscitamos.
Blockchain: noção preliminar
Blockchain é uma tecnologia de estruturação de banco de dados, por meio da qual se cria uma rede colaborativa de distribuição da escrituração de informações (ledger) transparente às pessoas habilitadas com auditoria automática e contínua.
Rede de distribuição do bitcoin
A rede de distribuição do bitcoin é pública e distribuída por todo o globo terrestre. Eventual rede pública aplicada ao Registro de Imóveis possibilitaria a dispersão das informações e esse não é nosso objetivo.
Mineração
Existem cerca de seis mil infraestruturas que se dedicam à chamada atividade de mineração, ou seja, à validação contínua de informações, em troca de remuneração e pagamento de taxas a cada transação.
Confiança: ideia de usar blockchain no RI nasceu para sistemas cujos contratos são arquivados sem observar continuidade dos atos ou legalidade do conteúdo
A tecnologia de blockchain visa à criação de um sistema de reputação objetivo, o que significa que seria desnecessária a participação de uma pessoa ou entidade na validação da transação. O fato de a informação estar dispersa entre os nós, isto é, entre as infraestruturas responsáveis pela validação das transações, demonstraria a hipótese cada vez mais remota de fraude das informações e, consequentemente, de segurança do sistema.
O estabelecimento de ligação entre blockchain e Registro de Imóveis é oriundo de países cujo sistema registral imobiliário não privilegia o encadeamento das informações. São sistemas nos quais os contratos de aquisição são depositados, sobrepondo-se uns aos outros, sem qualquer observância à continuidade dos atos ou mesmo à legalidade do seu conteúdo.
Nesses países, toda vez que há conflito de interesses envolvendo o mesmo imóvel, ou alguma fraude explícita em sentido documental, a produção de provas é feita mediante a apresentação de todos os títulos registrados de modo a definir o primeiro título registrado e o verdadeiro proprietário do imóvel. E isso tudo ocorre na esfera judicial. A decisão judicial vai dizer somente que aquele é o melhor proprietário entre os que participaram dos atos.
Ou seja, a adoção absoluta do sistema de blockchain pode significar de fato um grande salto para aquele que está sujeito a um sistema registral onde os documentos são meramente arquivados. Porém, no Registro de Imóveis brasileiro, cujo sistema jurídico visa à constituição de direitos, o blockchain não seria fácil de ser implementado.
Características
a) a tecnologia de blockchain permite uma relação direta (peer-to-peer) entre as partes contratantes, não havendo, em tese, necessidade de intervenção por terceiro;
b) permite a confecção de um documento (smarts contracts) que será encadeado com outros;
c) gera um extenso código criptográfico alfanumérico de validação única para cada bloco, mediante a utilização de algoritmos aplicados a partir de seu conteúdo;
d) encadeia esses blocos de notas a partir de referência do código criptográfico do bloco anterior no bloco seguinte;
e) permite a validação de toda a cadeia a partir de algoritmos aplicados sobre todos os códigos gerados;
f) distribui o banco de dados por toda a rede, de modo que as infraestruturas postas à disposição para validação das cadeias (nós) possuem uma cópia de toda a cadeia, fazendo-se de certa forma um compartilhamento do arquivo.
Portanto, em se tratando de um banco de dados compartilhado, é preciso analisar os efeitos decorrentes da adoção do sistema blockchain pelo Registro de Imóveis e, sendo o caso, estabelecer os parâmetros para o efetivo compartilhamento.
A sua segurança reside na impossibilidade prática de se defraudar ao mesmo tempo todas as cadeias de todos os nós, pois a corrupção de uma só informação em toda a cadeia acarretará a rejeição desta pelos demais nós autenticadores.
Quanto mais infraestruturas à disposição da rede, maior a distribuição do banco de dados e maior a segurança do sistema.
A integridade é determinada com base no consenso, que pode ser modulado para ser alcançado mediante a concordância de 100% dos nós (infraestrutura) ou outra fração que represente uma maioria dessas infraestruturas autenticadoras. Esse fracionamento poderia agilizar a validação da cadeia.
Blockchain: potenciais e funcionalidades
Analisando o blockchain como mecanismo de estruturação de dados que permite a veiculação de um contrato algumas de suas principais funcionalidades são:
a) assegurar a estabilidade da informação escriturada e incrementar sua confiabilidade, especialmente nas relações bilaterais em que uma das partes contratantes acumula, convencionalmente, a função de custodiar essas informações. Em outras palavras, não se dependeria da boa vontade ou honestidade da outra parte para garantir a integridade da informação;
b) criar um sistema de chaves públicas e privadas, mediante criptografias assimétricas, de modo a identificar quem pratica o ato na rede;
c) permitir conhecer a data em que o documento foi criado;
d) a segurança seria destinada a afastar a necessidade de uma terceira pessoa encarregada de autenticar a transação entre duas partes contratantes. Tal autenticação se daria pela validação difusa na rede de toda a cadeia à qual aquele bloco de notas está vinculado;
e) assegurar a integridade do documento, posto que sua defraudação em toda a rede se mostra impossível, concomitantemente, com a agregação de novos blocos na cadeia e sua nova validação gerada daí por diante;
f) a validação da cadeia em várias infraestruturas, simultaneamente, afastaria o risco de sequestro dessas informações;
g) permitiria a checagem por terceiros da autenticidade e integridade de um dado documento, até mesmo expedido pelo cartório.
Observando as várias possibilidades de aplicação da tecnologia de blockchain, inclusive para o registro de coisas, verificamos a sua amplitude em relação às ferramentas que utilizamos hoje.
Modalidades de rede: rede pública e rede privada
Na rede pública, qualquer pessoa pode interferir segundo a finalidade e as regras de cada cadeia de blockchain para acrescer mais um bloco de informações. A criação de nós de autenticação da cadeia é livre.
Na rede privada, a cadeia é manipulada apenas por uma, ou algumas pessoas autorizadas, sem acesso franqueado ao público. Somente pessoas credenciadas poderão acrescer mais um bloco de informações à cadeia. A criação de nós de autenticação da cadeia é igualmente restrita.
Para o Registro de Imóveis, a rede privada é a mais indicada na medida em que seria possível determinar quem e quantas pessoas poderiam intervir na cadeia e ter acesso às informações.
Blockchain: vicissitudes da sua aplicação ao bitcoin
No bitcoin, os mining nodes são incentivados a replicar e validar as cadeias de transações pela possibilidade de remuneração pelo próprio sistema com novos bitcoins.
No início do bitcoin, as estruturas que faziam a validação do sistema eram bem caseiras. Com o ingresso de diversas empresas no mercado de validação, as estruturas se tornaram mais potentes e o pequeno minerador perdeu seu espaço.
Com a extensão da cadeia, a validação das transações tende a tornar-se cada vez mais complexa, com a desvalorização dos blocos e as chances cada vez mais reduzidas de conquista de bitcoins em circulação.
A menor remuneração por mineração (proof-of-work) exige cobrança de maiores taxas, e para que uma rede ampla e distribuída de validação seja mantida, a tendência será a majoração dos preços. Atualmente, são cobradas taxas extras para a obtenção de prioridade na validação de uma dada transação. Portanto, quanto maior a infraestrutura, maior o custo para o seu processamento e menor a margem de remuneração.
A saída de mining nodes da rede propicia maior concentração das informações. Ou seja, quanto maior a cadeia, menor o número de infraestruturas. Quanto menor a distribuição, maior a concentração das informações. Quanto menor a rede, menor a segurança.
Algumas iniciativas estão sendo engendradas para impedir o crescimento da cadeia, fazendo com que ela seja fragmentada de maneira a democratizar a validação das transações. Entretanto, as grandes infraestruturas integrantes do blockchain, pelo peso patrimonial que possuem, estão resistentes a isso.
Blockchain no Registro de Imóveis: qual o impacto para a atividade do registro?
Primeiramente, é preciso deixar claro que a tecnologia de blockchain não é a solução para todos os problemas. É apenas um modo de assegurar a informação.
Em que ponto esse modo de estruturação dos dados pode impactar a atividade do registro?
O advento do blockchain não traria grandes impactos em um sistema cujo acesso aos documentos é feito somente depois da análise prévia de legalidade. O fato de um documento eletrônico ser produzido com a tecnologia de blockchain, por óbvio, não o torna imune à qualificação registral.
Todos os artigos e documentos que tratam da substituição da função registral por algo semelhante ao blockchain, ou mesmo a ideia de relação peer-to-peer em que a intervenção de terceiro é totalmente dispensável para a validação da transação, provêm de áreas cujos sistemas são bem menos robustos e complexos que o sistema de registro de direitos.
Há uma variedade muito grande de situações no Registro de Imóveis. Diariamente, recebemos negócios aparentemente singelos que trazem em seu bojo situações específicas que decorrem da autonomia da vontade das partes.
É difícil imaginar uma forma encadeada que permita abarcar toda e qualquer situação imaginável de manifestação de vontade. A análise de legalidade é de tal forma complexa e variável que dificilmente conseguiríamos padronizá-la, esgotando todas as situações possíveis de um contrato. O que dizer, então, do registro imobiliário como um todo?
A análise da legalidade do conteúdo do título apresentado a registro, sua compatibilidade com todo o fólio, até mesmo com situações não inscritas decorrentes diretamente da lei, continuará exigindo a atuação do oficial registrador. O direito constituído pelo Registro de Imóveis é exclusivo e excludente de qualquer outro.
Blockchain: ferramenta de proteção de banco de dados
Em tese, a rede de distribuição do blockchain pode se espelhar na rede de unidades extrajudiciais, sendo necessária regulação para tanto.
Mas um acervo pertencente a uma determinada serventia poderia circular por outras? Até que ponto isso já não ocorre uma vez que somos obrigados a guardar um backup fora da serventia? É mesmo o caso de os cartórios se tornarem nós de validação? Qual o sistema mais apropriado, considerando os milhares de atos registrais praticados no Estado de São Paulo?
Uma cadeia privada única tende a ser infinita, sendo assim, teríamos condições econômicas para viabilizá-la?
Decidindo-se pela adoção da tecnologia de blockchain é imprescindível o estudo de suas variantes para que se possa verificar a que melhor atende às nossas necessidades.
Também há que se pensar na hipótese de a rede não abarcar todos os cartórios. Para que o pequeno cartório possa participar desse processo, é fundamental dotá-lo da infraestrutura necessária para operar na validação do sistema.
Podemos pensar na criação de uma cadeia privada tanto para os títulos apresentados quanto para os atos de registro em si? Tudo isso vai impactar no custo e no modo como será feito o arquivamento.
É óbvio que a cadeia do blockchain jamais vai substituir a cadeia dominial, mas para que possamos, a cada ato praticado, chegar ao documento que lhe deu origem, em princípio, a saída seria a criptografia dos documentos ingressados no cartório.
A tecnologia de blockchain poderia fortalecer o instrumento particular? Depende. É possível, mas não a ponto de substituir o instrumento público. Não podemos abrir mão, por exemplo, da atuação preventiva do tabelião no aconselhamento das partes. O notário, ao entabular um negócio segundo a lei, está exercendo uma qualificação de legalidade essencial àquele ato jurídico. Sem contar outras questões em que não se pode prescindir da atuação do tabelião, como a identificação das partes e a aferição de sua capacidade.
Portanto, a conclusão a que chego é que em princípio o blockchain impactaria o sistema registral imobiliário de forma restrita, uma vez que o seu uso estaria limitado a banco de dados e à validação eventual de documentos públicos.
Palestra I - proferida por Rosine Kadamani, advogada e cofundadora da Blockchain Academy
Fonte: Fátima Rodrigo, jornalista
Em 18.5.2017
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